O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Vinho amargo, O início - por Handerson Pessoa

Não me lembro que dia era daquela semana. Mas lembro que era dia dezesseis. Dia dezesseis de julho de 1984. Era um feriado, não me lembro de quê. Desci os degraus da escada que dava acesso ao sótão, tinha que pegar minha caixa de ferramentas. Meus patins já não eram usados a tanto tempo que perderam todo o óleo dos eixos. Então logo eu tinha que lubrificar. Não gosto de entrar no sótão. É um lugar carregado de saudades e memórias.
Mal entrei e já avistei a arca. Dentro dela alguns dos pertences dos meus amigos, Beto e Flavinha. Tinha quase um ano que os dois haviam morrido em um desastre aéreo. Sentei em frente a arca e comecei a pensar. Encostei os patins em um canto, enfiei a mão num dos bolsos do meu jeans, e apanhei a chave. Abri a arca.
Alguns livros, álbuns de fotografias, fitas cassetes e VHS tomavam conta da arca. Estava abarrotada. Eram alguns pertences que por causa da amizade que tínhamos, eu pensei serem meus de direito. As famílias não iriam se importar.
Eu jamais havia aberto aquela arca, jamais. Achei que não suportaria. Revistei tudo, e no fundo, bem lá no fundo havia um diário. Um diário preto, de couro. Comecei a folhear, fiquei quase duas horas ali sentado no concreto puro relendo as memórias. Lembrei da viagem repentina do meu amigo para Reikjavik, sem se despedir, sem um telefonema nem nada. Avancei um pouco mais nas páginas e vi algo que me interessou. Dia 15 de maio de 1983. Havia uma carta dobrada presa à página apenas por um clips prateado. Na carta os motivos para ela, a Flavinha continuar longe dele. Filha, bom comportamento do marido (marido?), medo da reação das pessoas ao saber que estava namorando o homem da sua vida. Mas os dois já estavam separados... nunca entendi o porquê desse medo. Mas as declarações de amor, e que ele, o Beto era “o homem da minha vida” e tantos “eu te amo” e “nunca vou te esquecer” tinham tantas instâncias que eu imaginei o Beto fundindo a cuca com tudo aquilo. Afinal abrir mão de tudo e receber isso em troca, deve ser para acabar com qualquer um. Algumas coisas nunca mudam.
Páginas e mais páginas a frente e outra revelação. Uma noite de melancolia, nostalgia e desespero, tudo junto parece que atacou o meu amigo. Jamais soube que meu amigo tinha uma arma em casa, e que quase tirou a própria vida tentando se livrar da dor. Em quase cem por cento dos casos, a pessoa não quer acabar com a vida, ela quer viver, quer continuar, mas a dor é tão excruciante que cega e tapa os olhos da razão e da clarividência. Li isso numa revista a algum tempo atrás, esqueci o nome.
Todas as memórias, tudo estava ali. O dia que ficaram escondidos na casa do pai da Flavinha, o dia que foram para a casa dela quando o marido havia viajado, o dia que ela quase quebrou o dedo do Beto acidentalmente em um hotel, o dia que almoçaram juntos num restaurante japonês depois de quase se mataram de fazer amor em um hotel, o dia que sentaram e planejaram uma vida onde ninguém iria os separar. Tantas e tantas lembranças guardadas naquele diário, que quando minhas mãos suaram pensei serem lágrimas que vertiam do livro. Aquele homem lá realmente amou aquela mulher.
Terminei de ler o diário já eram quase três horas da tarde. Guardei de volta na arca e foi quando eu vi um outro livro, outra espécie de diário. Da Flavinha desta vez. Abri, e de repente um sono estranho me atacou. Adormeci ali mesmo. No meu sonho, meu casal preferido acenava para mim, e eu ouvia o Beto me pedir para queimar tudo aquilo. Eles não precisavam mais daqueles momentos tão tristes que viviam a atormentá-los. Estavam felizes agora. Haviam encontrado na morte a paz e a felicidade que não haviam tido na vida.
Acordei num pulo. Levei a arca para fora. Juro que senti uma ponta de tristeza por estar desfazendo de tudo aquilo, mas eu acredito em sonhos e em visões e eu ia me desfazer de tudo. Tudo queimou durante muitos e muitos minutos, e já a noite, enquanto eu abraçava minha namorada debruçado na amurada de madeira do andar de cima na minha casa, senti um arrepio frio, e minha nuca pareceu levar um choque. Estranho. No céu, uma estrela cadente passou riscando o infinito. Fiz um pedido.
Durante a noite, em um sonho, meu casal favorito, meus dois amigos imaginários, Beto e Flavinha sorriam, de mãos dadas, e acenavam em agradecimento. Iam ficar mais uma noite no hotel Filadélfia e amanhã iriam embora. Para onde só os dois sabiam onde ficava.

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