O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

O Reencontro

Aeroporto Internacional de Brasília, 10h57. O Air Bus 737-300, vôo JJ4362 aterrissa em meio à forte neblina, enquanto Edgar leva instintivamente a mão ao bolso interno do blazer e saca o celular para chegar ligações, torpedos e toda aquela parafernália tecnológica da atualidade. Pelas regras que ouviu a pouco mais de uma hora, deve permanecer com o aparelho desligado até que a aeronave pare completamente, mas ele ignora. Há uma ligação perdida, um número desconhecido, que ele não pensa em retornar e investigar. Sabe que se for algo relevante a pessoa telefonará outra vez. A bagagem demora a surgir e o telefone toca. Edgar não reconhece aquela voz a princípio e como num passe de mágica, tudo se torna claro ao ouvir o nome daquela mulher. É Débora, quinze anos depois. Palavras triviais e cumprimentos de praxe, típico das pessoas que um dia se amaram e que por uma ironia metafísica, se afastaram. A falta de assunto é notória, afinal, muita coisa aconteceu nesse tempo, mas apesar do desconforto e da perplexidade, marcam de se encontrar naquela mesma noite. Outback Steakouse. Conjunto Nacional. Brasília. 21h12. Débora está radiante naquele sorriso que não envelheceu nem um único dia. Edgar está fora do eixo, não consegue entabular uma conversa descontraída, tantas são as perguntas acumuladas em sua mente agora catatônica. É inevitável não esbarrar no passado, em tudo que foi, tudo que deveria ter sido, tudo que havia sido planejado. Edgar lamenta por tudo. Débora também. Dizem coisas que nunca irão esquecer. Ela conta que sentiu a falta dele. Ele diz o quanto foi difícil conviver com a ausência dela. Ela diz que sente ciúmes por não ser ela a mãe dos filhos dele. Ele questiona o por que da fuga dela, o por que ela não o procurou, e uma série de tantos outros por quês. O ambiente é próprio para um reencontro: luzes difusas, boa comida, barulho, pessoas que estão ali, mas completamente alheias à existência daquele casal. Na mesa ao lado, três adolescentes conversam distraidamente e Edgar pensa que eles nem sequer haviam nascido quando a separação dele e de Débora aconteceu. O tempo é um poderoso equalizador. Uma música suave, “Somewhere over the rainbow”, quase inaudível em meio ao burburinho, e Débora estica o braço sobre a mesa. Edgar segura sua mão ao mesmo tempo em que olha aquele rosto tão familiar, olho esquerdo, olho direito, boca. Um triângulo capaz de dizer numa melodia silenciosa todo aquele sentimento que ficou reprimido, trancafiado anos atrás. Débora tira a mão displicentemente, fingindo um gesto, e Edgar percebe. E enquanto a noite segue entreolhares, o assunto acaba e ambos sabem o que devem fazer. Ela sugere que devem esticar a noite, uma vez que estará só em seu apartamento e Edgar, bem ele não tem nada para fazer no dia seguinte. Saem do restaurante e Edgar pensa em dezenas de hipóteses e situações. Apesar de não sentir mais nada do que sentiu por aquela mulher, sua companhia é agradável, ele quer segurar sua mão, mas se contém. Chegam ao carro dela, ele encosta. É hora da verdade, e se tudo aquilo que ela acabou de dizer nas últimas horas for mesmo verdade, ela irá retribuir o abraço e ficar ali naquela posição por vários minutos, ambos apenas sentindo o cheiro um do outro, sem que nada precisa ser dito. Edgar passa as mãos pela cintura da mulher que um dia ele amou e se desesperou. Débora não corresponde, apenas diz que só foi até lá para conversarem, e “por favor me solte”. Edgar solta porque sabe reconhecer uma causa perdida e sugere que entrem no carro. A noite acabou. A conversa é arrastada no interior do veículo e assim como as pessoas que não querem ou não tem nada a dizer, conversam sobe o tempo, o clima, geografia e toda aquela baboseira inútil naquele momento. A tensão é alta, quase material. Chegam ao destino. Edgar a segura pelo rosto e beija-lhe a face ao que ela nem mesmo tira as mãos do volante. “Essa sou eu, a mesma pessoa de tantos anos atrás”, ela diz como se pedisse desculpa para si mesma. “Você continua exatamente igual”, Edgar diz com um sorriso forçado. Ele se despede, quer sair logo, ao que ela questiona: “Está tudo bem?”. Outro sorriso forçado. “Está sim, desculpe, foi apenas um engano”, ele diz. Bate a porta do carro e desaparece na escuridão da noite.

A mensagem

Avenida Interlagos. São Paulo. Domingo. Sete horas da noite. Alexandre está nervoso. Acabou de brigar com Ana, a mulher que ama. Ela vê um recado no Facebook do homem com quem pretende se casar e não consegue segurar a emoção. Diz coisas que jamais diria em outra situação e sabe que vai se arrepender disso. Algumas coisas devem ser faladas no calor da emoção. Alexandre não entende: como aquela mulher que está com ele há três anos pode duvidar de um recado assim tão infantil, que nada representa para ele, uma vez que apenas Ana existe na sua vida? Será que ela não o conhece tempo o bastante para saber que nada daquilo é real? Que nada daquilo tem a ver com ele? Os vizinhos reclamam do barulho, Ana fala alto, incomoda os que estão por perto, acha que Alexandre, seu noivo está tendo um caso, e ela não sabe direito o que diz. Diz coisas que em juízo perfeito não diria, sabe que deve agir com a razão neste momento, mas às vezes a emoção solapa a razão. Então ela diz que não quer mais, que não acredita nele, e que não quer mais nada com o homem que há três anos é fiel e não consegue ver nenhuma outra mulher que não seja ela. A Ana, a mulher da sua vida. E num rompante, ela o manda sair de seu apartamento, e: “vá ficar com a sua linda Bia, que está com saudades de você”. Bate a porta com força e chora. Um choro doído, de quem se sente traída e abandonada, por causa de uma simples mensagem. Alexandre sai sem entender direito o que aconteceu. Como uma ironia do destino seu celular toca. O número é desconhecido e ele não sabe com quem irá falar. Atende. Para sua surpresa é Beatrix, que liga, fazendo as perguntas de praxe de quem não fala com outra pessoa há tempos. Alexandre conversa normal, tentando não demonstrar a raiva que está sentindo por ser tratado assim pela namorada. Tenta ser gentil, e pede para conversar outra hora, “este não é um bom momento”, e ela pergunta se pode fazer alguma coisa para ajudar. Não, ela não pode fazer nada. Alexandre chega em casa, sai do carro, e abre o portão, ao mesmo tempo que vê outro carro chegar. É Beatrix, que salta, num vestido curto, disposta a tentar de tudo para ter seu antigo namorado de volta. E num movimento rápido parte para cima do homem que amou um dia e que irá fazer de tudo para reconquistá-lo, mas para sua surpresa, ele declina, Alexandre ama outra pessoa e não será uma briga que o irá fazer mudar de ideia. Então, quando percebe que está perdendo, utiliza a arma mais poderosa de uma mulher: a sedução. Se insinua, se joga, puxa ainda mais seu vestido curto e morde o pescoço de Alexandre. Mas ele não quer, não vai se deixar levar por aquela mulher barata e leviana que está em sua frente. Tem motivos para fazer isso, afinal, Ana não percebe o homem que tem. O homem que fez planos durante três anos e que ela não vê isso. Mas coração é algo complicado. Ele sente que não deve ceder às tentações da carne e num gesto brusco e agressivo, empurra aquela mulher que, se ele fosse com outra pessoa, estaria em sua cama agora, dando motivos para sua namorada brigar e fazer o escarcéu que fez. Mas Alexandre não é assim. Ele sabe que amor é outra coisa, e que assim que passar o torvelinho, ele irá se entender com Ana. As pessoas são assim: estúpidas. Beatrix está arrasada, não sabe o que fazer, e numa reação típica das pessoas que não sabem o que fazer, foge. Entra no seu carro e vai embora. Mas isso não vai ficar assim. Domingo. Onze da noite. Ana ouve seu telefone celular tocar, e não quer atender. Sabe que é o namorado tentando se retratar, mas espera! Não conhece o número. Atende. Uma voz de mulher a surpreende: “Ana?” a voz pergunta, e ela confirma. “Você não me conhece, meu nome é Beatrix, a Bia que deixou um recado no Facebook do Alexandre, não desliga! Preciso conversar com você. Eu gosto desse cara, eu acabei de vir da casa dele agora. Olha, eu tentei de tudo para ficar com aquele homem, me joguei praticamente em cima dele, e sabe o que aconteceu? Nada! Esse homem ama você. Não se encontra mais homens assim, fiéis. Então só tenho uma coisa a dizer: ‘deixa de ser imatura e dê valor ao homem que ama você. Ele me contou da briga de vocês por causa da minha mensagem. Eu estava afim sim, mas ele não. Toma cuidado garota, você pode estar perdendo alguém que ama você de verdade. É só isso. Tchau”. Ana ouve o som da ligação terminada. Deixa o telefone cair sobre o carpete, e se deita em posição fetal, chorando, como nunca chorou na vida. Mas o que ela estava pensando? Afinal, nem todos os homens são iguais. Será que neste tempo todo ela não percebeu que Alexandre realmente a ama e jamais iria deixar ninguém interferir nisso? Não. Ela não pensou isso. Está tão acostumada a ver homens traírem e serem infiéis que simplesmente não acredita que seu namorado poderia ser diferente. Ela precisa fazer alguma coisa. E rápido! Se veste, tentando parecer não menos que uma mulher arrependida, e que tem agora os olhos vermelhos e inchados. Pega o carro e dirige rápido. Avenida Rio Bonito. São Paulo. Noite. Alexandre ouve a campainha tocar e sabe que não irá atender. Ainda mais agora que chora de maneira descontrolada, tentando entender porque Ana não entende que ele a ama de verdade. A campainha insiste e pela janela ele a vê no portão. Ele vai até lá. Ana pede desculpas pelo que fez. Alexandre não aceita. Está nervoso, revoltado. Ela se lança ao seu pescoço, mas ele a afasta. “Porquê?”, ele pergunta. “Me desculpe, por favor” ela diz, com as lágrimas já aflorando pelo rosto ainda inchado. “Acha que eu poderia mesmo fazer isso com você? Poxa, cara, eu te amo você não percebe isso?”. “Eu percebo, eu só estava furiosa”, ela responde. “Me perdoe, por favor, não sei onde estava com a cabeça e acabei falando demais, me perdoa”. É claro que Alexandre irá perdoar, afinal, é a mulher que ele ama e pretende passar a vida toda ao seu lado. E assim, os dois se misturam numa solução saliva de beijo, amor e paixão. Ana guarda seu carro na garagem de Alexandre. Não irá voltar para casa esta noite. Nem nas próximas amontoadas no futuro. As pessoas são assim: estúpidas.

As horas

Érica está com pressa, está longe de casa. É noite de domingo e ela precisa acordar cedo na manhã seguinte. Liga o computador para checar e-mails, duvidando que haja algo importante. Afinal, é noite de domingo. Não há novos e-mails. “Melhor assim, posso dormir logo”, ela pensa. Mas há uma pequena luz vermelha num dos três ícones ao lado da logomarca do seu Facebook. Alguém solicita sua adição. As mãos tremem quando vê a foto do Pedro. Já se passaram dois anos, e ele continua exatamente igual, o tempo parece não ter passado para ele. Ela não pensa duas vezes, clica em “Confirmar”, não porque sente falta, mas porque se sente superior agora. É impossível esquecer o passado, ela sabe bem, e agora que confirmou, não consegue entender o porque disso. Os sentimentos de “traidor, mentiroso, cínico e dissimulador” já a abandonaram faz tempo. Pedro está online, e começa uma conversa, relembrando sempre os bons momentos e tentando não se esbarrar nos momentos perversos. Pedro terminou o namoro faz pouco tempo, e Érica parece ser a bola da vez. Outra vez. Ela sabe que as coisas são diferentes agora, mas algo lhe diz que se tentar novamente tudo pode acontecer novamente, e os fantasmas sempre voltam, ela sabe bem.  Mesmo assim, resolve dar uma nova chance. Olha no relógio que já marca 0:43. Desliga o computador e dorme. Segunda-feira. Fim de tarde. Érica e Pedro se encontram no antigo local onde costumavam se encontrar antes do céu trincar e despencar sobre sua cabeça, tempos atrás. E num movimento rápido, os dois se fundem numa mistura de suor, saliva e saudade. E a cena se repete, todos os dias da semana. Érica está feliz. Apesar de saber que nunca mais irá amar aquele homem outra vez, ela está feliz, pelo simples fato de ele estar ali, e acordá-la todas as manhãs com um telefonema que fará seu dia ser ainda mais especial. Os dois caminham alegres e tranquilos pela rua, quando Pedro solta sua mão. Começa a revirar os bolsos atrás de algo que não existe. Olha desconfiado para os lados, e sugere que virem numa rua. Segura a mão de Érica que não vê nenhuma anormalidade nisso. “Você lembra do Tavinho?”, ele pergunta, e ela, bom, claro que ela se lembra. “Passou por nós agora a pouco você não viu?”. Não, ela não viu. Ela não vê mais ninguém que não seja o Pedro. Ele precisa ir, tem aula a noite, mas marcam de se encontrar no final de semana para um jantar simples e um passeio, só os dois. Sábado. Sete e meia da noite. Shopping Ibirapuera. Érica se senta e espera. E espera. Já são oito da noite e ele disse que estaria lá as sete. Telefona para saber se está tudo bem. A chamada é interrompida no terceiro toque. Pedro não quer atender. Não retorna, não envia uma mensagem. Pedro não faz nada. Érica não entende e volta para casa, sem entender o que está acontecendo. Mas ela sabe. Algumas coisas nunca mudam. Érica não vai telefonar de volta, não quer saber o que aconteceu, não está com raiva, apenas quer esquecer o que aconteceu. Como toda pessoa normal que gosta de outra, ela se pega pensando em bobagens e faz todos os tipos de análise sobre tudo que pode ter acontecido. Então seu telefone toca. É Pedro, que conversa com ela sem sequer mencionar o episódio passado. É outra pessoa, está estranho, frio, calculista, como se outra pessoa estivesse ali, usando-o como uma roupa. Roupa Pedro. Dias se passam e ele não liga mais. Ela não telefona. O remendo parece ter perdido a cola. Já se passou uma semana, e Érica não tem notícias dele. Quarta-feira. Hora do almoço. Pedro está parado na frente do prédio onde Érica trabalha. Quer conversar. Não quer perdê-la outra vez. Quer fazer as coisas certas. Quer mostrar que mudou e que agora está seguro e confiante e que só ela o pode fazer feliz, e todo aquele blá blá blá dos homens que aprontam e querem voltar atrás e consertar o seu erro. Érica cai na armadilha outra vez. Marcam para sair naquela mesma noite.  Novamente às sete da noite. Ela olha no relógio. Oito e quinze, e nenhum sinal do homem que vai deixá-la esperando mais uma noite. Ela telefona, ele não atende. Ela tenta novamente. Só ouve a mensagem que o telefone está desligado. Érica não entende o comportamento desse homem que já diz ser adulto, mas que age assim, tão infantilmente, jogando com o seu coração e a tratando de forma tão leviana. Quer chorar, mas não consegue. Queria colocar para fora tudo que está sentindo, mas é incapaz. Fica imaginando se Pedro tem algum tipo de esquizofrenia que o faz ter dupla personalidade, ou se são múltiplas personalidades, mas sabe que não é isso, ele apenas é um idiota. “Um idiota enganando outra idiota”, ela pensa. Nasce mais um dia e o telefone celular a desperta com o som de uma ligação. Ela está com sono, não vê quem está ligando assim tão cedo, e atende. É Pedro outra vez, pedindo desculpas por não ter ido, e que agora as coisas serão diferentes, e que ele vai fazer de tudo para que fiquem juntos, coisa que ela sabe que jamais irá acontecer. Ela duvida. Pedro tem a missão de bancar o advogado do diabo, e convencê-la que tudo conspira contra ele, os pais, os amigos, a sociedade, mas que “dane-se tudo Érica, eu quero ficar com você”. Nos dias seguintes, ele a agrada com todo tipo de coisas que as mulheres gostam. Está tentando mostrar a ela e ao mundo que agora é outra pessoa, um homem com uma missão. Érica vive num mundo de ilusão, na esperança vazia de que ele mude de verdade, e tem certeza que podem sim construir algo muito especial juntos, mas sabe no fundo do seu coração que sua certeza te trai. Sexta-feira. Noite. O boliche está marcado para as sete horas, e Érica está sentada numa mesa, esperando Pedro chegar. Dessa vez vai funcionar, porque Pedro, agora é um novo homem. Ela olha as horas. Sete e meia. Parecem passar horas e horas. Sete e quarenta e cinco. Ela faz um pedido, está com fome. Oito e vinte. Olha para os lados. Nenhum sinal. Pega o telefone e liga para Pedro. O telefone está desligado.

Pretérito imperfeito

Já que com a tecnologia avançada do jeito que está vou fazer algumas exigências: quero voltar da escola as 11h30 da manhã e assistir meu episódio inédito de Flashman por que logo depois vai passar Changeman e todo mundo vai vibrar quando eu contar, já que eu sou o que mora mais perto da escola e ninguém chegou a tempo de assistir, apenas eu. Depois quero passar na padaria e encher meus bolsos de chicletes Ping Pong e Ploc para pegar as figurinhas e fazer uma super tatuagem nova. Em seguida, vou chamar a minha prima para assistir o canal TVS (que hoje é o SBT) porque vai passar um super desenho do Kissyfur e não podemos perder. Quando chegar o final da tarde eu vou colocar o meu tênis Bamba azul e dar uma volta pelo bairro, me sentindo o maioral da turma, porque só eu tenho esse calçado, e com ele eu posso correr atrás de todos os pirocópteros da molecada da rua que estão por ali. Quando a noite cair, eu irei voltar pra casa e assistir aqueles episódios horríveis do Juca Chaves que passa na TVS antes de começar a Pantera Cor de Rosa e depois dormir para começar tudo outra vez no dia seguinte. Quando o dia amanhecer eu vou pra escola com o meu tênis Redley novinho que meu pai me deu de presente, e vou mostrar pra todo mundo que eu tenho um minigame novo, daqueles que ninguém ainda tem, e matar todo mundo de inveja, já que hoje terá uma apresentação da turma da Xuxa na escola e eu não posso faltar. Logo agora que minha mãe foi me levar e na ida comprou aquelas garrafinhas de Pepsi com tampa de metal e colocou na minha lancheira um sanduíche horrível, mas graças a Deus colocou no bolso da minha calça jeans uma nota de quinhentos cruzeiros pra eu comprar um lanche na cantina. Quando eu voltar da escola e meu pai que foi me buscar apertar tanto a minha mão a ponto de quase quebrar porque eu errei a tabuada de sete, minha mãe vai fazer bolinhos de chuva enquanto eu vejo um arco-íris se formar no céu, porque choveu muito e agora o mormaço está matando todo mundo de calor e esperar. Logo depois minha prima vai me ensinar como se faz sexo, coisa que eu só vou aprender muitos e muitos anos depois. Minha aula será no sofá da sala, enquanto minha avó fica pela cozinha fazendo alguma coisa pra comermos, porque ela com seu dom maternal e natural quer que fiquemos fortes e saudáveis. E agora que eu posso realizar tudo que quero com a ajuda da tecnologia, quero voltar a casa da minha tia em Brasília, onde meu pai vai me comprar uma pipa para eu e meu primo nos divertimos no dia seguinte, mas antes vou colocar uma carta no correio para aquela menina que eu amei e que mora longe, e esperar mais de uma semana pela resposta que virá num envelope personalizado e com as letras da carta manchadas do perfume dela e cheio de pedacinhos de flores que ela mandou pra mim.  E logo em seguida eu vou terminar esse texto saudosista e ver que me tornei adulto e que tudo aquilo que vivi, e fiz, foi apenas algo muito, mas muito comum. Coisa que hoje não existe mais. Ahh 1987! Saudades...

O funk e a decadência brasileira

O movimento funk é antigo, mas ainda me surpreende. Por onde quer que esteja é possível ver meninos, isso mesmo, meninos, muitos em corpo de homem ostentando suas correntes sejam douradas ou prateadas, os terríveis bonés que cobrem as orelhas e os já tradicionais braços cruzados com as mãos abertas debaixo das axilas, numa demonstração de “quem manda aqui sou eu”.
Viro uma esquina próxima da minha casa onde as meninas, se aglomeram próximas de um carro com o som em último volume, onde nas noites de sábado e domingo o “pancadão” rola solto, irritando vizinhos, evangélicos e caretas em geral. Mas elas não se incomodam, continuam rebolando suas curvas, muitas bem feitas, em shorts curtíssimos e calças apertadas com tanta força que parecem ter sido fechadas a vácuo, enquanto eles ainda estão na posição de senhorio, com roupas folgadas e tétricas, talvez num modo de esconder sua excitação por ver tantos movimentos lascivos do sexo oposto.
Entro no trem e as chances de haver ali alguém com o celular ligado tocando funk “proibidão” são de quase cem por cento. Pouco adianta olhar torto e fazer cara de poucos amigos para eles. O volume não irá abaixar, as pessoas ao redor continuarão desconfortáveis e minha leitura vai ter que esperar, já que é impossível se concentrar ouvindo os gemidos e sussurros insinuantes que saem dos alto-falantes dos aparelhos.
O estilo musical que começou nos Estados Unidos, ganhou o Brasil como uma maneira de expor toda a sensualidade que antes ficava dentro do armário e arrastou multidões. Seja pela letra apelativa com um palavreado completamente chulo, muitas vezes fazendo apologia à violência ou talvez apenas como um chamariz para o sexo completamente descompromissado com o maior número de pessoas que talvez eles mesmo sequer sabem o nome.
O funk rompe barreiras, mas ainda não venceu a maior de todas: a do preconceito. E parece ser isso que suas letras tentam combater. Mostrar que ser preconceituoso contra a ignorância alheia está fora de moda hoje. A alguns anos atrás conversando com um funkeiro  questionei o que ele dizia para uma menina que ele tivesse se interessado num dos pancadões que frequenta. Perguntei: “o que você diz depois de falar o seu nome”, ao que ele me respondeu “a gente não fala nada não, a gente já chega e pega logo”.
Chegamos talvez ao auge da degradação moral, à falta de valores, uma descida que parece não ter mais fim. Ao que me pergunto: o que é o funk proibido? Sexo explícito em alto-falantes e fones de ouvido, crime, cultura ou a falta dela?

A certeza imaginária

Você descobre que encontrou a pessoa certa, no exato momento em que acorda e o primeiro pensamento vai automático procurando por aquele nome que encontra o seu porque estão conectados de uma forma que não conseguimos explicar. Você tem certeza de que está no caminho certo, quando você não precisa esperar uma ligação que você sabe que chegará naquela fração de segundo em que você pensa e acontece. E no momento mágico do “alô” a voz que entra pelo ouvido causa reações químicas e sudorese intensa, as mãos tremem e tudo que antes doía, já não dói mais agora, porque o momento é por si só feliz. E os planos começam a se materializar mesmo que no apenas no pensamento, e começam a tomar forma no mundo das ideias, mas os segundos teimam em passar mais devagar, já que aquela pessoa está ali tão perto, mas o jeito é esperar. Mas é talvez a melhor das esperas, é aquela espera que se sabe que vai dar certo, que é a última espera. É a espera que teimamos em permanecer, quando tudo está praticamente ao alcance da mão, mas só resta aquela música que agora é tema dos dois, e a foto no porta retrato na cabeceira da cama, que recebe o carinho dos dedos, no primeiro movimento do dia. É a espera de quem dorme com o cheiro da pessoa amada no travesseiro, tentando fazer com que o cheiro traga a pessoa mais para perto, já que ali, no lado vazio da cama, está apenas a lembrança, junto com a certeza. A certeza insana e teimosa que só tem quem ama de verdade, a certeza que temos quando pensamos tanto, que é possível sentir o toque, a tez, a cor e o sabor de coisas que não aconteceram ainda. Ainda. E é nesse exato momento que descobrimos que todas as coisas vividas, todos os anos esperados foram apenas a base para algo muito, muito maior e melhor. E é nesse exato momento que descobrimos que tudo aquilo que foi sonhado, planejado e imaginado, era tudo verdade, que não era fruto de uma mente delirante. Era e é tudo real. Muito real.

Magnólia - Cap. 3

O reverendo Mauro Augusto, da congregação Luz Azul havia terminado o seu sermão, mostrando os malefícios causados pelo consumo de álcool, malefícios para o corpo, para o espírito e para a família. Assim que saiu da sua tão amada igreja, deixou a mulher e os filhos em casa, tirou o blazer cinza e a gravata, colocou a camisa para fora das calças e pegou novamente a chave do carro. Disse para a mulher que iria “ali comprar uma coisa”, mas não revelou o seu paradeiro.
Parou num supermercado, dois bairros depois do seu, para não correr o risco de ser avistado por alguma de suas “ovelhas”, pegou uma sacola preta e dentro dela colocou duas garrafas de bebida barata, foi ao caixa, pagou em dinheiro, e abriu ali mesmo dentro do carro. O reverendo Mauro, era havia quase dez anos, um devorador contumaz de bebidas fortes, nunca tentando largar o vício mas ao mesmo tempo lutando para nunca ficar viciado. Tinha por hábito manter um estoque de chicletes e balas que consumia com voracidade fosse para um disfarce rápido caso uma blitz o parasse ou para disfarçar o cheiro ardido quando conversava com alguma pessoa, fosse em casa, fosse não.
Assim que chegou em casa, a mulher o surpreendeu. Queria ver o que tinha na sacola e o reverendo Mauro não ia deixar de jeito nenhum. O álcool já começava a fazer efeito. Empurrou a mulher que caiu sentada sobre um dos braços do sofá mas deu um mal jeito nas costas, o que causou dor por diversos dias. Ela não iria desistir tão fácil, por isso foi atrás do marido, e esse foi o seu erro. O reverendo não gostava de ser acuado, de estar nas cordas ou na lona, muito menos de ouvir uma descompostura da mulher. Os filhos estavam no andar de baixo, assistindo à televisão quando o primeiro soco aconteceu. E depois o segundo e mais outro. Sempre em lugares onde poderiam ser escondidos por algumas camadas de roupas. Arrastou a mulher para fora do quarto e trancou a porta. E ali na paz de seu quarto, o reverendo Mauro se sentou na cama. A vergonha e o remorso o haviam deixado fazia anos, e ele já não mais se importava com isso. Estava sendo consumido pelos seus demônios.
A primeira garrafa acabou por volta de três e meia da manhã. Ele sabia que a essa hora todos estavam dormindo, por isso desceu as escadas às cegas, tateando pelas paredes, e tendo a quase imperceptível consciência de que deveria dar um passo de cada vez na escada. Tomou meio litro de água e voltou para a sua cama. Olhou a garrafa vazia no chão e mais uma vez se perguntou por que fazia aquilo. Uma garrafa inteira! Ele jamais havia bebido tanto assim. Uma garrafa pode matar um homem, mesmo um bebedor inveterado. E num momento de rara lucidez, se lembrou que era madrugada de segunda, e em poucas horas ele deveria estar de pé novamente. Sentou-se outra vez na cama, e seu corpo não resistiu. Apagou.
O despertador apitava furioso às sete horas da manhã, mas o reverendo Mauro, em seu estado comatoso não ouvia. Seu cérebro estava muito longe dali, mergulhado em algum lugar que ele jamais iria saber. De repente, voltou a si, e percebeu que já era o momento de levantar. Abriu o chuveiro, e tomou seu banho matinal, quente, longo e sem sentimento de culpa. Não se lembrava da surra que havia dado na mulher na noite anterior, e não sabia por que ela não estava na cama quando ele acordou. Na verdade, ele não sabia de nada.
Abriu a porta da garagem após colocar sua roupa de forma desajeitada, as cores fora de sintonia e voou em seu carro rumo ao centro. Estava atrasado, seu cérebro estava lento, os reflexos pouco existiam, mas a pista estava livre. “Estranho a esta hora da manhã”, ele pensou, e o pé afundou um pouco mais no acelerador. Ah! Como era bom sentir aquele vento matinal batendo em seu rosto e fazendo seu corpo voltar novamente à Terra.
A Rua Pinheiro Machado é uma importante rota de ligação entre as zonas sul e norte na cidade do Rio de Janeiro, e, cercada por belas árvores, é um bonito lugar para se visitar no bairro das Laranjeiras.  A árvore era um grosso ipê-amarelo, com mais de cem anos de idade, que tombou, arrancando a fiação da rua, e congestionando o tráfego da região. Do lado de dentro do veículo completamente retorcido e destruído, estava o corpo inerte do reverendo Mauro Augusto, cinqüenta e um anos, casado, pai de cinco filhos, dos quais três casados.  Deixou para trás, família, uma congregação devota e uma garrafa de vodca nacional.
Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Dona Edite ouve a campainha tocar e vai em direção à porta, levando as duas mãos às costas, para tentar conter um pouco da dor dos socos recebidos na noite anterior. Do lado de fora, dois policiais cabisbaixos, e com uma carteira nas mãos. Era a carteira que ela havia dado de presente para o marido. Duas semanas antes.

Magnólia - Cap. 2

Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. A mulher loira sobe correndo os doze andares que dão acesso ao seu apartamento. O elevador está em manutenção, e seus passos, agora de dois em dois degraus, ficam mais lentos, sua respiração mais pesada, riscos de suor começando a aparecer em seu rosto. Precisa chegar logo em casa, ligar o computador, porque já está na hora de falar com seu namorado. Ele está longe, em viagem de férias e ela não conseguiu uma licença no trabalho para ir junto. Mas se falam todos os dias, todas as noites. Finalmente ela chega, liga o aparelho e enquanto o maquinário começa a trabalhar, ela corre até a cozinha, pega o primeiro sorvete que vê à frente e se senta na cadeira, jogando os sapatos para um canto. A bagunça pode esperar.
Ele está online. Esperando. Eles se falam, as amorosidades de praxe, ela respira fundo e sabe que tudo está bem, e que restam apenas mais uns poucos dias para que tudo volte ao normal. O telefone toca. Uma amiga chamando para sair, ao que ela declina. Não quer saber de pares de olhos famintos a devorando, no Astoria, o bar que costuma freqüentar quando sai com Marcel. A janelinha do computador pisca enquanto ela desliga o telefone e volta toda a sua atenção àquela tela minúscula, mas que provoca arrepios em todo o seu corpo.
A campainha toca, e ela pragueja. Terá que se levantar e abrir a porta, mas, por que o maldito porteiro não avisou pelo interfone? Claudia olha pelo olho mágico da porta mas não vê ninguém. A campainha toca de novo. “Quem é?”, ela pergunta, ao que o porteiro se identifica e diz trazer uma encomenda. Ela abre e as flores parecem cobrir o corredor inteiro, mas cabem nas mãos pequenas e atarracadas do porteiro. Ela agradece e volta ao computador. Ela abre o cartão, lê e digita um agradecimento, um pequeno verso, e três palavras que a resumem. Pergunta quando Marcel irá chegar, já que ela não agüenta mais de saudades, quer ele ali, para abraçá-la e provocar as sensações que sabe que apenas ele pode provocar. Ele diz que não sabe ao certo, não exatamente, mas que será em breve. Ela pergunta se ele está no hotel, porque assim pode vê-lo pela câmera e terminar pelo menos com um pouquinho da saudade, mas ele não está no hotel. Está na rua, e a câmera ficará para depois.
Vinte minutos se passam. Ela está cansada, precisa de um banho. Ele diz que ela não precisa se preocupar, que demore o quanto for preciso. Quando terminar, ligue para que possam continuar a conversa. Ela deixa o som ligado, Electrical Storm, a música dos dois. Dez minutos se passam, e agora que o banheiro está tomado pelo vapor e suas energias começam a se recarregar, a campainha toca outra vez. “Maldito porteiro”, ela xinga. Ela resolve ignorar e continua no seu banho. Mas o som continua a perturbar, pela segunda, terceira, quarta, quinta vez seguidas. Claudia desiste, veste seu roupão e sai em direção à porta, com a cara amarrada, peculiar das pessoas que não querem ser interrompidas, ainda mais num momento sagrado como aquele. Ela abre a porta com violência, e se prepara para uma descarga catilinária quando ela vê Marcel, escorado no batente da porta. Eles se abraçam, se beijam até se fundirem numa mistura de suor, sexo e White Horse. E a noite segue, com a porta semi aberta do apartamento 1201, as flores amassadas sob seus corpos ao som de U2. E dormem envolvidos numa solução salina, mas não se importam. É a melhor solução que existe.

Magnólia - Cap. 1

Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Terceiro andar. Cristina vê a porta do elevador se abrir, e sabe que do outro lado da porta, o pânico e a insegurança a esperam. São oito da noite e o namorado ainda não chegou em casa, mas isso não irá demorar para acontecer. Ela aperta a bolsa contra o peito, procura avidamente pelas chaves, que agora já não tem certeza se servem para deixá-la segura e protegida das atrocidades do mundo, dos latrocínios, homicídios e infanticídios que rondam o Rio de Janeiro, ou se servem apenas para deixá-la presa com o inimigo, causando assim o inverso dos sentidos.
Oito e quarenta e cinco. Há alguém abrindo a porta, e Cristina sente o coração disparar. Não de emoção como era naquele tempo em que Miguel era outra pessoa. Naquele tempo em que os dois se davam bem e faziam planos, naquele tempo em que ele dizia que só a morte os iria separar. Cristina fecha os olhos, enquanto junta as duas pernas e se encolhe em posição quase fetal, os olhos miúdos e o queixo apoiado sobre os joelhos. Miguel entra, beija sua testa e diz coisas que ela sabe que jamais irá esquecer, porque aquela será a última noite.
Ela tenta sorrir, aquele sorriso forçado, típico de quem não quer fazer aquilo. As lembranças vem com força: “Se você me deixar eu mato você, e me mato em seguida”, ela ainda consegue ouvir, não porque foram ditas recentemente, mas porque marcaram na alma. Uma marca muito mais profunda do que todas as declarações de amor que ela já ouviu na vida. Está enclausurada, acompanhada pelo medo e pela vergonha. Não consegue entender como fora parar ali, logo ela que tem dois doutorados, um bom emprego e uma legião de homens aos seus pés.  Também não consegue entender como tudo chegou a esse ponto. E a todo tempo tenta se lembrar daquele homem que antes era, como ela mesma gostava de repetir, “o sonho de qualquer mulher”, se transformar num pesadelo e num show de horrores, como está agora.
Miguel está na sala, organizando uma pilha de DVD’s. Parece feliz, distraído, senhor da situação. Ela chega, pergunta se precisa de ajuda, ele declina. “Miguel eu preciso de um tempo”, ela diz tentando prever os rompantes do homem que ela um dia amou, um dia que já ficou amontoado entre os milhares no passado. “Cristina você precisa de mim e eu de você. Somos felizes aqui. Deixe de bobagem e fique aqui comigo”.  Ela balança a cabeça negativamente, mas de modo sutil, e ele percebe que seu mundo, antes perfeito, explodiu e queimou, ruiu, e basta uma leve brisa para transformar tudo em cinzas.
Dois meses antes, Cristina estava no hospital da Casa Verde. Eram três da manhã e os médicos, lutavam para manter o coração de Miguel funcionando, culpa de uma ingestão de barbitúricos e álcool, uma cena em que ela jamais conseguiu entender como Miguel conseguiu sair vivo desta.  Ele dizia que era simplesmente insuportável viver sem ela, e sem ela, seu mundo não existia mais. Seu amor era grande demais para ser jogado fora, e ele não iria aguentar. E não aguentou. Cristina se pergunta onde está aquela pessoa doce, carinhosa e tão segura que ela havia conhecido. Onde estaria agora aquele homem que a havia impressionado com sua convicção, com sua certeza e a bravura de quem quer ganhar o mundo, dominá-lo e colocá-lo a seus pés e que agora não passa de um moribundo, estirado em uma maca fria, tentando impressioná-la do jeito mais ridículo que uma pessoa pode impressionar? Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas. Miguel se entregou. Deixou que seus demônios tomassem o controle. Mas talvez ainda resta uma nesga de esperança. Dez dias de coma profundo se passaram. Miguel está vivo outra vez. Resta saber por mais quanto tempo.
Cristina se vira e sabe que aquilo foi a cena de despedida que ela jamais havia imaginado. Está decidida, e nada irá mudar aquela noite. Miguel pode chorar, ameaçar se jogar do terceiro andar, que ela não vai voltar atrás. Duvida que ele tente se jogar do terceiro andar, um lugar em que ao se jogar, a morte ainda não é uma certeza, e estar vivo mais uma vez depois de tanta humilhação seria ainda pior. Mas sabe que ele sempre pode subir alguns andares a mais e cumprir sua promessa de que não poderá viver sem ela. Uma pessoa que se joga de tão alto busca alívio, não o salvamento.
Ela está eufórica, não com o término da relação conturbada, mas com a reação do namorado. Quem tenta o suicídio por amor, é capaz de matar também por amor, e essa ameaça ela já ouviu. É preciso ter cuidado com as pessoas que não tem nada a perder.  O telefone mostra no visor o número 190 e basta pressionar a tecla verde, caso ela escute alguma batida mais agressiva na porta ou algum impropério dito por ele. Alguns minutos antes, fez uma ronda pela casa, em busca de tudo que poderia servir de muleta para um homicídio ou um suicídio. Deu fim em todas as garrafas de bebida, jogou fora todos os remédios, que havia no apartamento. Felizmente Miguel não tem uma arma. Cristina está um pouco mais tranquila, mas seu coração pulsa acelerado a cento e vinte batimentos por minuto.
A batida na porta vem, mas não é agressiva, é suave, e a voz carinhosa, quase angelical de Miguel a chama do outro lado. “Por favor não vá embora”, ele diz calmamente e ela sabe que restam apenas mais alguns segundos para que as lágrimas cheguem de forma raivosa, um dique prestes a explodir. “Eu sei que você não me ama mais, me deixe apenas te dar um abraço antes de ir”, ele implora, de maneira serena.  Cristina tem medo, ele pode usar sua psicologia para alterar seu modo de pensar, e usar sua engenharia social para tentar mantê-la ali para sempre. Está consciente do jeito de Miguel. Psicopata, sociopata, desprovido de senso prático, e morador da zona erma, que é o lugar onde moram os marginais mentais. Condutopático. Ela pede que ele espere um minuto. Ele concorda.
Cinco minutos se passaram. Cristina sai do quarto, as malas estão prontas e o táxi a espera lá em baixo. Vai passar alguns dias com a irmã em São Paulo, afim de colocar a cabeça no lugar outra vez. Abre a porta e sabe que aquele será o momento mais difícil, o que irá alterar toda a história, mas está preparada para o que vier. Ela pensa que está. Miguel está sentado no carpete da sala, encostado no sofá. “Eu já vou”, ela diz, com medo de que ele esteja com alguma arma, ou que demonstre alguma reação violenta, agora que sabe que perdeu. Ele não responde. Ela volta ao quarto, pega as malas e sai fazendo barulho com as rodinhas. E assim terminou a relação que ela achava ter sido o pote de ouro no final do arco-íris: sem um adeus, sem um beijo, sem nada. Os dois simplesmente se afastaram.
Cristina abre a porta, enquanto espera alguma reação, reação esta que não viria. Ela coloca as malas no corredor e olha pela última para dentro do apartamento. Miguel está ainda sentado. Mas começa a se mexer. Cristina sente o coração disparar outra vez, prevendo que ele vá até a porta e faça algo, mas não é isto que acontece. O corpo de Miguel tomba para o lado e ela sabe que algo de errado aconteceu.  Os pulsos foram cortados com lâminas de barbear, também há marcas de corte na garganta. Ambas as mãos estão sujas de sangue, e Miguel começa a tremer e a se debater. Cristina sabe que é hora de tomar uma decisão. Mas não pode se render novamente às chantagens e bizarrices do namorado sociopata. Respira fundo. Já passou por aquela situação outras vezes. Apanha o telefone, e liga para o serviço de emergências do hospital da Casa Verde. Não tranca a porta, apenas fecha, puxa suas malas ouvindo o barulho abafado das rodinhas no carpete do corredor. Enquanto espera o elevador chegar ao terceiro andar, arruma os cabelos usando como espelho, o metal prateado da porta do elevador. Entra no táxi que ainda a está esperando e desaparece no escuro da noite. Olha pela última vez a entrada do edifício Magnólia, e sabe finalmente, que ali, ela jamais irá voltar.

Pais e Filhos

Acho que a idade finalmente me alcançou. E no meu momento nostalgia, fico me lembrando das surras que eu levei do meu pai, e das vezes que apanhei da minha mãe. Lembro das tardes que minha mãe me fazia ler aqueles livros horríveis e depois eu tinha que fazer uma redação sobre aquilo que eu havia lido. Lembro com saudades das vezes que minha mãe me obrigava a dormir à tarde, para não dormir na aula na manhã seguinte, e  eu jamais havia entendido o porquê disso. Lembro das vezes que meu pai me comprava aquelas garrafinhas de Pepsi para eu levar para a escola, na época que ainda existiam tampinhas de metal, e na volta, quando ele ia me buscar na escola ele apertava minha mão com tanta força que parecia que ia quebrar minha mão quando eu errava a tabuada de 7 e eu o odiava. Lembro-me dos passeios, das voltinhas na quadra que eu morava e meu pai me falava: “Filho, tudo isso foi Deus quem fez”. E lembro-me das inúmeras vezes que meus pais me diziam: “Você só vai entender quando tiver seus filhos”. Pois bem, cresci, tive filhos e profeticamente eu entendi tudo. Hoje, depois que me tornei adulto, e vi como as coisas funcionam, vejo como é vã a ideia de que tudo irá melhorar depois que sair de casa. Que “agora que eu sair de casa, e for morar sozinho e não ter que dar a satisfação de onde vou e que hora irei chegar”, tudo será mais fácil, mais legal. E vejo que é um engano, um ledo engano, uma forma de mentir para si mesmo. Nascemos, vivemos e morremos sós, mas é o contexto que sempre irá importar. Os pais nunca dizem coisas para te machucar, para te magoar ou para te querer o mal. Eles, os pais, falam coisas que por mais que vocês, jovens, não gostem, irá te colocar num caminho bom, num caminho que (aceite ou não) é o certo. E hoje, trinta e um anos depois, eu lembro com saudades de tudo que passou, das broncas, e de tudo que passei, e lembro de quando meu pai me falava: “um dia você ainda vai me agradecer por isso”. Pois bem pai e mãe, eu agradeço todas as surras, sovas, e tapas que vocês me deram, porquê hoje e talvez apenas hoje, eu entenda, que isso me tornou a pessoa que eu sou, talvez vocês exagerassem um pouco, mas isso é só a opinião de um cara que passou por muitas e boas na vida, e que nas horas do maior perrengue, foi em vocês que eu me peguei pensando, e foi nessas horas que eu mais precisei do seu conselho ou talvez até dos seus tapas, que só agora eu vejo que não foram por mal. Há quem conteste? Sempre existe. Mas lembrem-se: seus pais são tão infantis quanto vocês. E erram tentando acertar. Como todo mundo.

Ato Um

Não é difícil aprender a arte de perder
Tantas coisas parecem feitas com o molde
Da perda que sua perda não traz desastre.
Perca algo todos os dias. Aceite o susto
De perder chaves, de perder tempo.
Não é difícil aprender a arte de perder.
Depois pratique perder mais rápido mil outras coisas:
Lugares nomes, onde planejou suas férias.
Nenhuma perda trará desastre.
Até perder você (a voz que ri, os gestos que amo).
Não posso mentir: não é difícil.
Não é difícil aprender a arte de perder
Por mais que a perda – (anote isto!) – pareça desastre.

Insônia

Cérebro acordado,
Insiste em ficar ligado,
inebriado, narcotizado, insensato,
Permanece assim, perpetizado,
estupefato, ingrato.

É alta madrugada.
Alada, infundada,
reflexo do que é o nada,
malfadada, insiste em ser indelicada,
mas continua assim, calada.
Enquanto isso eu continuo assim,
alerta, desperto, esperto,
procurando da noite o fim,
algo um tanto modesto, por perto,
mesmo que seja de festim.
Outra noite se vai,
Esvai, como um capítulo passado,
atrai, contrai, me trai,
me fazendo ficar acordado,
abobadado, irritado.
Quero minhas cápsulas mágicas,
que confirmam e desafiam, esse sono inerente,
que pouco está presente,
e que me deixa demente, persistente,
mas nunca ausente.
Minhas noites são assim
autoritárias, solitárias, marginais,
fazem o que querem de mim,
enquanto eu invejo quem em paz
dorme o sono tão desejado enfim.
Se ela pelo menos estivesse aqui,
faria um carinho, um jeitinho,
de me fazer dormir,
e com seu jeito singular,
cuidaria bem de mim.
Mas ela não está, e isso me desbaratina,
afina, como uma gelatina,
sovina, buzina, diminui a hemoglobina,
desanima e faz a noite ser assim,
sem rima, infeliz menina.
Outra vez irei tentar,
deitar, sonhar e enfim levantar,
mas se acaso a última tentiva falhar,
volto à tona e continuo assim,
a acordado ficar. 

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