O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Os Invasores - por Handerson Pessoa

Alguma coisa estava errada naqueles arquivos. A relação de clientes exibia números diferentes do que da última vez que eu olhei. Que aconteceu? Será que estou louco? Ou só um pouco desconcentrado? Preciso arrumar isso rápido antes que alguem veja. Se alguém perceber, estou perdido, com certeza estou fora do jogo. E não posso perder esse emprego. Tenho as prestações do meu carro ainda para pagar.
Reinicio o computador. Quem sabe é só algum erro no sistema. Não, definitivamente não é. Alguém alterou um arquivo, e esse alguém não fui eu. Pego o telefone e quero ligar para o departamento de informática. Espera, acho melhor falar com o meu supervisor primeiro. Dez minutos depois estou na sala dele. Em outros dez estou do outo lado da calçada. Fui suspenso. A firma não tolera erros, mesmo os erros não terem sido meus. É véspera de feriado prolongado e eu ainda não preparei nada. Entro no supermercado. Enquanto espero na fila olho para o lado e vejo que a mulher do caixa está me olhando. Será que está pensando que sou outra pessoa? Mas aquele olhar não é muito comum. É o olhar de quem está à frente da sua presa, apenas arquitetando o momento certo para dar o bote. É a minha vez, ela olha e diz o tradicional "Bom dia" quase sussurando para mim com aqueles lábios carregados de baton, aqueles cabelos presos num rabo de cavalo e aqueles oclinhos de aro redondo que nao conseguem cobrir as sardas do seu rosto. Sinto um calafrio. Será que isso está mesmo acontecendo comigo? Os pêlos dos meus braços se eriçam mas não estou com frio, é por outro motivo. Pago com meu cartão de crédito e quando a impressora termina de emitir mais um rombo na minha conta, ela retira o papel, pega uma caneta e faz uma marca onde eu devo assinar. Na sala da gerência lá em cima, um homem olha sem piscar para a mulher do caixa, sua expressão está cada vez mais séria e ela começa a ficar nervosa, vermelha, treme as mãos, percebo pelo movimento irregular da caneta. Olho para aquele brutamontes e ele me encara. Malditos gerentes. Ela me entrega minha via da nota fiscal. Mas eu só comprei coisas pequenas, nem preciso de nota fiscal, então num desatino eu amasso o papel jogo dentro da sacola. Não tinha um cesto de lixo à vista. Nada me faz esquecer o rosto daquela atendente. Por que ela havia ficado tão nervosa? Por que fez aquela cara de desconsolo quando eu joguei a nota dentro da sacola? Acho que ainda tenho essa nota. Entro na cozinha e em meio à sacos e sacolas vazias encontro o tal pedaço de papel. Olho atrás: um nome, um telefone. Eu não acredito. Só pode ser minha mente fértil e histérica mesmo. Melhor é eu ir em uma locadora e pegar alguma coisa pra ver à tarde. Acho que farei visitas constantes à locadora, caso a situação no trabalho não melhore. São duas da tarde, e agora que já acabei com uma caixa de lasanha pronta, dessas de microondas, o melhor a fazer é deitar no sofá e ver o filme. Adoro filme de drama, mas acho que o drama maior eu já estou vivendo, faço o papel principal. Mal vejo um terço do filme e durmo. Maldito telefone, acabou de me acordar. Atendo, mas não reconheço a voz. Mas a sensação é a mesma da manhã. Eu não posso acreditar, é a mulher do caixa. Quando eu pergunto e ela me responde com aquela voz sussurante, indecifrável mistura entre um suspiro e um gemido de prazer: Melissa. Não pode ser verdade, essas coisas não acontecem comigo. Ela me pede desculpas por ter passado mais de uma hora procurando o meu telefone. O que mais será que ela encontrou? Será que já sabe onde eu moro? Quero continuar aquela conversa, e ela me pergunta o que estou fazendo. Ambos estamos à toa agora. Estamos suspensos de nossos trabalhos por causa de erros que não cometemos. Mesmo correndo todos os riscos a convido para ir até a minha casa. Vinte e sete minutos e dois segundos depois, meu interfone toca. Enquanto estamos os dois sentados sobre nossas pernas cruzadas, enroladas em um cobertor, cada um em um sofá diferente é claro, ela me conta que estuda Tecnologia da Informação. Consegue invadir qualquer sistema. Por isso foi demitida. Queria saber porque seu caixa tinha tanta diferença na hora da contagem do supervisor se ela era honesta. Da sua casa, teve acesso aos computadores do trabalho e descobriu a farsa. Era o gerente sabotador. Mas ela não quis arrumar confusão. Iria resolver aquilo à sua maneira. Conto pra ela que também sou vítima de alguém que queria puxar o meu tapete. E puxaram. Ela imediatamente se livra do cobertor, vai até o computador que está a dois metros dela, liga e diz que vai resolver o meu problema. Meu Deus, quem é essa mulher? Mal a conheço e agora ela está na minha casa, usando o meu computador, e ainda diz que vai resolver o meu caso? Será que mereço tanto? Enquanto ela espera o computador ligar eu busco mais cappucino. Está muito frio e nada melhor para aquecer do que um cappucino. Se eu já a conhecesse a mais tempo diria que existe sim algo melhor para aquecer, mas é que.. Finalmente o computador ligou. Ela se concentra, seus dedos ágeis parecem se multiplicar por dez nas teclas do computador, vejo telas que nunca vi antes, e finalmente ela encontra o resultado. É o novato, não sei como ele conseguiu isso mas, ele vai se ver comigo. Melissa faz uma das suas mágicas e de repente limpa a minha barra. "Como você fez isso?", eu pergunto. Ela só abre aquele sorrisinho de quem não quer nada e diz: "Não pergunte". Assistimos todos os DVDs. Dormimos e acordamos na mesma cama. Acordo com um telefone tocando em algum lugar do quarto. Minha suspensão foi suspensa. Estou de volta ao jogo. Melissa continua ali, dormindo como um anjo, não a acordo. Ela pode ficar o tempo que quiser. Pode até ir embora, mas por favor volte quando eu contar até cinquenta.

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