O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Esquizofrenia - Cap. 6

Era sexta-feira de manhã e eu estava na cozinha fazendo café quando parou o fornecimento de gás. Fui até o lado de fora e abri a portinhola que dá acesso ao gás. Junto ao botijão encontrei diversos frascos de vidro dentro de uma sacola plástica branca. Abri para ver o que tinha. Havia três vidros de veneno para ratos. Me lembrei da minha mulher comentar sobre ratos na vizinhança. Mas por que não havia me falado sobre vidros? Curiosamente peguei um para ler. Para a minha surpresa, num dos frascos além da composição química, havia um componente, que não me lembro o nome agora tenente, mas claramente estava escrito no final 1080. Não quis pesquisar em casa com a Silvinha dormindo, de modo que deixei para mais tarde.

A pesquisa resultou num número enorme de informações, mas uma delas me chamou a atenção: “ O chumbinho ou veneno 1080 é um dos venenos mais conhecidos pelo público, à base de estricnina. Muito utilizados no combate aos ratos, o monofluoracetato de sódio é considerado o mais perigoso do mundo porque não tem cor, cheiro ou sabor; é altamente solúvel em água e facilmente absorvido pela pele. Não há nenhum antídoto conhecido e uma colher de chá do veneno pode matar até 100 pessoas adultas. A morte provocada pelo 1080 é difícil de determinar já que os sintomas se parecem com aquele de um ataque cardíaco. Os sintomas aparecem cerca de 30 minutos após a exposição ao produto e a morte pode acontecer entre duas e sete horas, dependendo da quantidade ingerida”.

“O senhor está me escutando tenente?”. Ele me olha feio e respira fundo, totalmente desconcentrado da conversa. “Tá meu senhor, todo esse blá blá blá que está me dizendo não significa nada para mim. Será que dá pra me dizer onde quer chegar de uma vez por todas?”. Tenente, preste atenção. “Sou filho único, tenho uma fortuna deixada pelos meus pais. Não tenho filhos, com quem o senhor acha que ficará o dinheiro?”. Durante todo o tempo Silvinha, meu amor para toda a vida aplicava doses mínimas daquele veneno em tudo que comia. Descobri atrás do botijão uma seringa com agulha. Ficou claro para mim a intenção dela ao me trazer trufas a noite, e porque ele não comia junto, e quando comia buscava a dela na bolsa. “Estava claro tenente, ela estava o tempo todo tentando me envenenar, não poderia aplicar uma dose muito grande do remédio porque isso causaria minha morte quase instantânea, e na autópsia encontrariam a substância no meu sangue. A causa mortis. Monofluoracetato de sódio.

Quando a Silvinha chegou estava completamente desolado. Não sabia nem por onde começar, por isso agi normalmente. Ela chegou. “Boa noite amor”, e eu respondi numa dose ainda mais profunda do meu cinismo. Esperei que ela dormisse e então lhe amarrei mãos e pés na cama. Minha mulher acordou e começou a gritar e perguntar o que estava acontecendo. Dei-lhe um tapa na cara. Estrebuchou e ficou quieta. Comecei a perguntar o porquê de tudo aquilo. Não precisava jogar baixo. Bastava pedir a separação e levaria metade com ela. Mas ela começou a chorar e a encontrar um monte de desculpas, mas seus olhos não faltaram com a verdade. Silvinha não sabe mentir. Pelo menos não para mim. Quando ficou claro para mim que ela estava tramando minha morte, não senti nenhuma pena ao ver minha mulher amarrada na cama como um cão preso. Senti uma onda de prazer. Lembrei do sonho. Abri o guarda-roupas, peguei minha arma e descarreguei todo o pente nela. Morreu na hora. Ela deve ter ficado feliz, afinal, eu tinha sofrido muito para morrer, e ela morreu num piscar de olhos. É por isso que estou aqui tentente. Para me entregar. Eu sou o assassino da mulher amarrada.

O tenente olha para mim e ri. Não acredita que isso está acontecendo. O assassino da mulher amarrada sentado bem ali durante todo esse tempo. “Me acompanhe”, ele diz olhando para um outro policial que se aproxima. Me leva até uma outra sala, e senta-se na frente de um computador. Pede meus documentos. Nome completo da minha mulher. Endereço de residência. Escuto então o barulho de uma impressora. Várias folhas são cuspidas. Ele coloca uma a uma sobre a mesa para que eu possa ler e põe a mão espalmada na mesa. “Como o senhor me explica isso?”

Polícia Militar do Estado de São Paulo
Relatório Civil:

Silvia Amorim Tregulha Reis, 27 anos, branca. Data de nascimento: 21 de fevereiro de 1977. Solteira. Data do óbito: 12 de setembro de 2004. Motivo: Erro médico.

O tenente se levanta, esbofeteia a minha cara. Grita para o policial que está junto. “Soldado, leve esse idiota daqui, prenda-o por mentir e obstruir o trabalho da polícia.

*** FIM ***

Esquizofrenia - Cap. 5

Resolvi passar um final de semana na casa dos meus pais, para relaxar um pouco e dar outro pouco de sossego para Silvinha que tanto se esforçava na mantença do meu bem estar. Meus enjôos parecerem se evaporar. Nessa altura do campeonato eu já estava preocupado com o volume de trabalho me esperando na segunda-feira, por isso acessei o computador para ver emails novos. Havia uma tonelada deles. De repente uma idéia inesperada, e se eu procurasse o número 1080 na internet? Estava ciente que os resultados poderiam ser os mais improváveis, mas não custava nada pesquisar. Digitei o item da minha pesquisa no Google e como já esperava, veio um turbilhão de respostas, nada do que eu imaginava. Já havia desistido de procurar as origens daquele número, quando decidi procurar informações sobre o que eu estava sentindo naqueles últimos dias. Coloquei no campo de buscas todos os meus sintomas até a noite de sexta-feira. A maioria dos resultados indicava uma intoxicação. Resolvi me aprofundar no assunto.

O tenente pega o celular preso ao cinto que já está tocando a alguns segundos. Faz um gesto com a mão direita indicando que eu espere até que ele termine de falar. Me olha furioso. Penso que tenha perdido seu encontro romântico. Então joga telefone na mesa que bate fazendo estrondo. “Puta que o pariu”, ele berra e nem se incomoda que agora existam várias pessoas ao redor. Não me diz para prosseguir, e eu tampouco espero. Continuo no meu depoimento.

Quando encontrei Silvinha na noite de segunda, parecia que haviamos acabado de nos conhecer. Novamente ela subindo as escadas sem roupa, trufas na mão. “Boa noite amor”. Correu e se jogou por cima de mim, sedenta por sexo. Fizemos sexo, não tenente, fizemos amor. Nunca havia amado minha mulher daquele jeito. Ela pedindo sempre mais e eu dando o que ela queria. Ela queria sexo anal, e eu não neguei. Fizemos amor longamente, demoradamente, unhas cravadas na pele, gritos e violência moderada. Ainda não haviamos feito nada daquilo, mas no fundo da minha mente, tinha certeza de já estar sentindo um forte cheiro de merda. Eu não tinha mais idéia nenhuma do que fazer. Mas minhas dores voltaram e pra valer as três da manhã.

Acordei depois de uma noite muito mal dormida por causa das dores. Minha mulher ainda estava na cama, e me levantei sem fazer barulho e desci as escadas rumo ao banheiro. Passei pela bolsa jogada na mesinha de canto na sala. Peguei o celular, e conferi outra vez, nenhuma ligação estranha, a não ser para o tal Dr. Astolfo. Não fazia idéia de quem poderia ser, mas precisava de uma maneira de descobrir. Sem que Silvinha acordasse fiz uma cópia de todos os contatos em um pen-drive, e estava decidido a pesquisar um por um que não conhecesse quando chegasse em casa mais tarde.

Como eu faria para saber quem eram os donos dos telefones eu nem imaginava mas comecei a digitar os números no Google mesmo assim. Digitei o do Dr. Astolfo e o número caiu numa clínica veterinária. Achei estranho, pois não temos bichos em casa, de modo que quanto Silvinha chegou perguntei, com ares de quem não queria muita coisa. “E se tivessemos um cachorro?”. Imediatamente ela descartou a idéia. Disse que mais precisaríamos era sim de um gato, afinal, os vizinhos reclamavam muito de ratos em suas casas, e um gato seria bom. Concordei.

Esquizofrenia - Cap. 4

Tive mal estar durante toda a semana. Quase sempre a noite, pelo menos no começo. Tudo que comia, voltava. Era domingo e minha sogra apareceu nadando na minha porta. “Você está com uma cara horrível”, foram suas primeiras palavras. “A sua também”, eu disse e me senti feliz por dizer. Minha sogra é uma destas mulheres que abomino. Estufada de comida e gases. Sempre que pode faz questão de jogar na minha cara que a maior besteira que sua filha fez foi se casar comigo, que não tenho dinheiro e que só tenho um mínimo de inteligência, mas que isso não paga contas. Nem viagens. Ela entra na cozinha e começa a fuçar as panelas, estava claro para mim que ela tinha vindo para almoçar. Seu marido teve que trabalhar no final de semana, ela explicou, mas o trabalho dele paga bem. Meu sogro é porteiro de um prédio de classe média no Itaim Bibi e há anos tem um caso com uma moradora cinco anos mais velha que ele. Por mim que se dane, ou que morra, não estou nem aí. Minha mulher havia feito gelatina com algo branco em cima que eu não sabia o que era, mas parecia creme de leite. Terminamos o almoço e minha mulher serviu a mesa. Sua mãe com cara de almôndega recusou. “Aumenta o colesterol “, disse a velha rabugenta. Comi sozinho três taças e aquela era a única comida que em dias me desceu sem que eu imaginasse estar engolindo lâminas de barbear. Durou menos que dez minutos. O mal estar voltou. Saí correndo para o banheiro. Enquanto colocava minha comida junto com as tripas para fora, ouvi a minha mulher falando baixinho, dizendo que eu teria que fazer uma endoscopia para ver o que tinha de errado comigo, mas a velha insuportável dizia apenas que deixasse que eu me fodesse. Assim Silvinha estaria livre para encontrar um marido rico. “Não quero outro marido, mamãe”. Senti que Silvinha era tudo que eu precisava. Ela estava ali, desafiando a mãe, abandonando todos os supérfluos e concentrando-se apenas nos finalmentes. Aquela foi uma das coisas mais bonitas que já havia me acontecido. No banheiro, abri a portinha do armário e peguei comprimidos para dor de cabeça. Minhas mãos tremiam e dois comprimidos saltaram do vidro, bateram na minha mão e caíram dentro do cesto onde coloco a roupa suja. Abri a tampa após ter tomado meu remédio. Só havia o uniforme da minha mulher. Tirei de dentro do cesto procurando o comprimido, mas não achei, talvez tivesse caído num dos bolsos. Comecei a procurar. Encontrei um pequeno pedaço de papel escrito quatro números: 1080. Memorizei.

O tenente começa a trancar sua mesa. Está nervoso porque quer ir logo embora, mas sabe que apesar de ser a autoridade ali, está no exercício de sua função. O relógio da delegacia marca 11:49 da noite e seu turno já deve estar terminando. “Meu senhor, tudo isso que está me dizendo não faz sentido nenhum para mim. O senhor precisa ir embora”. Odeio esse policial que não presta atenção no que estou dizendo. Tenho vontade de dizer que sou eu quem pago o seu salário e ele deve ficar ali o tempo que eu precisar. Mas não vai adiantar.

“O senhor não está me escutando?”, eu falo um pouco mais alto que o nomal. Ele me olha torto, quer voar no meu pescoço e me socar até meu rosto virar uma massa hemorrágica roxa, verde e azul. “Pelo amor de Deus, ande logo, preciso ir embora”, ele diz. Não ligo, por mim ele pode ir para o inferno que estou pouco me lixando. Vou ficar o tempo que eu precisar. Comecei a seguir minha mulher. 1080 deveria significar logicamente alguma coisa. Um número de quarto de hotel? A placa de um carro? O final de um telefone? Tudo aquilo era cagado na minha mente perturbada, junto com um monte de outras imagens produzidas. Idiotia, oligofrenia, sudorese. A todo momento tinha a sensação de estar sendo seguido e meus enjôos ficavam cada vez piores. Um dia me disfarcei de entregador e olhei todas as placas dos carros estacionados no Hospital Evaldo Foz que minha mulher trabalha. Repeti o ato três vezes por semana, jamais sendo pego ou flagrado. Nenhum carro tinha placa com aquele número. Eu deveria tentar uma abordagem diferente.

Minha mulher mesmo sabendo dos meus problemas estomacais, insistia para que eu comesse chocolate, que de acordo com ela me daria um pouco mais de energia. Meu duodeno reclamava, mas eu comia mesmo assim. Era bom saber que ela estava cuidando de mim. A esposa exemplo. Preparava sopas leves e me tratava com cuidado maternal. Mas meu estômago e intestino dava pulos colossais a cada colherada. De acordo com ela, eu precisava ir ao médico, aquilo não podia mais esperar. Prometi a mim mesmo que iria ao hospital na manhã seguinte. Acordei e ela já estava cuidando da minha alimentação. Desci as escadas me sentindo um pouco melhor e fiz meu desjejum, à base de leite morno e bolachas de água e sal. Minha mulher ia me dando conselhos sobre o que comer na rua, afinal, deveria ser isso que estava fazendo meu corpo trabalhar tão mal. “Você só come porcaria”, ela disse. O médico me receitou um antiácido para ver se controlava o mal estar, mas eu devia fazer uma endoscopia. Saí nauseado e tonto do consultório. Nada que eu não estivesse acostumado. Tirei o dia de folga e fiquei deitado na minha cama, sob o efeito dos comprimidos. Estava começando a melhorar.

Esquizofrenia - Cap. 3

O policial se levanta, abre a garrafa de café e olha no relógio. Está com pressa. Sua pequena devassa está esperando numa esquina da Indianópolis e já está começando a chover. Talvez não seja uma devassa e sim algum homem travestido de mulher, imagino, típico dos comerciantes de corpos daquela região. “Afinal, o que o senhor quer? Dá pra ser mais objetivo? Quem é o senhor afinal?”. O senhor quer respostas tenente, tudo bem, eu vou lhe dar respostas.

Sou filho único. Meus pais resolveram me fazer depois de vários passeios pelo mundo e muita grana acumulada, fruto de um bem sucedido negócio de ar condicionado para veículos. Mas eu não falava com meus pais a mais de dez anos, e mesmo depois que morreram num acidente há dois anos eu não queria o dinheiro deles. Nem senti remorso. Eu sabia do testamento, afinal, eu mesmo havia guardado numa pasta trancada num armário no sótão e jamais havia falado sobre ele com ninguém, nem mesmo com a minha mulher. Eu estava pensando no testamento naquela noite quando a Silvinha chegou. Ainda estava séria. Já era a quinta noite sem trufas e sem roupas. “Boa noite amor”, ela disse e desceu para o banho, sem um beijo ou um abraço. Estava estranha. Notei que as ligações do número misterioso haviam sumido. Talvez fosse só sintomas de esquizofrenia. Talvez não. Talvez ela fosse muito mais esperta do que eu supunha. Então ela subiu. Se jogou ao meu lado e ligou a televisão. Passava O Especialista, Silverter Stallone e Sharon Stone, Estados Unidos, 1994. Cheguei mais perto e dei um beijo. Ela apenas não recusou. Nosso casamento havia entrado na fase industrial. Sexo por obrigação, com a televisão ligada e muda. Closed caption ligado. Sharon Stone escrevendo num papel “Não sou uma mulher que se pode confiar”. Eu já havia visto esta cena. Nunca confio numa mulher que saiba cruzar as pernas, tenente. Silvinha dormia e se mexia na cama. Olhei para o seu cabelo negro e fiz um carinho. “Puta merda, deixa eu dormir caralho”. Sentia falta das trufas. Ela subindo sem roupas. “Boa noite amor”.

Algo indubitavelmente havia mudado desde então. Eu continuava ligando de telefones públicos diferentes para o número misterioso e sempre a mesma voz calma atendia. Comecei a pensar que estava imaginando coisas, talvez fosse mesmo um trote. Ela deveria estar apenas zangada comigo por não ter acreditado na sua versão dos fatos. Desde então as coisas tinham esfriado muito. Uma vez ficamos dezesseis dias sem sexo. Eu contei. Ela parecia não se importar. “Silvinha, eu quero nossa vida de antes” eu disse uma vez, e ela apenas olhou para mim chegou perto e me deu um tapa na cara. Forte. Quente. Em seguida me deu um beijo, tirou a minha roupa e fizemos amor como era antes. Artesanal. Era uma tarde chuvosa e quando terminamos eu perguntei o que havia acontecido. “Infecção vaginal”, ela disse e logo descarregou uma catilinária explicando que ‘resolveu não avisar para você não ficar preocupado, mas era coisa simples e já estou bem’. As coisas pareciam ter voltado ao normal. Mesmo assim resolvi em segredo fazer alguns exames médicos. Tudo estava normal comigo. Dois dias depois, a Silvinha chegou como antes. Subiu as escadas, as trufas na mão. “Acho que mordi o lábio”, ela disse e por isso não comeu. Nem me beijou. Fizemos amor sem beijo, rápido, ela correndo para o banho. Desci as escadas para tomar água. Sentia meu corpo quente e um leve enjôo. Meu estômago revirava a cada movimento meu, e cada passo na escada parecia demorar uma eternidade. Uma sensação horrível como se estivesse com o cérebro dentro da máquina de lavar, girando sem parar. Tomei bastante água enquanto esperava a madre superiora terminar seu banho. Entrei e joguei água fria na cabeça. Vomitei toda a trufa, sentindo um mal estar que parecia piorar a cada segundo. “Sua trufa não caiu bem hoje, estou enjoado”, gritei de dentro do banheiro, mas não houve resposta. Meus olhos pareciam estar cheios de ácido, lentamente subi as escadas e encontrei Silvinha já quase dormindo. Deitei sentindo meu estomago despencar de um bungee jump. Não consegui dormir logo. Ela me abraça, morde minhas costas e cochicha no meu ouvido: “boa noite querido”.

Esquizofrenia - Cap. 2

Numa das vezes que parei para tomar água no refeitório da loja que trabalho ouvi meus colegas rindo de outro colega, o Vilmar. Andava correndo uns rumores que sua mulher estava saindo com outro cara. Os colegas riam e perguntavam o que ele faria se chegasse em casa e descobrisse a verdade. “Pelo menos será que ele olha o celular dela?”, um perguntou e todos caíram na risada. HA HA HA HI HI HI HO HO HO. No começo eu achava engraçado, mas resolvi uma hora dessas fazer aquilo. Fui para casa passando primeiro pela locadora. Aluguei só um filme, afinal, já faziam cinco noites que eu não estava dormindo bem. Adormeci no meio do filme. O mesmo sonho recorrente. Desta vez a velha desdentada subia as escadas. Acordo assustado. Minha mulher subia as escadas. “Boa noite meu amor”. Sexo bom, seguido de dor de cabeça e mesmo assim permaneçi acordado no final. Ela desce. Escuto o barulho da água do chuveiro. Desço as escadas sem fazer barulho. Sua bolsa está no sofá. No seu telefone tem dez ligações recebidas do mesmo número. E outras três feitas. Não há nome, apenas o número. Guardo o aparelho e volto para a cama. A noite seguinte era um sábado e eu resolvi usar uma estratégia diferente. Chamei a Silvinha para um passeio. Estávamos caminhando pela rua, na noite fria e com a lua cheia, quando vimos um pequeno tumulto. Havia um corpo no chão. “Não quero ir lá”, ela disse, mas eu insisti para saber o que havia acontecido. Ela ficou. Eu fui. No chão um homem. Dois furos de bala na cabeça. Estrebuchou e morreu. Disseram que foi crime passional. Silvinha está nervosa porque a deixei para trás para ver o defunto. Estava de cara feia e queria voltar logo para casa. Entrou no banheiro e eu peguei seu telefone outra vez. Sete chamadas do mesmo número. Ela volta e me pega com o celular na mão. “De quem é esse número que aparece tantas vezes no seu telefone?”. Ela briga, discute e fala alto. “Você não tem o direito de mexer nas minhas coisas”. E nervosa explicou que é um ‘engraçadinho que fica passando trote’. Aquele foi nosso primeiro nódulo matrimonial, tenente. Por isso resolvi investigar.

O policial olha para mim com cara de deboche enquanto eu tento me enquadrar na cadeira metálica e desconfortável do 102. Tem cara de policial corrupto e a todo momento olha o celular enorme preso ao cinto, como se fosse uma segunda arma. Não está dando a mínima para o que eu digo. Só quer terminar logo meu depoimento para sair do DP e encontrar a prostituta que lhe paga com favores sexuais. “Mas afinal, onde o senhor quer chegar?” ele pergunta com aquela cara redonda vermelha, grande e suarenta, se remexendo na cadeira atrás da mesa. Faz um jeito de quem não está agüentando mais estar ali e fica revirando os olhos para cima, fazendo gestos com a mão para que eu continue ainda mais depressa. “Um momento”, ele diz e saca seu telefone, diz à pessoa da ligação que já terminou e está de saída. Não está nem aí para a minha confissão. Está cagando para mim. “Ande logo”, ele quer berrar, mas suspira fundo e fala num tom que deveria exalar paciência, mas que apenas coloca pra fora o hálito fumacento de seu cigarro. Termino a água do copinho de plástico descartável e sigo em frente no meu monólogo sem sucesso.

Na segunda-feira tenente, telefonei para o número misterioso. Um homem atendeu. Calmo. Desliguei antes de dizer palavra. Precisava encontrar um amigo que sabe descobrir essas coisas de telefone e internet. Ligei para a Silvinha que só atendeu depois da quinta vez. “Que droga, já disse para não ligar na hora do meu trabalho” e desligou na minha cara. Ela ainda deveria estar chateada por ter me visto com seu telefone. Naquela noite ela entrou no quarto com roupa. Uma roupa diferente. “Um carro passou por uma poça de lama e me sujou toda, tive que comprar outra. Fiquei uma pilha”. Não olhei para ela. O filme estava mais interessante. Desceu para o banho cantarolando, parecia feliz. Sinais.

Esquizofrenia - Cap. 1

Um copo se espatifa na cozinha. Acordo. Há alguém dentro de casa. Acho que não. O barulho estava dentro do sonho. Eu estava sonhando com a vizinha gostosa da casa ao lado. No sonho ela batia na minha porta com a famosa desculpa da xícara de açúcar. Minha mulher não estava. Perguntei se ela queria entrar, mas ela disse apenas que esperaria na porta. Viro. Caminho quatro passos em direção à cozinha quando percebo o susto. Olho para trás e lá estava a vizinha, faca na mão cravando nas minhas costas. Detesto esse sonho recorrente. Olho para o canto do quarto e a luz fraca que vejo vem lá de baixo. Meu quarto fica no andar de cima, e embaixo fica a sala e a cozinha que dá acesso ao banheiro. Sempre odiei essa casa que tem a porta de entrada pela cozinha e não pela sala. Procuro meu relógio. Droga. Esqueci o relógio no banheiro. Meu relógio nunca saía do meu braço, até começar as reclamações inusitadas da minha mulher: “Por que você toma banho de relógio? Relógio não tem sede nem precisa de banho”, ela dizia. A partir daí comecei a tirar. Que horas são? A Silvinha já deveria ter chegado. Desço a escada de ferro em caracol. Pés descalços. A luz vem do banheiro, a porta não está bem fechada. Mas eu tenho certeza que fechei e apaguei a luz. Olho para o lado e a porta da cozinha está aberta. Preciso parar com isso, apesar de agora estar em plena carga horária de trabalho dos bandidos. Penso em voltar para o quarto e pegar minha arma. Não existe arma. A porta do banheiro se abre. Há uma mulher, que sorri para mim com os dentes estragados, cabelo esvoaçado e bagunçado. Sorri para mim com dentes pretos dilacerantes. Me joga um beijo e aponta o revólver. Dispara. Uma. Duas. Três vezes. Tudo irá acabar e o mundo será o mesmo sem mim. Olho para o meu peito. Minha camiseta começa a se manchar. Caio.

Eu havia dormido assistindo um filme antigo, desses que vivem em promoção de catálogo nas locadoras. Minha mulher trabalha num hospital, havia sido transferida de ala recentemente, e começou a chegar às dez da noite. Depois foi às onze. E depois mais tarde. Comecei a dormir mais cedo, porque ela se atrasava demais. Virei um freqüentador assíduo da locadora mais próxima e era comum eu voltar com duas ou mais fitas para assistir. O marido paciente. O operário padrão do lar. Minha mulher chegava sem fazer barulho, olhava toda a casa primeiro, só depois subia as escadas, já completamente sem roupa. “Boa noite meu amor”, ela me dizia sacudindo duas trufas enormes com recheio de licor. E sem dizer mais nada, se jogava na cama mordendo uma das trufas e nos envolvendo numa mistura de chocolate, licor, suor e líquidos. Sexo artesanal. Três. Quatro vezes sexo. E só depois descia dançando as escadas para o banho. Volta e dorme. Olho o relógio na cabeceira da cama. São duas horas. Mexo em seu cabelo, “querida, sua mãe ligou” e ela vira para o lado: “Puta merda, deixa eu dormir, caralho”. No começo eu achava normal. Ela estava cansada. E meu sono já era. Pego o controle da televisão e ligo. Estava passando um seriado que não recordava o nome, e cada vez que voltava do comercial eu esperava passar o título que não passava. Quatro horas. Ela dorme um sono profundo. Levanto e faço um café sabendo que aquele vai ser outro dia daqueles, fruto de uma noite não dormida. Saio para o trabalho e quando vou dar o beijo de despedida ela murmura um “que inferno” e cobre a cabeça. Caminhei silenciosamente rumo à porta, olhei para trás e comecei a cuidar do meu dia.

No meu lugar

Houve um tempo em que eu achava que toda perda era um desastre. Fim de ano ruim, fim de trabalho chato, fim de namoro. Esses eram chatos pra caramba. E que fim é legal afinal seu Juvenal? Naquele tempo, eu sempre que uma relação que eu gostava mesmo terminava, eu ia pra casa chorar as pitangas, me afundar em litros de lágrimas e vodca, e de joelhos pedir aos céus que por favor fechassem meu coração para que ninguém nunca mais entrasse e deixasse um buraco do tamanho do mundo dentro dele. E daí como que num remake anual da minha vida moribunda, em todas as minhas férias o ciclo volta a se repetir. Paixões que se acabam sem conversa madura e franca, baseadas quase que somente em emoções, ou às vezes por falta de enxergar o que estava bem óbvio, mas que a gente como bom ser humano nunca preparado não vê. E os dias foram passando, e de repente eu comecei a perceber que ninguém precisa de ninguém para ser feliz. A gente é feliz e pronto. Com alguém ou sem ninguém. Não existe muita esperança em relacionamentos, só a esperança dos tolos. Aqui, na vida real, a coisa é um pouquinho mais diferente do que acontece na televisão. E daí que por tantas poucas e boas anteriores, acabei aprendendo o que nem todos aprendem: nascemos sós e morremos sós. Nada de melodrama ou de choros intermináveis por quem já se foi, ou quem na verdade nunca veio. Ou por quem trouxe o corpo mas não a alma. Lágrimas são preciosas demais para se gastar, ainda mais quando se não precisa gastar. Eu acabei de ter uma briga daquelas com quem eu estava saindo, ela disse que não dava mais e eu respeitei. É claro que briguei e muito respeitosamente para que isso não acontecesse, afinal, estávamos os dois certos e ao mesmo tempo os dois errados. Tudo bem bem eu me rendo, teve uma lágrima rápida, que veio e se foi, mas não de dor e sim de raiva. Quem se debulha em lágrimas e fica naquele lenga-lenga é culpado, quem é inocente simplesmente fica puto da cara, como eu fiquei. Há muita razão nas mulheres que ao terminar uma relação ou levaram um pé na bunda se acabam num shopping em compras. Faz um bem incrível, elas dizem. Renova-se a auto-estima. No meu caso, é o de sempre. O andar com o nariz empinado, livros e mais livros pra entulhar minha sala, e ela, sempre ela, a estrada que me abraça como que pedindo que eu não a deixasse nunca. Então é nessas horas que eu vou lá fora e nem ligando para o que os vizinhos vão achar ou reclamar que eu grito em alto e bom som um “vai se danar” do tamanho do meu universo. Não pra alguém em especial, e sim pra essa neura filha da puta que às vezes vem e quer estragar tudo. Vai estragar? Aqui não, seu João. Eu vou é cair na estrada, cantando bem alto “Vida bandida” do Lobão e mais alto ainda o refrão: “um tiro só não vai me derrubar não”. Afinal quem disse que a vida é fácil?

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