O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Angelicus

Seu primeiro presente foi um nome de anjo: Anyel. Amava o próprio nome tanto quanto a si mesma. Nome de anjo, beleza de anjo, ternura de anjo. Agora lhe faltavam as asas tão somente. Asas aladas para poder voar, para sombrear e para proteger. Para aconchegar, amparar e abraçar. E as asas começaram a aparecer numa tarde quente pouco depois que seus pais se separaram. A desilusão, a frustração e a sensação de impotência ante aquela cena da qual jamais se esqueceria, faria parte da sua vida angélica para sempre. No começo, ela quase não percebeu. Parecia um caroço, um nódulo em suas costas e até pensou em contar para a mãe, mas a mãe continuava numa tristeza só. Preferiu continuar em seu silêncio. E assim, pouco a pouco suas asas de anjo foram surgindo, deixando-a com as feições de uma fada madrinha, e já era difícil esconder aquele volume. As grandes asas se abriram completamente no instante que gerou a filha, sua única. Asas anguladas, brancas e bem arqueadas. Conseguiu outra vez esconder de todos aquele milagre. Por muitos anos. E durante todos esses anos Anyel voou por terras, mares, bosques, planetas e eternidades com suas asas de anjo. Lá de muito baixo as pessoas a viam e se diziam: “que pássaro esquisito!” E continuou voando por lugares onde apenas ela sabia onde ficava. Estava feliz por tudo que tinha ganhado até ali: seu nome, suas asas e uma filha. Apenas faltava um igual. Sentiu falta, chorou sozinha quando não pôde voar, chorou quando tantas vezes foi enganada e chorou quando despencou no abismo negro da dor quando seus medos se tornaram reais, quando seu casamento acabou, e agora com suas asas queimando em fogo vivo ela rodou e caiu, não encontrando mais o chão. Bateu com força na laje fria e cortante da dúvida e da desesperança. E lá de baixo, onde parecia não haver mais fundo, ela começou a se lembrar das asas, agora danificadas. Forçou e forçou, mas o movimento ainda era tão curto, quase imperceptível. Meses se passaram até que as asas voltaram a se movimentar. Alçou vôo e voltou à superfície. Numa noite conheceu alguém por quem se apaixonou. E foi amada, correspondida e adorada. Sentiu-se outra vez feliz, completa e realizada diante de tantas confirmações e afirmações daquele rapaz. Apenas não sabia como contar a ele sobre seu milagre, suas asas, sua benção que muitos achariam uma maldição. Então uma noite ela resolveu contar, sabendo que poderia perdê-lo ali mesmo, para sempre, dependendo da reação do rapaz. Mas ele a amava, disso ela tinha certeza. Ele a abraçou forte quando a viu e percebeu algo estranho em seu olhar, ela parecia triste, querendo dizer algo.“Preciso te contar uma coisa, na verdade preciso mostrar”, ela disse. Ele lhe deu um beijo apaixonado, o mais apaixonado que ela jamais tivera em sua vida angelical. Anyel sentiu-se segura, protegida e amada e num movimento, abriu completamente suas asas brancas. Olhou para ele no fundo daqueles olhos negros, mas ele não se assustou, nem sorriu nem chorou. Ela sorriu para ele e ele sorriu de volta. Em seguida pegou na mão dela e apenas lhe disse: “vem comigo”. Abriu suas asas também e voaram para bem longe dali.

Silêncio!

Silêncio, psiu, nem um pio. Não vou dizer mais nada. Se ela não ligar, eu é que não vou cometer esse desatino. Outro não, por favor. Ela não veio, depois de prometer na segunda, na quarta, e acho que na sexta também. E depois que já havia passado das nove da noite é que resolveu dar o ar da graça, como se nada tivesse acontecido, como se minha opinião e o meu sentimento não valessem nada. É por isso que eu não vou sorrir, não vou perguntar se está tudo bem, por mim que se dane eu não ligo. Não vou perguntar como foi o dia e se o cachorro comeu, se a tia enfartou, se o primo bebeu além da conta, se alguém surtou. Não me interessa. Da minha parte não vou ligar, não vou perguntar nem quê nem por quê. Também sei me fazer de difícil, tenho meus momentos. E quando teimo, nem mesmo uma aquariana vai me fazer mudar, nem desemburrar, nem falar. Silêncio. A chuva teima em cair. Estou no meu trabalho, quando a vejo chegar. Ela me olha e eu retribuo o olhar, um olhar qualquer, o mesmo que ofereço a um desconhecido na rua ou alguém que me pede uma moeda. Ela diz oi e eu repito. Oi. Nada mais. Tá achando que é fácil assim? Silêncio, silêncios, ausência completa de ruídos. Não ligo se teve que resolver um milhão de problemas e por isso não deu tempo de vir, mesmo que tenha acordado à uma da tarde ou às seis da manhã, porque na noite anterior teve festinha (?) e eu, claro, não fui (convidado). Não me importa se a festinha era de família, ou se estava chovendo quando chegou aqui. Não me importa se o novo emprego começa na próxima segunda, ou se a chapinha estragou, ou se a unha lascou, ou se o cachorro morreu, ou se a mãe passou mal, ou se as visitas demoraram a ir embora. Nada disso me interessa. É esse o motivo do meu desdém. É o motivo pelo qual não estou nem um pouco afim de discutir, falar, causar. Silêncio, abstenção voluntária de falar, pssssiuuuuu, cale essa boca. Não quero saber se tem motivos pra clandestinidade, ou se alguém não vai entender, que se dane o resto do mundo que não ta nem aí para nem um de nós, nem eu, tampouco ela, esse mundo de perversos, ignorantes, e filhos da puta, que não estão nem aí desde que pague suas contas e limite-se a balançar a cabeça para algo ou alguém só porque é o que todo mundo faz. Quero meus direitos, apelo para o meu direito de ser ouvido, de ser abraçado, de ser acalentado. Vida real, abaixo o virtual. Coisa viva, palpável, calor, humor. E enquanto ela insiste em continuar com as mensagens de texto, que nada mais são do que formas anônimas de esconder o que se realmente tem pra dizer, eu me canso, meus dedos já não suportam o toque desse teclado duro, chato e feio. Meus dedos se calam, meu silêncio grita. Quero som, ela imagem. Quero real, ela virtual. Quero junto, ela... (o que ela quer mesmo?). E no meio de tantos disparates, no meio de tantas desinteligências começo a me perguntar o porquê de tudo isso. Chega! O telefone vibra, que droga! Pare de me mandar mensagens. Tá me achando com cara de Twitter? E assim, enquanto eu me desabo em verborragias, e nessa catilinária que nada tem de preponderante que apenas traz aquela vontade interna, incontrolável de sangrar e me desesperar, ela se mata de tanto rir da minha desgraça. Eu me calo. Nem um pio.

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