O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

A árvore de Chiara

Um dia contaram a Chiara que tudo que quisesse se tornaria realidade se ela anotasse tudo em uma lista e colocasse essa mesma lista em um local onde estivesse sempre à vista para estar sempre lembrando. Ela tinha quatorze anos quando começou a planejar. E anotou. Planejou. Imaginou tudo, dia após dia. E nada. Aos dezessete anos apenas dois itens da lista haviam se cumprido. E Chiara então ficou muito triste por tudo que não havia acontecido.
Num dia de muita chuva e sol ao mesmo tempo, Chiara saiu água abaixo e no quintal de sua casa abriu um pequeno buraco no chão, dobrou a lista, e enterrou unto com o resto da maçã verde que estava comendo. Depois de alguns meses percebeu que uma pequena arvore estava nascendo ali mesmo no seu jardim. Era de novo um domingo à tarde com sol e chuva fina quando seus pais a proibiram de fazer uma viagem sozinha. Chiara saiu para o jardim e chorou sobre a pequena arvorezinha enquanto olhava o arco-íris multicor se formar no céu cinzento.
Naquela mesma noite, a árvore, adubada pelas lágrimas de Chiara cresceu e se tornou uma grande macieira. Ninguém soube explicar como uma árvore daquele tamanho havia aparecido no jardim do quintal da noite para o dia. Quando acordou viu a árvore cheia de maçãs e assim que comeu a primeira ouviu seu pai chamar por ela. Ele estava com um bilhete de passagem aérea. O presente de aniversário de Chiara. Outro dia se passou e no cursinho viu que havia passado no vestibular para odontologia. E assim cada um dos desejos se tornou realidade toda vez que comia uma maçã de sua árvore. E Chiara sorriu todos os dias de sua vida por ter conseguido tudo que queria. E sua árvore continuava crescendo forte e sua sombra dava repouso a todos. E alimentou dezenas de pessoas. Incluindo seus filhos, netos e bisnetos. E continuou assim, mesmo depois que Chiara se foi para o lado de lá e viver eternamente como havia desejado no último item de sua lista que havia sido enterrado junto com as raízes de sua árvore.

Crossroads

Foi então que aconteceu que num final de tarde de sábado, não me lembro o mês, mas o ano era dois mil e seis, que estávamos saindo do trabalho, o Gabriel e eu, e estávamos descendo a Rua João Cachoeira no Itaim Bibi, em direção ao Extra, aquele que fica no cruzamento da Leopoldo Magalhães aqui em São Paulo. Caprichosamente o carro não pegou. O Gabriel garantiu que tinha abastecido na noite anterior. Tentamos de tudo. Empurramos o carro, balançamos e nada. Tivemos que ligar para a seguradora. Enviariam um mecânico em no máximo quarenta minutos.
O carro estava parado na ruazinha atrás do Extra e ali estava um rapaz sentado na mureta com uma rosa na mão olhando o longe. Meu amigo entrou no supermercado para comprar algo para comermos, e eu já estava me arrependendo por ter aceitado a carona. Olhei para o rapaz, mas ele não demonstrava impaciência. Mas também parecia estar ali apenas por estar. Ele viu que eu o estava olhando e se apoiou numa protuberância que há no muro, onde passa o relógio de luz.
“Ela virá!”, ele disse. Beijou a rosa e a colocou carinhosamente sobre um monte de galhos secos. Olhei para os lados para dar uma impressão de susto como quem diz: “O quê? Está falando comigo?”. Foi quando ele começou a falar, nunca olhando para mim, mas sabendo que eu o olhava. “Eu amei uma pessoa aqui, neste exato lugar”, ele disse. “Ela vestia calças cor creme, camiseta branca, tênis brancos e usava o cabelo preso num coque. Estava bem ali quando a encontrei”, e com o dedo indicador apontou a esquina em frente ao bar. “Como ela se chamava?”, perguntei, mas ele não respondeu. Apenas continuou: “Ficamos juntos por quase dois anos. Uma noite fizemos amor bem aqui. Lembro-me como se fosse agora, ela numa blusa preta, calça cinza e scarpin. Eu já estava começando a rezar para o mecânico chegar logo, arrumar o carro e irmos embora. Não estava com paciência para histórias dramáticas. “Então todos os dias venho aqui, porque um dia ela voltará para este lugar”, ele disse e tudo que consegui pensar foi: “Meu Deus, que cara burro!”. Olhei pelo retrovisor e nada do Gabriel. Como sou muito impulsivo, não resisti e perguntei: “Mas rapaz, com o mundo inteiro aí para ser explorado e você aí, esperando alguém que provavelmente nem virá, por que não esquece essa mulher e cuida da sua vida?”. Mas ele apenas me disse que o que haviam vivido era tão forte que ele não desistiria de esperar. E ele sabia que ela também o amava, e que ficaria ali todos os dias, esperando ela voltar. Os olhos sempre fixos naquela esquina. Meu amigo Gabriel voltou e junto com ele o mecânico. O carro só tinha um problema: falta de combustível. Saímos de lá vinte minutos depois, mas já estava anoitecendo. Passei por aquela esquina durante dois anos e seis meses e sempre via sentado naquele mesmo lugar, o rapaz. Era sexta à noite e no bar daquela esquina estávamos sentados, eu e o pessoal do trabalho. Olhei pelo vidro molhado pela chuva que caía e lá estava o rapaz. Nunca desistia. Olhei no relógio, eram 11h10min. Alguém se levantou e foi até o Jukebox e mudou a música. Estava tocando Don’t dream it’s over, na versão de Crowded House. Olhei para a rua e vi quando o rapaz se levantou e ofereceu a rosa a uma mulher com cabelo preso em coque, camiseta branca e calça cor creme. Beijaram-se por longos minutos parecendo querer contar uma vida inteira naquele movimento. Eles se olharam nos olhos. Não pareceram dizer nada porque nada havia para ser dito. Respirei profundamente, lentamente, saboreando aquele momento com um sorriso disfarçado nos lábios. Os dois começaram a dançar devagarzinho, molhados, e sob a chuva. “But you’ll never see the end of the road while you’re traveling with me”. Deram as mãos no ar, beijaram-se outra vez e foram embora, rua abaixo, para suas casas eu acho. O lugar de onde nunca deveriam ter saído.

O amor é cego (surdo, mudo e burro)

Do diário de Kevin, meu amigo imaginário, numa vez que esqueceu uma página em minha casa:

Eu já havia ultrapassado meu limite a tanto tempo que nem me lembrava mais de como ele era. Depois de dar o coração, a alma, a família e os filhos eu estava quase disposto a dar a vida também. Quase. Espera aí. Eu disse amor? Sim eu disse. Mas será que o amor além de cego também é burro? Quem em sã consciência troca uma valise com tanto dinheiro vivo por um cheque ao portador com uma assinatura rebuscada e data incorreta? Eu troquei. Deve estar aí a resposta para minha reprovação no teste de sanidade mental. Então eu disse mesmo a palavra amor. Amor. O que é isso? Durante muito tempo eu pensava que amor era perdoar as vezes que fui abandonado, as vezes que sozinho fiquei enquanto meu amor se divertia sem mim, e eu que pensava que amor era doação, altruísmo, colocar-se à disposição, cuidar, querer bem. Eu achava que só amar não bastava, tinha que participar. Eu pensava que amor superasse as besteiras que eu fiz pelo tal amor dementador, que sugava minha felicidade e a pouca alegria que havia me restado. Após os riscos corridos, os sacrifícios feitos, eu achava que finalmente encontraria naquele porto o descanso que eu tanto precisava. Mas eu estava enganado. O porto não estava mais ali, quando o casco do meu navio avariou. E à deriva fiquei, um navio afundando, um astronauta solto no espaço. Sem rumo. Sem eira nem beira. Apenas com um pensamento vivo na mente: “Deus me fará justiça.” Já fazia alguns dias que eu pedia para que meus olhos fossem abertos. E então eles foram. Quando se vive algo tão insano, que é capaz de avançar as raias da loucura você começa a viver na zona branca. E é quando tudo ou nada acontece. Até esse momento eu era infeliz e isso era tudo. O amor não se dissolve, o amor acaba. Como alguém que é atropelado e morre instantaneamente. Acaba assim, o amor. Quem percebe isso ainda tem chance. Quem não percebe vai de graça até o inferno. Eu não percebi. Voltei cada momento: abandonos, falta de credibilidade, desistências. Detesto quem desiste. Não foi azar. Ela não ficou triste. Eu fiquei. Ela não perdeu nada. Eu perdi. Ela apenas mentiu desde o inicio, mesmo sem perceber. Eu aceitei quieto, sem sequer ligar para os sinais. No começo queria apenas gritar. Morreu, afundou, explodiu, acabou o mundo. Queimou tudo. Perdeu tudo. O que você está sentindo agora? Em números, por favor. Em números, dólares, quanto foi? E o telefone foi desligado. Acabaram-se os dias de iogurte, sorvete e tardes horizontais. Deixar um amor dementador é como parar de fumar bruscamente. Você se alucina, passa noites sem dormir e não consegue pensar em mais nada. Mas quando passa a abstinência, é possível ver o tamanho do mal que ele fazia. E começa a viver. No DVD passava “O Conde de Monte Cristo”, Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, 2002. Foi quando meu telefone tocou e a justiça começou a ser feita. Dormi em paz e comecei a cuidar da minha vida.

Destinos

Foi chegando de mansinho
Pouco a pouco tomando conta do meu peito
Com seu olhar cheio de carinho
Assaltando meu coração com seu jeito
Me acolhendo em seu ninho
E diante de tanta ternura e beleza
Não pude resistir
A um sentimento de tamanha nobreza
Era impossível agora fingir
Que eu não iria te amar com tanta certeza
Hoje sou escravo do seu amor
Apaixonado irreversível
Amante, livre, livre de toda dor
Mais feliz é impossível
Pois fui tomado pelo seu calor
E meu coração antes sem dono
Hoje pulsa, vibra e canta
Te esquecer um só momento? Não há como.
Pois minha alma quando deita e se levanta
Pula de alegria ao pensar no teu nome
É impossível agora te esquecer
Tudo que antes era vazio
Passou a florescer
O que antes era frio
Hoje é fogo, chega a arder
Você é parte da minha existência
E do amanhecer ao entardecer
Me faz esquecer de toda ausência
Que antes havia no meu viver
Agora preenchido com a sua essência
Você é meu caminho
Minha estrela perdida, metade esquecida
Uma flor sem espinho
Que transforma minha vida
Toda vez que está aqui comigo bem juntinho

Como se fosse a primeira vez

Eu não estava preparado para o que iria acontecer naqueles próximos dez minutos. Definitivamente não estava. E quando a porta do elevador se abriu e eu vi os olhos mais amendoados desse mundo, senti minha resistência ir a nocaute, chão abaixo. E quando ela entrou e disse “boa noite”, sinos tocaram em algum lugar e aquele cheiro me despertou. Um cheiro doce, cheiro de paixão. Fiquei completamente sem ação e mal consegui responder. Pela ponta do fichário que ela leva, posso ver seu nome. Deve trabalhar num dos andares abaixo do meu. Amanhã irei investigar, não, não preciso. Vou perguntar agora mesmo. Mas o que é isso? Tudo ficou escuro de repente, só senti um solavanco. Acabou a força. E estou aqui preso neste elevador com essa mulher na minha frente. Ela sussurra algum impropério, algo que sugere estar atrasada. São sete da noite e com certeza deve estar indo encontrar seu namorado para algum programa a dois. Muito azar o meu. Só me resta consolar e me controlar. Apesar das paredes de aço do elevador, um celular chama. Não é o meu. Ela atende, ouve e nada diz, apenas bate o flip com tanta força que parece querer trincar. “Noite difícil?” Pergunto apenas vendo a brancura quase oculta da sua blusa, iluminada apenas por uma precária luz de emergência. Ela não responde, apenas suspira. Pesadamente, profundamente, sofregamente. Ouço outro suspiro, agora leve, contido e quase reprimido. Está chorando. “Moça está tudo bem?”, pergunto sem esperar resposta. “Posso te pedir uma coisa?”, ela pergunta como se eu fosse capaz de negar alguma coisa. “Me abraça?”, e se joga em meus braços dizendo que odeia o namorado que acabou de abandoná-la porque... bem, ela não sabe o porquê. Acho que estamos parados em algum ponto entre o décimo primeiro e o décimo andar. 11/10. E naquela mistura de lágrimas e maquiagem que agora mancha minha antes imaculada camisa branca ela desabafa. A força volta e continuamos a descer. Saímos do elevador em direção à porta de entrada do prédio. Após dezesseis minutos e vários pedidos de desculpas pelo pedido ousado e as manchas na minha camisa, chegamos ao Nan Thay, aquele restaurante tailandês que sempre sonhei em ir com alguém especial é claro. Conversamos como nunca antes em nossas vidas corridas, ocupadas e medíocres. Dançamos na grama molhada de um jardim ouvindo Stevie Wonder no som do carro e como se fosse a primeira vez sorrimos sem culpa, simplesmente pelo fato de estarmos ali. Amanheço ao lado dela que dorme profundamente e nem sente os carinhos que faço em seu rosto. E foi assim naquela manhã, e na outra, e na seguinte. E em todas as manhãs nos últimos trinta e nove anos. Muita sorte a minha. Hoje a vejo caminhar com a mesma leveza, a mesma sugestão no olhar e com o mesmo brilho de um amor que superou o próprio tempo. Ainda tremo ao ouvir sua voz e suspiro quando a sinto por perto. Tudo se renova e brilha toda vez que a vejo sorrir. Como se fosse a primeira vez.

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