O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

O caso Burke

Tudo começou quando ela foi encontrada numa rodovia, morta. Ou será que foi aí que as coisas começaram a acontecer? O que é pior? Lamentar-se por uma coisa que fez? Ou por uma que deixou de fazer?
Eu jamais havia faldo com alguém de fora do país. Até aquela manhã de segunda-feira. Eram oito e quarenta e quando meu celular indicou aquele número estranho, composto apenas de zeros, eu atendi no mesmo instante. Já havíamos nos falado algumas vezes, mas sempre eram conversas via internet, apenas texto. Nenhuma voz até então.
Meu inglês estava completamente enferrujado, e sua velocidade me deixava sem saber o que entender. Muito menos o que responder. Eu entendia muito pouco, mas dava para perceber sua excitação, sua vontade de vir para o Brasil e reconstruir sua vida aqui. Chegamos a conversar por diversas vezes e me deixava muito feliz o fato de ela sempre dizer que adorava falar comigo porque eu parecia ser o único que realmente a ouvia. Não apenas escutava, ouvia.
Era complicado atender suas ligações, especialmente naqueles momentos que eu estava dentro de um dos infernais ônibus lotados e tinha que encarar os olhares curiosos das pessoas vendo um cara atender e falar a um telefone em inglês. Acho que no fundo, tudo que ela precisava era ser ouvida, e se ela quisesse despejar sua vida seus problemas, seus sonhos e desejos em cima de mim, eu estava completamente disposto a ouvir.
Mas houve uma noite que as coisas começaram a mudar. Eu estava saindo de uma aula importante, quando meu telefone tocou. Na verdade já havia tocado antes, mas eu não pude atender. Era meados de março, quase abril. Sua voz em pânico me deixou assustado. Devo ter dito algo estranho ou feito algum som porque muitos olhos se voltaram para mim no interior daquela lotação.
Seu inglês estava cada vez mais rápido, a voz ofegante, típico das pessoas que estão em apuros. Apesar da velocidade, a mensagem era clara e simples: “a polícia está aqui, e eles vão me matar, preciso sair daqui, tenho que estar aí na sua casa em São Paulo amanhã”. Eu estava perplexo e não sabia muito bem o que dizer. Tudo que eu conseguia falar era: “calma, tente ficar calma, e me explique o que aconteceu”.
Depois de muitos pedidos ela se acalmou e começou a explicar. O “amigo” que havia vindo com ela para o Brasil era procurado pela polícia, tanto brasileira quanto a polícia londrina. Alguém deveria ter comunicado o regresso dele, e agora os tiras tinham uma missão. O velho ditado: “diga-me com quem andas e eu direi quem és”, deve valer internacionalmente. É extremamente complicado provar que você não é um deles quando se está com um deles. Ela agora sabia disso e precisava da minha ajuda. Precisava de uma passagem, ou como ela dizia: “a ticket”.
Quando o dia amanheceu e eu estava outra vez ao trabalho, soube a história dela. Ela mesma me contou. Havia passado por uma instituição correcional, havia ficado lá por um ano, ordens da Scottland Yard. Tinha que usar uma pulseira digital para ser localizada facilmente. Eu sempre fui uma pessoa predisposta a entender os problemas dos outros. Não aceitar, mas entender. Por isso pedi que ela contasse tudo que ela havia feito. Tudo que eu precisava saber. Se era em mim que ela confiava, eu deveria saber toda a verdade para saber como ajudar.
Li com total atenção tudo que ela me contou. Todas as acusações. A lista era interminável. E eu não sabia muito bem o que dizer. Mas como bom advogado de defesa que serei, comecei a ver o lado humano da situação. Nada acontece por acaso. Quando a prostituta estava para ser apedrejada, mesmo tendo confessado e arrependido de seus atos falhos, Jesus disse aos homens com as pedras nas mãos: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Eu sabia que ela havia pagado por seus delitos. Estava em crédito outra vez.
Perdi a conta de quantas vezes alertei para que tomasse cuidado com as pessoas que ela andava, mas ela parecia não me ouvir. Seu mundo fora de seu país, num lugar estranho se resumia a poucos contatos. Ela queria mudar, aprender uma profissão, ser alguém, queria ser um astro do futebol, queria o que todos querem: viver. Andar sem a preocupação de olhar para trás.
Em nossas conversas diárias eu sempre tentava fazer com que minha amiga enxergasse que o mundo era muito mais do que aquele submundo que ela vivia. Sempre irei me arrepender de não tê-la trazido para cá, onde ela pudesse estar limpa, segura e com uma vida inteira pela frente. Nunca desenvolvi qualquer outro sentimento que não fosse o amor de amigo, de irmão. De certa forma, me sentia útil, responsável pelo destino de alguém. Hoje vejo que deveria ter tentado mais, ter sido mais convincente talvez. As coisas talvez pudessem ser analisadas de outro prisma, de outro ponto de vista. Talvez não.
Era uma terça-feira e não devia ser mais de sete e meia da noite em São Paulo. Eu estava online no meu MSN quando um amigo me chamou. Respondi prontamente. Sua pergunta era simples e rápida: “ela está aí na sua casa?” respondi que não e farejei encrenca. Quis saber os motivos da pergunta. Como resposta recebi apenas um “ela está desaparecida desde domingo, e como sei que você se importa muito com ela, pensei que ela pudesse estar aí”.
Não estava. Jamais esteve. Foi então que li uma das frases mais duras, mais dolorosas da minha vida: “encontraram ela numa mala”. Jamais irei esquecer aquela noite. Minha reação foi automática: “Não!”, digitei mas minhas mãos tremiam tanto que eu não conseguia controlar. A seguir vieram os detalhes, os requintes de crueldade.
Eu não sabia o que fazer. Meu instinto, e foi puramente por instinto, me levou ao jornal da minha cidade. A reportagem estava lá, mas não havia nome algum. Poderia ser um terrível engano. Voltei para casa completamente perdido nos meus pensamentos. Meu rendimento no trabalho na quarta-feira foi péssimo. Então na quinta-feira de manhã, quando entrei no trabalho, a revelação.
Cumprimentei a todos como sempre. E corri para o computador. Abri a página do jornal da minha cidade. A matéria da capa: “Homicídios crescem 33% em Goiás”. Abaixo, a foto da minha amiga. Não consegui ler a reportagem, corri para o banheiro. Ajoelhei diante da privada e vomitei. Joguei água fria no rosto e voltei para a sala.
A polícia de Goiânia encontrou nesta quarta-feira, embrulhado em sacos plásticos, dois braços que podem pertencer a Cara Marie Burke, inglesa, dezessete anos, cujo tronco foi encontrado numa mala numa rodovia...
Minha aula começava em dez minutos. Foi a pior da minha vida. Eu não conseguia me concentrar. Minha voz estava embargada. As palavras se recusavam a sair. Por dentro eu estava gritando. Eu não queria aceitar. Não podia.
Durante horas fiquei ali, sentado, olhando o nada, tentando entender o tamanho da minha culpa. Quando cheguei em casa, já muito tarde da noite, o Jornal da Globo mostrava o que eu não queria ver. A mesma foto que ela havia me mandado semanas atrás. Não resisti, chorei.
Poucas coisas são tão dolorosas quanto perder alguém que se tornou tão importante em nossas vidas. A sensação de perda, de impotência, o gosto amargo que fica na boca dos que permanecem, o buraco em nosso peito quando alguém se vai e lentamente começamos a perceber que não há mais volta. Talvez não exista dor maior.
Ontem, já passados alguns meses depois de tudo isso ter acontecido, quando ia dormir, eu estava mudando de canal aleatoriamente quando resolvi parar e ver o jogo de futebol feminino. Lembrei da minha amiga. Talvez um dia ela estivesse usando aquele uniforme verde e amarelo. Talvez estivesse escrito: Cara, ou Marie ou Burke nas costas. As lágrimas vieram espontaneamente.
Algum dia irei a Londres. E direi a Anne Marie, sua mãe, tudo que aconteceu, meu “point of view”. Espero que minha amiga descanse em paz. A paz que infelizmente não encontrou em vida. Só quero que a culpa por não tê-la tirado de lá enquanto havia tempo, desapareça dos meus ombros. Tudo que posso fazer agora é esperar e tentar parar de querer encontrar respostas para o que não há resposta.
Existem coisas que nem o tempo pode apagar. Feridas tão profundas que levamos para sempre em nossas vidas. Espero um dia poder reparar tudo que deixei de fazer pela minha amiga. Espero mesmo.
Rest in peace, my friend.
Lots of love.

Caminhos de Santo Amaro

Toda quinta-feira a noite a Sra. Elizabeth Coelho se arrumava e saía para gastar parte da sua fortuna herdada de seu marido, o ex-coronel Moacir Ramalho Valente, em um bingo de Santo Amaro. Seu marido a havia deixado, com uma conta gorda a render juros no banco, quase tão gorda quanto ela.
Colocava seu vestido branco com flores em rosa, prendia seus cabelos loiros acinzentados pela idade, e usava sua melhor maquiagem, todas as vezes que ia jogar. "É para dar sorte", costumava dizer quando questionada por que se vestia daquela maneira. Os anos haviam sido gentis com ela, que aos setenta e dois anos, conservava a aparência de uma mulher de cinqüenta anos.
Seus dois filhos, Heitor e Heloisa Valente estavam crescidos e tinham suas próprias famílias, e raramente apareciam na residência da mãe. Mudaram-se para o interior de Santa Catarina depois que se casaram, e apenas no final de ano era possível o reencontro. Apesar de ter muito dinheiro, a Sra. Elizabeth Coelho preferia uma vida simples e continuava a morar naquela mesma casa , cor de pêssego e de grades marrons com setas na ponta.
Depois da maquiagem pesada a Sra. Elizabeth Coelho já estava pronta para mais uma noite de jogatina intensa e animada com seus amigos de vício e conhecidos que se encontravam no Bingo 13, na parte mais movimentada que era Santo Amaro durante o dia.
O frenesi dos camelôs e ambulantes que invadiam as calçadas e acreditava-se serem os maiores causadores pelos transtornos no trânsito que chegava a ser caótico em determinados horários, diminuía drasticamente à noite, quando a tranqüilidade dizia presente. Tranqüilidade esta a atraia a atenção de bandidos e outros elementos pouco desejados por ali, a não ser pelos próprios colegas, talvez nem por eles mesmos.
Foi ali, naquele mesmo beco escuro, onde a Sra. Elizabeth Coelho havia estacionado seu carro horas antes, que ela foi levada por quatro homens encapuzados e com armas nas mãos, logo após ter ganho dois mil reais no jogo. A noite tinha sido ótima ate então, os gritos de Bingo! foram mais intensos do que o habitual.
Não eram raras as vezes que Dona Elizabeth ganhava. Já chegara a ganhar semanas seguidas, mas hoje havia sido diferente, quase todo o dinheiro que havia na sua bolsa havia sido deixado nos cofres do Bingo 13, e ela precisava recuperar as rédeas da noite. Não que ela precisasse daqueles quatrocentos reais que tinha levado, era mais uma questão de vencer, de tentar através da diversão, mostrar a si mesma que ainda estava viva e poderia ainda ter o domínio sobre o seu destino.
Mal ela poderia imaginar que estava completamente errada, pelo menos naquela noite. Os sorrisos amarelos dos jogadores que não ganhavam, se misturavam aos sorrisos autênticos de Dona Elizabeth que acabara de levar para casa dois mil reais. Finalmente havia recuperado o dinheiro que havia gastado e ainda levara o dobro do valor original para casa.
Os quatro homens que a iriam seqüestrar já estavam estrategicamente posicionados na saída do local, esperando apenas que a vitima estivesse longe da proteção dos seguranças e viesse para a escuridão da noite, para que então pudessem colocar seu plano maquiavélico em prática.
Era meia noite quando Dona Elizabeth saiu do Bingo 13 e caminhou como sempre, lentamente, rumo ao seu carro, um Lada Laika vermelho de vidros decorados de adesivos e frases sugestivas. Henrique e Heloisa, seus filhos sempre diziam para que a mãe trocasse de veículo, e comprasse um modelo mais novo, mais confortável, mas Dona Elizabeth sempre afastava a idéia de trocar seu precioso Lada, tinha sido um presente de seu marido.
Pouco antes de entrar no Bingo para jogar, havia estacionado num beco escuro, perto da Avenida Adolfo Pinheiro, no mesmo lugar de sempre. Talvez tenha sido isto também que tivesse despertado a curiosidade dos seqüestradores. Abriu a bolsa e retirou a chave do veículo que era presa por um chaveiro. Mal encostou a mão no carro e sentiu quando uma pancada seca a atingiu pelas costas. Tentou gritar, mas a voz não saía, tinha sido golpeada na altura dos pulmões. Tentou se levantar, apoiando as mãos agora muito trêmulas, uma no meio fio e a outra no asfalto, quando sentiu um violento chute no estomago, que a fez girar e cair novamente, desta vez com as costas no chão. Seu vestido agora rasgado, mostrava o sangue que fluía do queixo. Foi quanto sentiu dois pares de mãos levantá-la, enquanto o terceiro homem abria a porta do veículo, e o último homem do grupo abria sua bolsa.
Dona Elizabeth foi jogada violentamente no banco de trás, batendo a testa no aro da janela . Tudo foi rápido que ela não viu a face dos homens e logo tudo ficou escuro, um capuz fora colocado em sua cabeça, e uma cotovelada no nariz a fez desmaiar.
O veículo começou a se movimentar, e logo foi ganhando mais e mais velocidade. No fundo do carro, Dona Elizabeth e mais dois homens, que agora olhavam com atenção os documentos encontrados, identidade, cartões de crédito. Um deles, contava o dinheiro que serviria para comprar drogas ou bebidas.
Um buraco no asfalto, na altura da avenida Adolfo Pinheiro quase esquina com a rua Américo Brasiliense, fez o carro chacoalhar inteiro, quando as rodas do lado direito bateram, e as molas de suspensão chiaram. Dona Elizabeth enfim acordou, tinha ficado desacordada, desde que batera com a cabeça dentro do carro. Ao mesmo tempo em que tentava ficar calma lembrou do que havia sofrido, e então constatou que se tratava de um seqüestro.
Já tinha lido inúmeras reportagens sobre pessoas seqüestradas, e sabia para seu próprio desespero que alguns seqüestros duravam desde alguns minutos, até semanas inteiras, às vezes meses, e algumas nem mesmo voltavam para casa. Começou a chorar baixinho para não chamar a atenção mas não foi possível.
- Cale-se sua velha miserável", disse um dos homens.
- Fique quieta e talvez volte a jogar bingo com a velharada - disse, dando uma risada sarcástica, sendo acompanhado pelos outros passageiros. Sem saber o que dizer ou fazer, Dona Elizabeth pensou e decidiu que o melhor a se fazer seria ficar em silêncio, já que a qualquer momento poderia levar outra pancada e se machucar mais. "Eles ainda vão pagar por isto", pensou.
Pelo que o carro andava, Dona Elizabeth Coelho suspeitou que estivesse muito longe, talvez nos arredores de São Paulo ou em um bairro distante que não conhecia , mas os bandidos estavam na avenida Vereador Jose Diniz, seguindo em direção à Vila Mariana, local do cativeiro em que Dona Elizabeth ficaria. Se o resgate fosse pago.
O veículo parou e uma das portas foi aberta . Um dos homens saiu do carro. Logo ouviu-se o barulho de um portão abrindo. O carro voltou a andar. Assim que sentiu o veículo parar e os outros homens saírem do carro, Dona Elizabeth também sentiu um calafrio. Seria aquele seu último destino?
O veículo estava com os vidros fechados, mas ainda era possível saber que os homens conversavam lá fora. Falavam algo que ela não conseguia entender. Tentou apurar os ouvidos, mas não conseguia discernir as palavras . Assustou-se quando o homem bateu com a mão espalmada no vidro e ela deu um pequeno salto, fazendo o carro balançar.
Não tinha a menor idéia de onde estava naquele momento, mas de uma coisa tinha certeza, de que seu medo tomava conta de cada célula do seu corpo quando sentiu que os homens entravam novamente no carro e este começou a se movimentar.
Mais uma vez ela estava nas ruas à deriva de bandidos. Perguntou: "Que horas são?", a resposta foi sarcástica: "Por quê? Vai a algum lugar?" disse um dos homens, soltando uma risada alta, o que assustou ainda mais Dona Elizabeth. “Minha medicação tem horários controlados, se eu não a tomar na hora certa, terei um espasmo, e acho que não seria nem um pouco vantajoso para vocês”. Quando terminou de dizer estas palavras, ela conseguiu entender a dimensão do risco que correra dizendo aquilo para os bandidos.
Talvez eles não quisessem mesmo ter trabalho extra com ela, talvez já até tivessem conseguido o que queriam, talvez dois mil e poucos reais já fossem suficientes, e eles agora sacariam suas armas e atirariam nela, e a deixariam em uma rua qualquer jogada ao relento, jazendo ali, inerte ate que alguém visse o corpo e avisasse a policia. Mas isso não aconteceu. Os bandidos se entreolharam e um deles fez um movimento com a cabeça indicando que o remédio deveria ser entregue.
Dona Elizabeth Coelho engoliu os comprimidos a seco. Os remédios que a faziam dormir começaram a fazer efeito dez minutos depois. "Se eu morrer hoje, dessa maneira, que pelo menos seja de uma forma indolor" pensava. Adormeceu. Suas mãos foram amarradas e ela foi levada a um quarto, seu cativeiro.
Quando Dona Elizabeth acordou aquela manhã de sexta-feira, tudo parecia girar ao seu redor. Sua cabeça latejava. Seu vestido branco, estava irreconhecível;. Os cortes sofridos por Dona Elizabeth de seu corpo estavam agora roxos e ela sentia muitas dores . Não tinha idéia das horas e de onde estava.
Tinha certeza de que algo havia saído dos eixos. Uma fresta de luz entrava elas janelas, e esta luz criava uma imagem fantasmagórica no interior do quartinho de dois metros por dois. O local cheirava a naftalina e alguns jornais e trapos estavam espalhados pelo chão frio .
Dona Elizabeth jamais dormira no chão e agora sentia os efeitos nos seus braços, cabeça e joelhos.
Levantou-se com dificuldade, apoiou uma das mãos no chão, fazendo um esforço sobrenatural para erguer tanto peso. Mal tinha ficado de pé e um soco na portinha do quarto a assustou. Pôde então ver a silhueta de um homem alto, com cabelos curtos e espetados, mas não conseguiu ver seu rosto já que a luza matinal quase a cegara.
O homem se abaixou, colocou um prato de metal, e um copo com água. Sentia fome e se dirigiu rapidamente ao local onde o prato e o copo estavam e comeu o pão seco em questão de segundos. Bebeu a água e sentiu alivio, sentou-se, e não conseguiu pensar em mais nada. Adormeceu novamente.
O senhor Arnaldo Costa Lemes ao chegar às sete e quarenta e cinco da manhã na casa de Dona Elizabeth, como fazia todas as manhãs, estranhou o fato do carro não estar na garagem. Tocou a campainha da casa que era a quinta casa da rua da Paz, e tinha o numero 113, ninguém atendeu. Arnaldo Costa Lemes era aposentado, mas sempre encontrava um jardim para cuidar, e assim manter-se ainda ativo na profissão e ao mesmo tempo conseguir aumentar sua renda de aposentado.
Todos os dias pontualmente às sete e quarenta e cinco ia à casa de Dona Elizabeth tomar café recém passado, e trocar algumas palavras com sua amiga de tantos anos. As únicas pessoas que sabiam do seu envolvimento amoroso com a viúva do ex-coronel eram apenas eles dois. O caso dos dois havia começado a muitos anos e a outros tantos já havia terminado, mas tudo aconteceu durante a vida do coronel Moacir.
Era de se estranhar o fato de Dona Elizabeth não estar em casa. Chamou o vizinho mais perto que estava próximo ao portão, mas também não obteve informação alguma. Por coincidência uma viatura policial fazia a ronda por aquela rua. Não pestanejou e parou o veículo. Os policiais desceram e ouviram o senhor Arnaldo. "Alguma coisa tem que ser feita" instava ele com os policiais, que neste momento tocavam a campainha da casa insistentemente. Usando um pé de cabra o policial abriu o cadeado da grade, e entrou no quintal da casa.
Ao entrar na casa, acompanhado pelo senhor Arnaldo, os policiais procuraram por todos os cômodos da casa por algum vestígio, com Lippy, o cachorrinho branco de estimação da dona da casa aos seus calcanhares, latindo e rosnando, mas tudo que conseguiram encontrar foi a agenda telefônica, onde logo localizaram o número de telefone celular de D Elizabeth. Foi aí que as coisas começaram a se encaixar.
A cerca de dois meses atrás, no aniversário de setenta e dois anos de dona Elizabeth Coelho, Heloisa, sua filha, trouxe o presente que sem saber, salvaria a vida da mãe. Era um aparelho telefônico celular que mostrava em tempo real qual era a exata localização da pessoa que o estava usando. Tudo era monitorado por satélite e rastreado por um chip GPS.
Apesar de Dona Elizabeth não gostar das novidades tecnológicas que seu dinheiro podia comprar, mesmo assim, naquela noite de quinta-feira acabou levando seu aparelho, não porque quisesse ser encontrada, e sim porque Georgette Alves, sua amiga de tantos anos acabara de telefonar assim que Dona Elizabeth entrou no seu Lada vermelho em direção ao Bingo 13. Falavam muito e pareciam não ter noticias umas das outras a muitos anos, embora com freqüência as duas se encontravam, ora na casa de Dona Elizabeth ora na casa de Georgette para tomarem o já tradicional chá .
Caso o aparelho estivesse ligado, seria possível identificar onde a vitima poderia estar. O tenente Amauri que dirigia a viatura chamou o posto da policia mais próximo e informou o caso. Outras providências foram tomadas.
O rastreamento começou e logo mostrou que o aparelho estava em poder de uma pessoa em movimento. A pessoa estava próxima ao cruzamento da Rua da Fraternidade com a Avenida Santo Amaro. A viatura do tenente Amauri, junto com outras duas se dirigiram para o local informado atrás do algo. Voavam, chegando ao local com as sirenes desligadas para não chamar a atenção, um dos policiais que estava no banco de trás ligou para o telefone, enquanto observava a reação das pessoas que trafegavam pela Avenida Santo Amaro. O homem que estava com o telefone deu um salto e ficou ali mesmo estagnado com o susto que levou quando atendeu a chamada. Cercaram o suspeito encostaram-no na parede, gritando como fazem as vezes os policiais.
Com as viaturas atravessadas na Avenida Santo Amaro no sentido centro, apenas duas faixas da avenida ficaram disponíveis para o fluxo dos veículos, o que aumentava vertiginosamente a quantidade de veículos engarrafados, procurando passagem a qualquer custo.
Com as mãos algemadas, o rapaz explicou por duas vezes a história de como tinha comprado o telefone de um "amigo". A maneira como narrou a história por duas vezes seguidas sem tropeçar nas palavras fez com que os policiais informassem o caso ao grupo de operações especiais, o GOE. O rapaz suspeito fora detido até que o assunto fosse resolvido.
Dentro da viatura o rapaz informava o local onde havia encontrado o tal amigo que ele mesmo não lembrava o nome e o tipo físico, lembrava que era alto, loiro e com corte de cabelo no estilo militar. O retrato falado do suposto seqüestrador fora feito e divulgado.
Dona Elizabeth estava a quase vinte e quatro horas no seu cativeiro e tinha que encontrar uma maneira de sair dali. Dona Elizabeth se recordava que os seqüestradores ficavam horas sem aparecer no quartinho só aparecia quando iriam levar comida para ela e tentar forçá-la a revelar o telefone dos filhos para que então pudessem exigir o resgate. Mas isso era em vão. Quanto mais Dona Elizabeth apanhava, mais resistente ficava, e relutava em revelar as informações que os seqüestradores queriam. Só não sabia até quando iria agüentar aquela pressão.
Pensava se de repente alguém tivesse visto seu carro sobre a calçada de alguma rua e avisasse a policia, mas não levou muito a sério esta possibilidade. Foi quando teve uma idéia. Tateou pelas paredes indo em direção à luz que entrava pelas frestas das tábuas que cobriam o espaço que antes era uma janela, percebeu que as tábuas que haviam sido colocadas ali tinham sido parafusadas. Imediatamente retirou o anel de seu dedo e começou a afundar a ponta do anel na fissura da cabeça de um parafuso. Foi muito difícil fazer o parafuso girar mas lentamente o parafuso cedeu. E assim aconteceu com todos os outros parafusos. Durante a noite se ela ainda estivesse ali, tentaria a fuga
A escuridão começava a ficar total dentro daquele cubículo, agora deveria ser umas sete horas da noite. Mais uma vez um soco na porta, e o mesmo rapaz a servir um prato, desta vez com uma sopa rala que Dona Elizabeth recusou assim que o rapaz virou as costas. De repente, um barulho de pneus cantando indicava que o carro que estava no quintal daquela casa, logo estaria fora dali. Se era o seu carro ou outro, Dona Elizabeth jamais iria saber. A única coisa que sabia era que iria tentar sua escapada.
Embora não tivesse idéia de onde estava, estava determinada a sair e gritar por socorro, removeu todos parafusos pulou a janela com dificuldade, engatinhou no chão e encaminhou-se para rua. Andando agachada para tentar não ser vista, Dona Elizabeth pôde ver um homem sentado em uma cadeira de praia na varanda dos fundos da casa, de olhos fixos no barraco.
Pensou em quanto tempo ficaria ali. Por uma sorte grande, o homem da cadeira levantou-se e se dirigiu para o interior da casa. Continuou a andar e passou por um corredor que havia do lado direito da casa, com acesso a um portão. “E se o portão estiver trancado?” era o que pensava agora Dona Elizabeth.
Caminhou para a frente da casa, passando pelo corredor, e viu que uma escada de madeira, estava escorada em uma parede próximo ao muro que daria acesso à rua. Subiu a escada imaginando quando terminaria aqueles curtos e intermináveis degraus, que dariam a sua tão esperada liberdade. Finalmente chegou ao final do muro, pulou e quando tocou o chão, torceu o tornozelo . Segurou o grito e andou até o final da quadra. Chegou à esquina. Estava livre.
Um facho de luz azul e vermelha chamou a sua atenção. A luz ficava mais perto a cada instante, e quando a viatura chegou perto, Dona Elizabeth saltou na frente do veículo pedindo socorro. Estava finalmente salva.
Indicou o lugar de onde viera para os policiais, após contar sua triste história. O tenente que estava na viatura, pediu reforços imediatamente. Três outras viaturas chegaram ao local, onde preparavam uma emboscada aos seqüestradores. Dona Elizabeth informou que talvez eles não estivessem ali, pois o cantar de pneus e o sossego do local, dava a entender que talvez só o homem da varanda do fundo da casa estivesse no local.
Não havia mais tempo a perder. A policia chegou ao local, foram até a casa ao lado de onde era o cativeiro e chegando ao muro subiram, a fim de surpreenderem quem estivesse na casa. Um barulho de portão se abrindo chamou a atenção dos policiais que se prepararam para atacar. O carro em que estavam os seqüestradores, entrou e foi estacionado.
Assim que desceram do veículo, os policiais os surpreenderam. Exigiram que soltassem as armas para que ninguém saísse ferido. Mas os seqüestradores sacaram suas pistolas. Foi quando uma chuva de balas crivaram os corpos dos seqüestradores, que caíram inertes no chão. Estava consumado.
Dona Elizabeth despertou. Seu pé fora engessado. O relógio marcava sete e quarenta e cinco da manhã, e um cheiro agradável chegava ao seu nariz. Ouviu passos na cozinha. De repente a figura do senhor Arnaldo entrou pela porta, trazendo consigo uma bandeja com café e biscoitos amanteigados. Dona Elizabeth piscou os olhos demoradamente e pôde então ter certeza de que tudo estava novamente sob controle.
- O que acha de uma viagem para esquecer tudo? - perguntou o senhor Arnaldo, vendo que não iria mais acordá-la já que estava desperta.
- Pensarei no caso, mas não será esta semana - respondeu Dona Elizabeth, pegando a xícara já com café e aproximando da boca.
- Acho que deveria, você precisa descansar – insistiu.
- Não se preocupe comigo. Estou ótima, e vou ficar ainda melhor logo.
- O que pretende fazer? – questionou o senhor Arnaldo.
- Jogar no Bingo 13 – respondeu com um leve sorriso – Acho que estou com sorte.

Lost & Found

Eu estava em casa, terminando de ler “O vencedor está só”, do Paulo Coelho. Sou um apaixonado por livros, principalmente aqueles que contam as minhas histórias. Igor, o personagem principal perde a mulher da sua vida porque estava tão envolvido com trabalho, tão preocupado em vencer e ser alguém na vida (coisa que ele já era) que acaba deixando de viver o que é mais importante na vida: o seu amor.
Quando se dá conta de sua perda irreparável, começa a mandar mensagens para sua amada. Mas tenta uma reconquista da maneira mais macabra possível: matando pessoas num festival. Só quando consegue fazê-la entender que seu amor é verdadeiro é que percebe que aquela mulher não merece nada daquilo, que ele é muito mais do que ela e que perdeu muito tempo de sua vida em algo que não valia a pena, muito menos seu precioso tempo.
No momento que terminei a ultima página, caiu uma ficha na minha cabeça. Eu quase poderia ouvir o som. Muita vezes, quando amamamos (ou achamos que amamos) fazemos coisas absurdas, idiotas, tentando mandar mensagens, recados que nunca são ouvidos quando a outra parte já não se interessa mais.
E continuamos a nos doar, a persistir, pensando que tudo pode ser uma crise, um bloqueio emocional da outra pessoa, mas que um dia vai passar e tudo voltará a ser como era antes. Mas em alguns casos, nos esquecemos que para algumas pessoas, amar é uma palavra estranha, tão estranha como a felicidade.
Acostumamos tanto com decepções, traições, desinteligências, que estranhamos quando o melhor da vida bate à nossa porta e pede para entrar. Batemos a porta em sua cara, conscientes que a oportunidade pode não mais voltar, mas pelo menos estamos seguros lá dentro de nossas clausuras, onde existem os medos que já nos acostumamos e a companhia das pessoas que não temos garantia que estarão ali quando mais precisarmos, lá dentro, onde no escuro da noite iremos chorar nossas dores, mas onde continuaremos a vestir nossas máscaras para que o mundo pense que somos felizes, que somos fortes e que tudo vai bem em nosso mundo.
Mas quando acaba a festa, e a bebida já fez efeito, e estamos de novo sozinhos, com gripe, ou dor de cabeça, querendo que aquela oportunidade bata na porta outra vez, porque agora iremos agarrá-la e não iremos mais soltar, porque agora temos coragem de viver os planos que ainda não passaram de planos, quando o medo foi mais forte, nessa hora, só o silêncio se faz presente e de cada canto extremo dos olhos rola uma lágrima, como que querendo pedir desculpas a nós mesmos por ter que viver outra noite naquele estado. E outra noite. E mais uma.
Nosso tempo nesse planeta é muito pequeno para desperdiçarmos com medos, caprichos, traumas e bloqueios. Às vezes as soluções estão bem aí, ao alcance da nossa mão. Dores aparecem, decepções nascem, mágoas surgem, e vem e vão para todos nós. Mas e daí? Coma os morangos da vida!
Roberto Shinyashiki, o grande psiquiatra, conta que certa vez um homem estava sendo perseguido por um urso e chegou a um precipício, escorregou mas conseguiu se agarrar à raiz de uma árvore. Lá em cima estava o urso, lá em baixo, sete tigres. Estava perdido. Mas ele olhou para o lado e perto da raiz estava um morango vermelhinho brilhando ao sol. Ele comeu o morango e foi o melhor morango da sua vida. Dane-se o urso e os tigres, mas coma o morango.
Às vezes os morangos estão aí e nem percebemos. Ou esperamos o tempo passar e ver se os ursos e tigres vão embora para comermos os morangos em paz, pra somente depois vermos que a frase célebre do imortal Willian Shakespeare era pura verdade: Oportunidades nunca são perdidas, alguém vai aproveitá-las para você.

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