O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Alto Controle - por Handerson Pessoa

Como era de costume, pontualmente às sete da noite, o Dr. Sidney Macintosh, advogado e consultor jurídico, pediu sua pizza favorita, atum e aliche, tomou um rápido banho, saiu, vestiu roupas de ginástica embora não fosse fazer exercício algum, entrou em seu laboratório, que ele insistia em chamar de escritório e pegou o controle remoto na segunda gaveta da escrivaninha.
A sala de controle era a maior parte do apartamento e agora possuía dez monitores de plasma cada um com trinta e duas polegadas, um monitor para cada apartamento do edifício Garden of Eden, menos o seu que ficava na cobertura, é claro.
Toda sexta-feira o ritual era o mesmo. A pizza, as roupas de ginástica e a entrada triunfal no escritório. O Dr. Macintosh, sem que ninguém soubesse, tinha uma cópia das chaves de cada apartamento, e foi assim que ele instalou uma micro-câmera em cada um dos ambientes dos apartamentos vizinhos, pouco acima das lâmpadas centrais e assim via e ouvia cada passo, cada movimento que acontecia nos andares abaixo.
Como a sala tivesse um sistema de contenção de ruído, o Dr. Macintosh, para o espetáculo dessa noite, aumentou o volume do aparelho de som quando a banda Sixpence None the Richer, começou a cantar Don't Dream it's Over e ali no centro da sala, ele dançava e girava agarrado a uma cadeira e mordiscando um pedaço da pizza.
Em cada um dos monitores, cenas diferentes, mas pouco movimento. Os vizinhos em sua maioria ainda não haviam chegado em suas casas, mas isso não demoraria a acontecer. Durante os últimos seis meses, ele havia memorizado o horário de chegada e de saída de cada habitante ali, e pelas lentes das minúsculas, imperceptíveis câmeras ele já tinha visto de tudo.
Via o marido da doutora Cindy, trinta e um anos, médica e cirurgiã se encontrar com a amante que sempre vinha com o pretexto e o disfarce de personal training e via em close-up todo o frenesi que virara o segundo andar nas noites de sexta-feira. Certa vez, o Dr. Macintosh apanhou o telefone, ligou para o hospital St. Michaels e informou que o marido da Dra. Cindy sofrera uma queda durante o banho e que ela deveria voltar para casa imediatamente.
A Dra. Cindy chegou em casa e flagrou o marido nu, amarrado na cabeceira da cama pelos pulsos e a amante com uma fantasia de escrava sexual. As câmeras flagraram tudo enquanto o Dr. Macintosh se acabava de tanto rir. Três meses depois da separação veio a reconciliação.
No sexto andar, o problema era outro. Numa das noites de sábado, quando o Sr. Klaus e a Sra. Judith, ambos bancários, faziam uma viagem romântica, os filos davam uma festa particular, onde maconha e cocaína eram apenas o aperitivo para o prato principal. Tudo sem o consentimento de seus pais é claro. O Dr. Macintosh ligou para a polícia e quinze minutos depois, os dois filhos do casal eram levados, algemados para uma delegacia.
Também pelas câmeras, ele viu o apartamento dos Rooney ser assaltado e chamou a polícia mais uma vez, evitando o assalto e viu a senhora Margie apanhar do marido tantas vezes que ele chegou até a pensar em comprar uma arma para dar cabo ele mesmo no troglodita do marido dela, o rude senhor Thomas.
Mas a melhor parte do show era quando a vizinha do décimo andar chegava, às nove da noite. Para o momento da chegada da srta. Kate Carter, o doutor Macintosh ligou o maior monitor, o de sessenta e três polegadas, pegou uma garrafa de cerveja, tomou-a quase de uma vez sem precisar de copo, sentou-se na poltrona, colocou os pés sobre uma cadeira e acendeu o cigarro.
Já havia assistido àquela cena tantas vezes que já sabia de cor, quais seriam os próximos passos dela. Adorava vê-la tirar a roupa e andar pelo apartamento apenas com a parte de baixo da lingerie. Via a vizinha tomar banho todos os dias e sabia exatamente quais eram as peças no seu guarda-roupas, os livros que ela lia, as músicas que escutava e os amigos para quem ligava.
O Dr. Macintosh estava apaixonado por ela e não acreditava que ela estava ali, tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Um dia não resistiu ao impulso e ligou para ela. Era estranho como dois vizinhos separados apenas por um teto e uma camada de cerâmica viviam há tanto tempo ali e não se conheciam. Marcaram um café, na casa dela. Na semana seguinte foram a uma cinema e só então começaram a namorar.
Tudo se complicou numa noite quando o Dr. Macintosh deixou os monitores ligados enquanto descia para ver a Kate. Faltando pouco mais de doze degraus, ele se desequilibrou, pisou em falso e caiu, batendo a cabeça. Kate abriu a porta e viu seu namorado caído. Com esforço levou-o para dentro e limpou as manchas de sangue no rosto do Dr. Macintosh. Subiu os degraus para pegar alguma roupa limpa para ele. A porta estava destrancada.
Foi quando ouviu um som estranho. Foi um pouco mais para dentro da casa e abriu a porta do escritório. Não acreditou no que viu. Todos os andares sendo monitorados e na tela maior, seu namorado deitado semiconsciente no sofá. Nas gavetas da mesa, centenas de fotos suas, vestidas, não-vestidas, no banho, na cama. Não hesitou. Ligou para a polícia.
E agora, o Dr. Macintosh, advogado e consultor jurídico mora em uma cela, junto com dois outros advogados corruptos numa prisão de segurança mínima em Denton, Arizona. Os companheiros da prisão são pacíficos, lá não é admitida a violência, mas por precaução, todo o lugar é monitorado vinte e quatro horas e todos os movimentos no interior e exterior da prisão são registrados pelas câmeras de segurança. As câmeras, segundo o diretor, são indispensáveis para manter o alto controle sobre quem quer que seja.

Pretérito Imperfeito - por Handerson Pessoa

Quando o Marcos falou que sua amiga Alessandra tinha terminado com o namorado, o Eliseu não perdeu tempo. Parou na primeira farmácia que viu na sua frente, comprou dez fichas telefônicas e foi tentar a sorte.
Respirou fundo, gritou na sua mente: "Gerônimo", colocou o dedo indicador na roleta do telefone, discou o numero do telefone da Alessandra e esperou. Colocou cinco fichas cinzentas no aparelho depois do terceiro toque.
- Alô - ela disse
- Oi, posso falar com a Alessandra?
- É ela.
- Alessandra? Meu nome é Eliseu e sou amigo do Marcos.
- Ah sim, ele me falou de você - ela disse - olha, me desculpe, estou um pouquinho ocupada agora. Será que você pode ligar um pouco mais tarde?
- Claro - ele falou - quer horas? Quero muito te conhecer.
- Não sei, umas dez horas pod ser?
- É claro, ligo às dez em ponto.
- Valeu, tchau
Eliseu desligou e ouviu o barulho das fichas caírem no aparelho, devolvidas. Era o ano de 1996 e ele ainda não tinha o luxo de ter telefone em casa. Foi para casa, os olhos fixos no relógio, enquanto os ponteiros hesitavam em funcionar. Dez horas. Telefone de novo.
- Alô
- Alô. Quem está falando? - Eliseu perguntou.
- É a Poliana, o que você quer?
- Então, a Alessandra está?
- Desculpe, ligou para o número errado.
- Sua voz é linda. Que pena que foi um engano.
- Relaxe, tchau
- Ei espere - Eliseu disse - Fiquei louco pela sua voz. Será que a gente pode se continuar falando?
- Ah. Sei lá. Liga aí, quem sabe né?
Foi a deixa que ele queria. Dois meses depois de muita conversa (e inúmeras fichas telefônicas) eles se encontraram. Decepção total. mesmo assim ele resolveu ligar no dia seguinte, só para dar um último "oi" e depois esquecer de vez aquele número de telefone. "Última ligação", ele pensou.
- Alô
- Alô, eu queria falar com a Poliana.
- Ela não está agora, saiu com o namorado.
- Namorado? Quem está falando?
- É a Matilde, mãe dela, quem é você?
- Meu nome é Eliseu, sou um ... é.... amigo dela.
- Ah sim, o eliseu, ela me falou de você.
- Então é que eu queria entregar um presente para ela.
- Acho que o namorado dela não iria gostar disso.
- Então por que não aceita o presente no lugar dela? Se o seu marido não se importar é claro.
- Sou divorciada, mas adoraria o presente.
- Eu não sei onde você mora.
Depois de muito lenga-lenga, marcaram de se encontrar. Ela tinha trinta e três anos, ele dezenove. Na falta de lugar, resolveram se encontrar na casa dela. No dia marcado, ela mandou os três filhos passar o final de semana na casa do pai e preparou um lanchinho para o seu convidado. A indumentária era simples, camiseta branca sem sutiã e short de lycra da mesma cor. O convidado chegou. Rosas amarelas e brancas na mão. O sorriso? Enorme. Paixão à primeira vista.
Fizeram amor no sofá da sala. Na cozinha. No quarto. No corredor. No banheiro. No caminho para o portão. No portão (enquanto os cachorros vadios da rua latiam sem parar), e na calçada, no muro atrás da árvore. Eram quatro horas da manhã e nenhuma vivalma passava por ali.
Andaram de mãos dadas pelas ruas ignorando os olhares curiosos de todo mundo que passava e via aquele casal tão desigual, tão incomum. Pareciam mãe e filho. Transaram feito loucos. De manhã. De tarde. De noite. Perderam a noção do tempo.
Os filhos dela foram morar com o pai. Ele se mudou para a casa dela. Ela pediu demissão do emprego. Ele foi demitido por justa causa, depois de cinquenta dias de abandono de emprego.
Mas um dia o dinheiro acabou. As contas eram uma pilha sobre um balcão na cozinha. Começaram a brigar. As brigas foram ficando feias até beiraram as raias da loucura e os dois quase partirem para as vias de fato.
Um dia ela acordou e o Eliseu não estava mais lá. Nem as roupas dele, nem nada que pudesse lembrá-lo. Ela pegou um avião e foi para Portugal passar uns dias com uma prima e nunca mais voltou. Ele voltou a morar com os pais, e nunca mais se viram.
Cinco anos depois, o Eliseu viu a Poliana na rua. Atravessou para o outro lado. Ligou para o Marcos para contar as novidades. A Alessandra atendeu. Haviam se casado cinco anos atrás.

Quando você chegar - um poema por Handerson Pessoa

Quando você chegar
é que as estrelas irão brilhar
tudo irá se iluminar
as flores irão desabrochar
os pássaros vão cantar
meu coração descansará
e minha saudade acabará

Quando você chegar
eu quero pegar na sua mão
e te levar para onde a emoção
irá encontrar o seu coração
e quando acabar a sua solidão
você não conseguirá me dizer não
e me amará mais do que a um irmão

Quando você chegar
transformará todo o simples em realeza
acabará com a minha tristeza
trazendo dentro de si toda a beleza
que me fará te amar com toda a certeza

Quando você chegar
eu te levarei para conhecer o infinito
e o seu mundo ficará muito mais bonito
porque eu serei para você muito mais que um amigo
serei para sempre o seu amor
e acabarei com a sua dor
e nossas vidas se encherão de cor
porque vamos fazer com fervor

Quando você chegar
eu poderei parar de sonhar
porque você na minha frente irá estar
como um anjo vai se materializar
e nada mais irá faltar
então minha procura irá acabar
basta apenas você chegar

Encontros e Desencontros - Vol. I - por Handerson Pessoa

As folhas verdes que balançavam do milharal e o céu coberto de nuvens cinza escuro anunciavam a chegada de mais um temporal. Os clarões dos relâmpagos e o ribombar dos trovoes faziam a velha casa da fazenda chacoalhar e de repente, numa forte rajada de vendo, uma das diversas janelas do casarão bateu, estilhaçando os vidros velhos e muito sujos, espalhando cacos por toda a sala.
Grossas gotas de chuva açoitavam o telhado que por um milagre não tinha goteiras. Por onde quer que olhasse, nenhuma outra casa estava ao alcance da visão. Kevin e Mariana agora sabiam disso. A poucos dias hospedados na casa velha da fazenda, tentavam correr para se abrigar da forte chuva.
O milharal parecia interminável, e por mais que corressem, mais encharcados pareciam ficar. As folhas ao tocarem suas peles, provocavam leves cortes, onde finos caminhos de sangue começavam a aparecer em seus braços e rostos.
Os longos cabelos louros de Mariana, antes esvoaçando co vendo na tentativa vã de se manter sécs, agora grudavam no pescoço e se enrolavam nos botões da blusa. Kevin corria à frente. Eram apenas dois adolescentes correndo pelo vasto campo. Ele com dezesseis e ela com dezessete anos, ali naquele lugar pouco conhecido, uma vez que haviam se perdido dos seus pais. Mariana, vendo que quanto mais corria em direção à casa, mais parecia estar longe, parou, desistindo finalmente de lutar contra as forças da natureza. Gritou por Kevin, que àquela hora já havia fugido do alcance de seus olhos, tão densa havia se tornado a plantação.
Kevin ouvia ao longe seu nome ser chamado e quando finalmente percebeu que um perigo poderia ter advindo sobre sua prima de remoto grau, fechou a cara, num sinal de evidente desagrado, e parou. Deu meia volta e caminhou de volta à densidade da plantação que parecia querer engoli-lo.
Longos minutos se passaram quando seus olhos encontraram Mariana sentada em meio à uma possa d’água, com os joelhos unidos, os braços em volta das pernas como que tentando proteger a si mesma da chuva e de seus medos naquele lugar, que agora com a noite caindo, começava a ter uma aula de mistério e horror.
Ele chorava inconsolavelmente enquanto Kevin tentava abraça-la e confortando-a, dizia que tudo estava bem e que ele estaria ali para protege-la do que quer que fosse. O temporal depois de longas, quase intermináveis horas, cessou, trazendo a bonança como diziam os antigos moradores daquelas paragens.
O temporal causou grande dano à plantação, mas também foi o responsável pelo nascimento de uma grande paixão (e por que não dizer, um grande amor?) entre Kevin e Mariana.
As férias dos dois acabariam em duas semanas, e embora os dois agora tentassem ficar o Maximo de tempo juntos naquele lugar onde mais parecia o fim do mundo, o tempo pareceu parar para eles. Foram dias iluminados, dias completamente preenchidos pelos sabores doces e embriagantes de dois corações apaixonados. Ali começava uma historia que nem a força do tempo e dos acontecimentos conseguiria apagar.
Havia ao longe, grossos e altos carvalhos onde a fazenda encontrava seus limites. Ao pé dos carvalhos existia e ainda existe uma sebe, construída com grandes e pequenos fragmentos disformes de rochas e pedras, que alcançavam pouco mais de metro de altura. Sentados à altura da sebe, grandes planos eram traçados por Mariana e Kevin, desde o raiar do dia ate o cair da noite. Juras e mais juras de amor eram feitas constantemente por eles.
Com a aproximação da despedida, ambos fizeram um juramento apaixonado de que um dia voltariam àquele lugar, num tempo onde nada mais os separariam novamente. Cada um dos dois apanhou um pertence. Mariana apanhou um colar que trazia junto ao peito desde os onze anos de idade, e Kevin deixou um relógio, presente de seu pai, que tinha ganhado de seu avô e que tinha sido destinado a pertencer ao primogênito da família, geração após geração.
Juntaram seus pertences em uma pequena lata encontrada num dos galpões da fazenda, perto de donde ficava o estábulo dos cavalos. Fecharam cuidadosamente o recipiente, embalando com diversas camadas de plástico grosso. Escreveram antes de guardar tudo, uma carta destinada ao outro, deixando que a brancura do papel absorvesse todo sentimento puro e verdadeiro de dois jovens que acabavam de conhecer uma das diversas faces do amor, naquela tranqüila manhã de domingo.
Retiraram algumas das pedras da sebe, e depositaram a pequena lata, recheada de amor e provas que marcaram aquela viagem. A cada pedra que ia sendo devolvida ao seu lugar, as mãos dos dois se encontravam e um longo beijo acontecia. Terminaram exaustos por causa do peso das pedras, e então se deitaram sob a sobra dos carvalhos, sobre as pedras, onde sentindo a brisa leve e o cantar dos pássaros, adormeceram por algumas horas, sendo acordados pelo buzinar dos carros, anunciando a partida. Foram três semanas de paixão juvenil, em um a época onde a inocência dominava seus corações.
Lagrimas brotavam dos olhos de ambos, ao verem seus rostos afastados pelos vidros dos carros, enquanto iam tomando caminho pela estrada de terra batida. O moinho que havia mais ao fundo da fazenda girava suas hélices a todo vapor, sinal de que junto com a ventania, outro temporal se aproximava, mas desta vez, a lembrança de como tudo aquilo acontecera, não amenizava a dor da despedida.
Finalmente, seus olhos, grudados no vidro tentando absorver cada fração de segundo que passava, olhando o outro, se perderam, devido à distancia e às curvas. Ma o tempo reservava ainda muitas surpresas.

Dez anos se passaram desde aquela despedida. Mariana andava lentamente pelo interior do escritório onde trabalhava, com um telefone celular nas mãos, acertando os últimos detalhes da inauguração de sua mais nova aquisição na cidade, um restaurante italiano, onde costumavam freqüentar, celebridade do meio artístico e da política, na parte central de São Paulo.
Terminada a ligação, sentou-se em sua cadeira giratória sentindo-se exausta. Fechou seus olhos, debruçando-se em sua mesa com tampo de vidro, quando um som vindo de seu computador a fez despertar. A voz eletrônica dizia: “INCOMING MESSAGE”.
Alguns cliques e lá estava a mensagem escrita:
“Finalmente nos encontramos outra vez. Quanto tempo já se passou? Nove? Dez anos? Parece que foi ontem. Sei que muita coisa aconteceu para você, assim como aconteceu para mim, mas ainda me lembro de tudo. Gostaria tanto de te ver de novo. Será que podemos nos encontrar para relembrarmos os velhos tempos?
Com amor,
Kevin

Encontros e Desencontros - Vol. II - por Handerson Pessoa

A mensagem pegou-a completamente desprevenida. Como ele havia conseguido seu e-mail? Por que aquele interesse para que os dois se reencontrassem depois de tanto tempo? Pensou e pensou antes de clicar em Reply e enviar uma mensagem de retorno. Escreveu diversas linhas e acabou apagando todas elas, até que concordou com a proposta oferecida.
Quando os dois se viram novamente, agora muitos anos depois daquela viagem, souberam instintivamente que aquela historia vivida dez anos antes não tinha acabado, havia ficado pausada, hibernando, esperando quem sabe, o momento certo de retomar o seu curso natural.
Os dois, embora ainda muito jovens em relação ao padrão de idade comum, já haviam passado por tantas situações, isoladamente, que aos vinte e seis anos dele e com os vinte e sete dela, era como se já tivessem vivido várias outras vidas antes de estacionar naquela.
Conversaram por muito tempo, horas, sem que dessem conta disso. Era realmente como se uma locomotiva estivesse agora reabastecida e pronta para voltar à ativa. Mas as regras do jogo agora eram outras.
Embora tivessem vivido uma paixão arrebatadora no passado, ambos, agora casados resolveram continuar a relação na clandestinidade. Os dois tinham tentado resolver suas vidas longe do outro, mas só conseguiram mais problemas. Agora, seus filhos se mostravam como principal empecilho para que aquela reunião pudesse acontecer plena e concretamente.
Uma vez que o casamento dos dois poderia ser comparado a um navio à deriva, com enormes rachaduras no casco e tentando sobreviver às tormentas nos mares da existência, eram os filhos que agiam como diferencial, como divisor de águas.
Era certo que tanto Kevin quanto Mariana jamais deixariam para trás seus filhos, mas também tinham o direito de serem felizes. Embora o sorriso fosse generoso, por detrás daqueles rostos haviam cortes profundos, feridas e cicatrizes que talvez nem o tempo fosse capaz de apagar.
Muitos dias se passaram depois daquele reencontro e agora, vivendo ainda mais intensamente a antiga paixão, ambos estavam tão possuídos um pelo outro que já acreditavam piamente que só haviam eles dois debaixo do sol. Nada mais, exceto seus filhos tinha mais importância agora. O restaurante italiano de Mariana havia sido inaugurado, com um vistoso jantar oferecido a diversas celebridades e agora que a calmaria voltava ao local, o gerente é que se virasse para resolver os problemas do local. Era contratado para isso. Com Kevin, as coisas aconteciam de maneira similar. Não deixava que os problemas e as preocupações do dia-a-dia interferissem na sua relação com Mariana.
O casamento dos dois era irreconciliável. As tentativas para que a vida de casado dos dois voltasse a entrar nos trilhos foram executadas até a exaustão, mas nenhuma delas teve o efeito que eles desejavam.
Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas. Kevin e Mariana após tanto tempo souberam disso. Por isso, estavam dispostos a lutar para manter acesa a paixão entre eles. Àquela altura e devido ao desenrolar dos fatos, ambos sabiam que de nada iria adiantar ficar perdendo tempo tentando mudar coisas que não podem ser mudadas. Os dois eram jovens e tinham diante de si uma leva de batalhas que juntos eles podiam vencer.
Mas aconteceu que um dia, quando a relação dos dois estava praticamente se consolidando, que Kevin ao se encontrar com Mariana, teve a noticia que iria causar um impacto violento em sua vida.
Uma doença, um câncer raro agora estava alojado no cérebro de Mariana. A noticia o acertou em cheio. Não conseguindo se manter de pé deixou-se cair sobre o sofá do apartamento que servia de pondo de encontro dos dois durante todo aquele tempo.
Ao saber dos resultados do exame e devido aos acontecimentos anteriores, o marido de Mariana, Carlos Lima Filho, um famoso arquiteto, resolveu abandoar a esposa e entrou com um processo de separação e outro para obter a guarda da filha, levantando diversas alegações que faziam Mariana parecer uma pessoa muito má.
Considerando o estado físico da mãe, a guarda foi outorgada ao pai e somente a ele. Mariana poderia visitar a filha em horários que haviam sido determinados por ordem judicial, caso ela um dia saísse do hospital.
Tudo aconteceu muito rápido. Desde o resultado dos exames, passando por todo o processo de tratamento do câncer, que era na verdade um tumor maligno, e a decisão do juis sobre seu casamento, tudo isso não passou por mais de oito meses.
Mas embora muito tivessem se afastado dela, Kevin permaneceu ao seu lado por todo o tempo, incólume. Era como uma rocha contra a qual todos os problemas se chocaram, mas ele não se abalou. Continuou ao lado do seu verdadeiro amor, superando todos os desafios e vivendo cada instante ao lado dela de maneira ímpar, singular.

Encontros e Desencontros - Vol. III - por Handerson Pessoa

Os dois viveram, sem que os outros sequer suspeitassem, todas as aventuras e desventuras que poderia sobrevir a dois corações interligados pelo destino. Transformaram cada dificuldade, cada estágio daquela doença em valiosos momentos de alegria. Mesmo quando Mariana perdeu os cabelos nas seções de quimioterapia, mesmo quando ele se separou da esposa e teve que reaprender a viver sozinho, mas longe dos filhos, mesmo quando Mariana perdeu os movimentos dos braços e pernas se mal conseguia falar. Foi num dos raros momentos de lucidez, que ela abriu os olhos e com a voz embargada e meio engrolada, disse a frase que ele, Kevin, jamais esqueceria: “Nem com você, nem sem você”.
Kevin a beijou, primeiro nos lábios e depois na testa. Mariana fechou os olhos e dormiu novamente. Um sono profundo, eterno, onde finalmente ela iria encontrar um lugar como a sebe da antiga fazenda onde costumava ficar ao lado dele e onde juraram que um dia voltariam.
E ela voltou. Voltou porque agora era livre para ir onde quisesse, quando quisesse. Kevin nunca mais se casou ou sequer se apaixonou novamente. Havia sofrido muito e por diversas vezes consecutivas. Agora talvez fosse hora de parar, talvez fosse hora de seguir sozinho o seu caminho.

-“Acorde Kevin, acorde” – dizia a voz em seu sonho. Kevin acordou e se levantou perturbado. Era ela, sem dúvida era a sua Mariana. Mas por que agora ela estava de volta em seus sonhos? Cinqüenta e dois anos haviam se passado desde que ela falecera e ele ainda a tinha em seus sonhos.
Mas este sonho era diferente. Kevin sentia que precisava fazer algo antes que fosse tarde. O dia ainda não estava firmemente estabelecido, quando ele tomou o primeiro ônibus em direção à velha casa da fazenda.
Ao longe avistou os carvalhos que permanecera, resistindo à ação do tempo. Caminhou lentamente até a velha sebe e com dificuldade, porque já estava senil e debilitado por causa da idade, se sentou sobre as pedras e com um esforço quase sobre humano empurrou as pedras de cima da sebe, que agora estavam completamente revestidas de lodo, até que seus dedos tocaram numa superfície plástica.
Lagrimas caíram copiosamente dos olhos enquanto ele relia as cartas que escreveram juntos a tantos anos atrás. Olhou o antigo colar dela que pareceu não envelhecer nem um só dia e ainda conservava aquele brilho de quando ela o tirou do pescoço. Estranhamento, seu antigo relógio ainda funcionava, em um ritmo bem lento.
Chorou por longos minutos, vendo com os olhos fechados, toda a sua vida passar de novo. Os ponteiros do relógio tinham dificuldade agora para trabalhar. Kevin se deitou da mesma maneira como se deitara muitos anos antes no dia em que ele e Mariana tiveram que se despedir. Sentiu seus olhos cansados e fechou-os, sentindo o vento sacudir as copas das árvores e desgrenhar seus cabelos brancos.
Ao longe parecia ouvir as buzinas dos carros, anunciando a partida. Abriu os olhos e viu Mariana ao seu lado. Alguns podem achar que tudo não passou de uma ilusão provocada por uma mente cansada. Outros talvez achem que era o espírito dela que estava ali naquele momento. Embora a conclusão desta idéia fique por conta do leitor, Kevin teve tempo de dizer as palavras, antes que ela se fosse: “Nem com você, nem sem você”.
A figura desapareceu diante e seus olhos, parecendo ter um suave sorriso. Kevin abriu os olhos pela ultima vez e olhou tudo ao seu redor, como que querendo guardar na memória, todos os detalhes que pudesse absorver em um único instante.
Respirou profundamente e pôde jurar que as nuvens no céu bailavam de acordo com a musica dos anjos, e nessa dança formavam as palavras “eu te amo”. Abriu um largo sorriso e morreu, no lugar onde tudo havia começado e agora terminado.
Estava livre da tristeza e da solidão. Estava feliz

Compartilhe

Twitter Delicious Facebook Digg Stumbleupon Favorites More