O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Eu odeio a Mariúsca Cristina - por Tati Bernardi

Mariúsca Cristina tem bigode. Que ela tinge com blondor vagabundo e fica parecendo um gato de rua. Ela tem uma pancinha nojenta cheia de pêlos que ela também tinge com o mesmo blondor vagabundo. Sempre que pode, ela valoriza sua pancinha com alguma mini-blusa de tecido vagabundo com brilhos e calça justérrima com barras de lantejoula.
Mariúsca Cristina, ou Mariúúúú para os colegas (pobre nunca fala que tem amigo, só tem colega), tem um sonho: conhecer o Cristo Redentor. E nesse final de semana, Janderson, seu namorado que trabalha no ramo alimentício (ele limpa o banheiro de um restaurante), planejou pedi-la em casamento justamente no Cristo.
Só que vai ser naquele cabeçudo de Serra Negra mesmo. Que é o que dá pra fazer. Mariúsca vai aceitar, feliz da vida e, para comemorar, o casal vai dormir em um hotel beira de estrada e pedir camarão. A última vez que Mariúúúú comeu camarão foi, foi...Na verdade essa é a primeira vez que ela come camarão. Mais tarde Janderson vai acordar com a maior dor de barriga porque o camarão tava estragado mas vai se recusar a passar mal, afinal, aquele danado do peixe custou mais de vinte reais o casal.
E eu odeio a Mariúsca, com toda a força do meu ser. Odeio sua voz de sonsa e seu sotaque entre o analfabeto e o mongolóide. Odeio que ela rebole sua bunda gigantesca como se uma bunda valesse qualquer diploma, livro, filme, viagem ou bom papo. Ela só tem aquela bunda e um pouco de talento para tirar cutículas.
Mas o que eu mais odeio nessa vaca da Mariúsca é que ela tem a única coisa que eu quis ter a minha vida inteira e jamais consegui: ela é ininterruptamente feliz. Janderson é baixinho, pobre, emberebado, burro e fede.
Mas ela é o ama simplesmente porque resolveu que ama e nunca entrou em crise pra saber se ele é ou não bom o suficiente pra ela. Poxa, se ele a leva no Cristo e compra camarão deve ser o homem da sua vida. Seu emprego no salão de beleza de quinta categoria fica a 3 horas e meia da sua casa e paga 345 reais por mês. Mas a desgraçada faz todo o trajeto, ida e volta, na chuva ou no sol, andando ou parada, sorrindo.
Ela nunca conheceu seu pai, nem sabe quem é. Nem por isso faz de sua vida um drama. Aliás, ela odeia filme de drama. Aliás, ela odeia filme porque dá sono. Odeia ler também. O que ela gosta mesmo é de ver os programas dominicais com bandas de pagode. Ela não sofre porque não dá para ir a Paris todo mês ou porque o novo filme do Lars Von Trien tinha esgotado logo quando chegou sua vez. Aliás, ela nem sabe direito onde fica Paris e se você falar “Lars Von Trien” para ela, vai ouvir um “vai você, sua besta”.
Mariúsca não sabe o que é verotina. O remédio que o psiquiatra me passou pra ver se eu volto a ver um pouco de graça na vida. Verotina pra ela deve ser a nova manicure. Ou, porque o nome é um pouco mais chique que Mariúsca, a nova cabeleireira. Verotina, me corta um pouco as pontas.
Mas se eu explicar pra ela que na verdade é “verotina, não me deixe cortar os pulsos” ela não vai entender nada. Certamente ela me diria: “mas com uma vida tão linda, cheia de Jandersons, colegas da condução, blondor, camarões, bandas de pagode e cristos cabeçudos de Serra Negra, como é que um ser humano vai querer morrer?
Mariúsca não sabe que mesmo eu fazendo musculação 3 vezes por semana, corrida duas e drenagem uma, eu ainda acho que deveria ter uma lei que me proibisse de andar sem canga pelas areias de Maresias. Ela também não sabe o desespero que é você ler, ler e ler, e continuar sabendo que não leu nem um quinto do que deveria ter lido pra ser alguém minimamente culto.
Ela não sabe a agonia que é estar parado no trânsito da Rebouças com tantas praias lindas no Brasil e tantos cafés perfeitos na Europa. Ela não sabe como é terrível esperar que apareça alguém pra me fazer feliz se eu mesma sou incapaz disso. Ai, Mariúsca! Você me arrancou um bife!
E ela se mata de rir da minha desgraça.

Sexta Insana - por Handerson Pessoa

Não gostei da forma com que o espetáculo começou. Foi com uma daquelas terríveis dores de cabeça matinais, tudo porque o despertador resolveu não trabalhar naquela manhã. Quando vi, já era tarde. Um salto da cama. Um banho relâmpago. Um ponto de ônibus lotado. Nenhum ônibus. Espera, parece que está vindo um ali. Consegui. Entrei. Pelo menos está tocando uma música decente.
Cinco minutos já se passaram, e agora que a terceira curva para a direita termina, eu vejo aquele sem fim de veículos enfileirados. Tudo engarrafado. Trinta e oito minutos preciosos e em seguida a revelação: tem gente queimando pneus na pista, fazendo um tipo de manifestação. Nenhum carro vai, tampouco vem.
Desço e começo a minha caminhada, rumo a um lugar mais calmo. Centenas, milhares de pessoas caminham na mesma direção, como formigas instintivas em busca de alimento. Os celulares fotografam tudo. Quem sabe assim os patrões irão acreditar.
O meu não se importa. Meus quarenta e quatro minutos de atraso serão descontados de qualquer jeito. Eu tento explicar, mostro as fotos que tirei, mas não tem jeito, regras são regras. Penso: se eu tivesse acordado mais cedo se tudo teria sido evitado. Dificilmente. “Que droga! Eu sou inocente”, esbravejo com meus olhos. Minha cabeça lateja.
Espero uma ligação que não acontece. O celular não vibra, não toca e é nessa hora que meus olhos se perdem no vazio. Alguém me pergunta por que estou de jeans e não de social. “É hoje!”, penso outra vez. Ligo o computador, apenas emails comerciais, nenhum dela. Será que me esqueceu? Por que me ligou a noite passada então? Será que aquele toque foi proposital ou só um engano de número? Não, acho que engano não foi.
Meio dia. A dor de cabeça começa a dar sinais de melhora. Agora não tenho mais delírios, apenas alucinações. Deve ser o sol forte. Perco a fome quando olho para aqueles pedaços de frango mal cozidos. Maldito restaurante, que sempre manda aqueles picles extremamente salgados. Vou ligar e fazer uma reclamação. Aqui o sinal do celular está muito fraco. Vou para o outro telefone: ocupado. Tento uma, duas, três vezes e nada. Desisto.
Duas horas da tarde. Fome, muita fome. Não posso sair agora do trabalho, mas dou um jeito mesmo assim. Ninguém me vê sair. Nem voltar. Escapei. Será que a maré vai mudar?
Seis horas. Que se dane, vou para casa. Abro a mochila e vejo o ícone azul de mensagem de texto brilhando. Meu coração dispara, mas logo pára. Mais propagandas.
Chego em casa e ligo a TV. Me vejo passar em frente a uma câmera que filmava a bagunça de hoje de manha. Quem sabe agora o pessoal da firma acredita.
Dez da noite. Estou com sono, talvez seja por causa da cerveja, só quero que esse ia acabe logo. Enquanto isso, uma mensagem de texto, viaja centenas de quilômetros, passa por cidades e países na velocidade da luz, vai até um satélite e volta, atravessa o teto, entra em meu quarto e se instala em meu celular.
O barulho irritante do aparelho me acorda, e sei que não vou conseguir dormir de novo enquanto não ler. Na verdade é um email que acabou de chegar. Ela apenas quer me dar boa noite e dizer que está pensando em mim. A seguir, uma foto que ela acabou de tirar na webcam.
Beijo a foto, esquecendo tudo, dou um sorriso e com os olhos pesados volto a dormir, finalmente em paz.

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