O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Delerium

Já não sei o que mais me perturba, se é quando ela está perto e me faz viver, ou quando está longe e me faz imaginar e sonhar. Já perdi a conta das noites acordado com sua imagem tão gravada no meu pensamento e seu nome sussurrado na dimensão do meu quarto, pairando por cima de uma aura de magia e mistério que insiste em ficar. Desejo contido, incontrolável e reprimido, preso dentro de mim mesmo, gritando em silêncio para sair, como um pássaro em uma gaiola, abrindo suas asas sem poder voar. Desejo. Vontade. Frutos da minha imaginação delirante que não me deixa meia hora sequer em paz sem que eu olhe sua foto e aperte o Play na minha memória para ouvir silenciosamente o som doce e vibrante da sua voz que jamais ouvi. Tampouco esqueci. Saudade inocente, irreal, surreal, que mexe com a imaginação da gente. Saudade que me faz lembrar, imaginar, inventar. Saudade que dói e aperta o peito de uma maneira que talvez nem mesmo ela existindo seria possível terminar. Existir? Não existe? Se não existe por que a vejo onde quer que eu esteja? Por que ouço sua voz e sinto seu cheiro, seu toque, suas mãos onde quer que eu vá? Por que quero tanto que chegue logo o amanhã quando eu talvez poderei vê-la nem que seja somente nos meus sonhos e mais uma e outra vez viajar no tempo e no espaço e encontrá-la nas raias do infinito? Talvez ela já saiba tão bem tudo que tudo que precisa fazer é existir e mais uma vez me seduzir com seus olhos faiscantes, sua boca inebriante seu cabelo esvoaçante e sua voz sibilante. Ela só precisa existir para me completar. E me realizar. Fantasiar. Sorrir. Amar.

Do outro lado

Eu não sabia se deveria abrir os olhos naquele momento, mas sei que ela estava ali. Do meu lado, em pé ao redor da cama a me olhar. Olhando com aqueles olhos verdes faiscando íons energizados, gritando alguma coisa que eu não ouvia. Não a vi, mas tenho certeza que senti seu toque. Toque não. Presença. Arrepio, vento gelado que sobe pelas pernas e alcança a nuca, eriçando cada centímetro do meu corpo. Quero abrir os olhos, mas tenho medo do que talvez veja. Não sei se ela estará como da última vez que a vi, inteira, ou se estará como morreu, em módulos separados. É como se dedos frios roçassem a pele das minhas costas me deixando ainda mais arrepiado. Não tem jeito, se eu continuar ali, ficarei paralisado para sempre e nunca mais irei me levantar, por isso, começo a assobiar baixinho. Ninguém irá se importar. Moro sozinho e ninguém vai acordar. Dois copos com água e volto pra minha cama. Insônia. Não quero ligar a televisão. Desta vez não dou as costas para o centro do quarto. Fecho os olhos e de novo ela vem. Quer me dizer alguma coisa que ainda não consigo escutar. Mas outra vez sinto aquele vento gelado perto do ouvido, como se alguém sussurrasse algo para mim. Abro os olhos, mas nada vejo. Durmo. No sonho ela me conta que está bem, não devo ficar preocupado, me abraça com força, beija a minha testa e se dissolve em milhões de pedacinhos brilhantes. Entende minha preocupação e atende o meu pedido. Pedi para que ela aparecesse num sonho e me dissesse como estava. Dizem que pessoas que se foram dessa mesma forma brutal não descansam quando morrem. O espírito fica inquieto. Rest In Pain. Por isso preciso saber, preciso dormir tranqüilo sabendo que ela agora está bem, longe da agonia que deve ter passado nos últimos momentos aqui. Durmo e acordo animado, feliz, parece que tirei o peso do mundo das minhas costas. No lugar onde estou existem doze computadores, um está desligado, e é nesse reflexo que vejo alguma coisa se mexer. Do meu lado, no outro canto da sala. No cantinho da parede. Dá um passo em minha direção, mas em seguida volta. Parece não conseguir sair daquele ponto cego. Peço para alguém se sentar no mesmo lugar mas ele nada vê. Devo estar ficando louco. Mas tem alguém ali, você não está vendo? Olhe, está mexendo os braços. Está querendo que eu veja alguma coisa. Não tem nitidez, mas é óbvio que aquela mancha esbranquiçada é o reflexo de alguém. Talvez seja ela, ou alguma coisa, que provavelmente eu nunca venha a saber.

Angelicus

Seu primeiro presente foi um nome de anjo: Anyel. Amava o próprio nome tanto quanto a si mesma. Nome de anjo, beleza de anjo, ternura de anjo. Agora lhe faltavam as asas tão somente. Asas aladas para poder voar, para sombrear e para proteger. Para aconchegar, amparar e abraçar. E as asas começaram a aparecer numa tarde quente pouco depois que seus pais se separaram. A desilusão, a frustração e a sensação de impotência ante aquela cena da qual jamais se esqueceria, faria parte da sua vida angélica para sempre. No começo, ela quase não percebeu. Parecia um caroço, um nódulo em suas costas e até pensou em contar para a mãe, mas a mãe continuava numa tristeza só. Preferiu continuar em seu silêncio. E assim, pouco a pouco suas asas de anjo foram surgindo, deixando-a com as feições de uma fada madrinha, e já era difícil esconder aquele volume. As grandes asas se abriram completamente no instante que gerou a filha, sua única. Asas anguladas, brancas e bem arqueadas. Conseguiu outra vez esconder de todos aquele milagre. Por muitos anos. E durante todos esses anos Anyel voou por terras, mares, bosques, planetas e eternidades com suas asas de anjo. Lá de muito baixo as pessoas a viam e se diziam: “que pássaro esquisito!” E continuou voando por lugares onde apenas ela sabia onde ficava. Estava feliz por tudo que tinha ganhado até ali: seu nome, suas asas e uma filha. Apenas faltava um igual. Sentiu falta, chorou sozinha quando não pôde voar, chorou quando tantas vezes foi enganada e chorou quando despencou no abismo negro da dor quando seus medos se tornaram reais, quando seu casamento acabou, e agora com suas asas queimando em fogo vivo ela rodou e caiu, não encontrando mais o chão. Bateu com força na laje fria e cortante da dúvida e da desesperança. E lá de baixo, onde parecia não haver mais fundo, ela começou a se lembrar das asas, agora danificadas. Forçou e forçou, mas o movimento ainda era tão curto, quase imperceptível. Meses se passaram até que as asas voltaram a se movimentar. Alçou vôo e voltou à superfície. Numa noite conheceu alguém por quem se apaixonou. E foi amada, correspondida e adorada. Sentiu-se outra vez feliz, completa e realizada diante de tantas confirmações e afirmações daquele rapaz. Apenas não sabia como contar a ele sobre seu milagre, suas asas, sua benção que muitos achariam uma maldição. Então uma noite ela resolveu contar, sabendo que poderia perdê-lo ali mesmo, para sempre, dependendo da reação do rapaz. Mas ele a amava, disso ela tinha certeza. Ele a abraçou forte quando a viu e percebeu algo estranho em seu olhar, ela parecia triste, querendo dizer algo.“Preciso te contar uma coisa, na verdade preciso mostrar”, ela disse. Ele lhe deu um beijo apaixonado, o mais apaixonado que ela jamais tivera em sua vida angelical. Amanda sentiu-se segura, protegida e amada e num movimento, abriu completamente suas asas brancas. Olhou para ele no fundo daqueles olhos negros, mas ele não se assustou, nem sorriu nem chorou. Ela sorriu para ele e ele sorriu de volta. Em seguida pegou na mão dela e apenas lhe disse: “vem comigo”. Abriu suas asas também e voaram para bem longe dali.

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