O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Magnólia - Cap. 3

O reverendo Mauro Augusto, da congregação Luz Azul havia terminado o seu sermão, mostrando os malefícios causados pelo consumo de álcool, malefícios para o corpo, para o espírito e para a família. Assim que saiu da sua tão amada igreja, deixou a mulher e os filhos em casa, tirou o blazer cinza e a gravata, colocou a camisa para fora das calças e pegou novamente a chave do carro. Disse para a mulher que iria “ali comprar uma coisa”, mas não revelou o seu paradeiro.
Parou num supermercado, dois bairros depois do seu, para não correr o risco de ser avistado por alguma de suas “ovelhas”, pegou uma sacola preta e dentro dela colocou duas garrafas de bebida barata, foi ao caixa, pagou em dinheiro, e abriu ali mesmo dentro do carro. O reverendo Mauro, era havia quase dez anos, um devorador contumaz de bebidas fortes, nunca tentando largar o vício mas ao mesmo tempo lutando para nunca ficar viciado. Tinha por hábito manter um estoque de chicletes e balas que consumia com voracidade fosse para um disfarce rápido caso uma blitz o parasse ou para disfarçar o cheiro ardido quando conversava com alguma pessoa, fosse em casa, fosse não.
Assim que chegou em casa, a mulher o surpreendeu. Queria ver o que tinha na sacola e o reverendo Mauro não ia deixar de jeito nenhum. O álcool já começava a fazer efeito. Empurrou a mulher que caiu sentada sobre um dos braços do sofá mas deu um mal jeito nas costas, o que causou dor por diversos dias. Ela não iria desistir tão fácil, por isso foi atrás do marido, e esse foi o seu erro. O reverendo não gostava de ser acuado, de estar nas cordas ou na lona, muito menos de ouvir uma descompostura da mulher. Os filhos estavam no andar de baixo, assistindo à televisão quando o primeiro soco aconteceu. E depois o segundo e mais outro. Sempre em lugares onde poderiam ser escondidos por algumas camadas de roupas. Arrastou a mulher para fora do quarto e trancou a porta. E ali na paz de seu quarto, o reverendo Mauro se sentou na cama. A vergonha e o remorso o haviam deixado fazia anos, e ele já não mais se importava com isso. Estava sendo consumido pelos seus demônios.
A primeira garrafa acabou por volta de três e meia da manhã. Ele sabia que a essa hora todos estavam dormindo, por isso desceu as escadas às cegas, tateando pelas paredes, e tendo a quase imperceptível consciência de que deveria dar um passo de cada vez na escada. Tomou meio litro de água e voltou para a sua cama. Olhou a garrafa vazia no chão e mais uma vez se perguntou por que fazia aquilo. Uma garrafa inteira! Ele jamais havia bebido tanto assim. Uma garrafa pode matar um homem, mesmo um bebedor inveterado. E num momento de rara lucidez, se lembrou que era madrugada de segunda, e em poucas horas ele deveria estar de pé novamente. Sentou-se outra vez na cama, e seu corpo não resistiu. Apagou.
O despertador apitava furioso às sete horas da manhã, mas o reverendo Mauro, em seu estado comatoso não ouvia. Seu cérebro estava muito longe dali, mergulhado em algum lugar que ele jamais iria saber. De repente, voltou a si, e percebeu que já era o momento de levantar. Abriu o chuveiro, e tomou seu banho matinal, quente, longo e sem sentimento de culpa. Não se lembrava da surra que havia dado na mulher na noite anterior, e não sabia por que ela não estava na cama quando ele acordou. Na verdade, ele não sabia de nada.
Abriu a porta da garagem após colocar sua roupa de forma desajeitada, as cores fora de sintonia e voou em seu carro rumo ao centro. Estava atrasado, seu cérebro estava lento, os reflexos pouco existiam, mas a pista estava livre. “Estranho a esta hora da manhã”, ele pensou, e o pé afundou um pouco mais no acelerador. Ah! Como era bom sentir aquele vento matinal batendo em seu rosto e fazendo seu corpo voltar novamente à Terra.
A Rua Pinheiro Machado é uma importante rota de ligação entre as zonas sul e norte na cidade do Rio de Janeiro, e, cercada por belas árvores, é um bonito lugar para se visitar no bairro das Laranjeiras.  A árvore era um grosso ipê-amarelo, com mais de cem anos de idade, que tombou, arrancando a fiação da rua, e congestionando o tráfego da região. Do lado de dentro do veículo completamente retorcido e destruído, estava o corpo inerte do reverendo Mauro Augusto, cinqüenta e um anos, casado, pai de cinco filhos, dos quais três casados.  Deixou para trás, família, uma congregação devota e uma garrafa de vodca nacional.
Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Dona Edite ouve a campainha tocar e vai em direção à porta, levando as duas mãos às costas, para tentar conter um pouco da dor dos socos recebidos na noite anterior. Do lado de fora, dois policiais cabisbaixos, e com uma carteira nas mãos. Era a carteira que ela havia dado de presente para o marido. Duas semanas antes.

Magnólia - Cap. 2

Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. A mulher loira sobe correndo os doze andares que dão acesso ao seu apartamento. O elevador está em manutenção, e seus passos, agora de dois em dois degraus, ficam mais lentos, sua respiração mais pesada, riscos de suor começando a aparecer em seu rosto. Precisa chegar logo em casa, ligar o computador, porque já está na hora de falar com seu namorado. Ele está longe, em viagem de férias e ela não conseguiu uma licença no trabalho para ir junto. Mas se falam todos os dias, todas as noites. Finalmente ela chega, liga o aparelho e enquanto o maquinário começa a trabalhar, ela corre até a cozinha, pega o primeiro sorvete que vê à frente e se senta na cadeira, jogando os sapatos para um canto. A bagunça pode esperar.
Ele está online. Esperando. Eles se falam, as amorosidades de praxe, ela respira fundo e sabe que tudo está bem, e que restam apenas mais uns poucos dias para que tudo volte ao normal. O telefone toca. Uma amiga chamando para sair, ao que ela declina. Não quer saber de pares de olhos famintos a devorando, no Astoria, o bar que costuma freqüentar quando sai com Marcel. A janelinha do computador pisca enquanto ela desliga o telefone e volta toda a sua atenção àquela tela minúscula, mas que provoca arrepios em todo o seu corpo.
A campainha toca, e ela pragueja. Terá que se levantar e abrir a porta, mas, por que o maldito porteiro não avisou pelo interfone? Claudia olha pelo olho mágico da porta mas não vê ninguém. A campainha toca de novo. “Quem é?”, ela pergunta, ao que o porteiro se identifica e diz trazer uma encomenda. Ela abre e as flores parecem cobrir o corredor inteiro, mas cabem nas mãos pequenas e atarracadas do porteiro. Ela agradece e volta ao computador. Ela abre o cartão, lê e digita um agradecimento, um pequeno verso, e três palavras que a resumem. Pergunta quando Marcel irá chegar, já que ela não agüenta mais de saudades, quer ele ali, para abraçá-la e provocar as sensações que sabe que apenas ele pode provocar. Ele diz que não sabe ao certo, não exatamente, mas que será em breve. Ela pergunta se ele está no hotel, porque assim pode vê-lo pela câmera e terminar pelo menos com um pouquinho da saudade, mas ele não está no hotel. Está na rua, e a câmera ficará para depois.
Vinte minutos se passam. Ela está cansada, precisa de um banho. Ele diz que ela não precisa se preocupar, que demore o quanto for preciso. Quando terminar, ligue para que possam continuar a conversa. Ela deixa o som ligado, Electrical Storm, a música dos dois. Dez minutos se passam, e agora que o banheiro está tomado pelo vapor e suas energias começam a se recarregar, a campainha toca outra vez. “Maldito porteiro”, ela xinga. Ela resolve ignorar e continua no seu banho. Mas o som continua a perturbar, pela segunda, terceira, quarta, quinta vez seguidas. Claudia desiste, veste seu roupão e sai em direção à porta, com a cara amarrada, peculiar das pessoas que não querem ser interrompidas, ainda mais num momento sagrado como aquele. Ela abre a porta com violência, e se prepara para uma descarga catilinária quando ela vê Marcel, escorado no batente da porta. Eles se abraçam, se beijam até se fundirem numa mistura de suor, sexo e White Horse. E a noite segue, com a porta semi aberta do apartamento 1201, as flores amassadas sob seus corpos ao som de U2. E dormem envolvidos numa solução salina, mas não se importam. É a melhor solução que existe.

Magnólia - Cap. 1

Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Terceiro andar. Cristina vê a porta do elevador se abrir, e sabe que do outro lado da porta, o pânico e a insegurança a esperam. São oito da noite e o namorado ainda não chegou em casa, mas isso não irá demorar para acontecer. Ela aperta a bolsa contra o peito, procura avidamente pelas chaves, que agora já não tem certeza se servem para deixá-la segura e protegida das atrocidades do mundo, dos latrocínios, homicídios e infanticídios que rondam o Rio de Janeiro, ou se servem apenas para deixá-la presa com o inimigo, causando assim o inverso dos sentidos.
Oito e quarenta e cinco. Há alguém abrindo a porta, e Cristina sente o coração disparar. Não de emoção como era naquele tempo em que Miguel era outra pessoa. Naquele tempo em que os dois se davam bem e faziam planos, naquele tempo em que ele dizia que só a morte os iria separar. Cristina fecha os olhos, enquanto junta as duas pernas e se encolhe em posição quase fetal, os olhos miúdos e o queixo apoiado sobre os joelhos. Miguel entra, beija sua testa e diz coisas que ela sabe que jamais irá esquecer, porque aquela será a última noite.
Ela tenta sorrir, aquele sorriso forçado, típico de quem não quer fazer aquilo. As lembranças vem com força: “Se você me deixar eu mato você, e me mato em seguida”, ela ainda consegue ouvir, não porque foram ditas recentemente, mas porque marcaram na alma. Uma marca muito mais profunda do que todas as declarações de amor que ela já ouviu na vida. Está enclausurada, acompanhada pelo medo e pela vergonha. Não consegue entender como fora parar ali, logo ela que tem dois doutorados, um bom emprego e uma legião de homens aos seus pés.  Também não consegue entender como tudo chegou a esse ponto. E a todo tempo tenta se lembrar daquele homem que antes era, como ela mesma gostava de repetir, “o sonho de qualquer mulher”, se transformar num pesadelo e num show de horrores, como está agora.
Miguel está na sala, organizando uma pilha de DVD’s. Parece feliz, distraído, senhor da situação. Ela chega, pergunta se precisa de ajuda, ele declina. “Miguel eu preciso de um tempo”, ela diz tentando prever os rompantes do homem que ela um dia amou, um dia que já ficou amontoado entre os milhares no passado. “Cristina você precisa de mim e eu de você. Somos felizes aqui. Deixe de bobagem e fique aqui comigo”.  Ela balança a cabeça negativamente, mas de modo sutil, e ele percebe que seu mundo, antes perfeito, explodiu e queimou, ruiu, e basta uma leve brisa para transformar tudo em cinzas.
Dois meses antes, Cristina estava no hospital da Casa Verde. Eram três da manhã e os médicos, lutavam para manter o coração de Miguel funcionando, culpa de uma ingestão de barbitúricos e álcool, uma cena em que ela jamais conseguiu entender como Miguel conseguiu sair vivo desta.  Ele dizia que era simplesmente insuportável viver sem ela, e sem ela, seu mundo não existia mais. Seu amor era grande demais para ser jogado fora, e ele não iria aguentar. E não aguentou. Cristina se pergunta onde está aquela pessoa doce, carinhosa e tão segura que ela havia conhecido. Onde estaria agora aquele homem que a havia impressionado com sua convicção, com sua certeza e a bravura de quem quer ganhar o mundo, dominá-lo e colocá-lo a seus pés e que agora não passa de um moribundo, estirado em uma maca fria, tentando impressioná-la do jeito mais ridículo que uma pessoa pode impressionar? Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas. Miguel se entregou. Deixou que seus demônios tomassem o controle. Mas talvez ainda resta uma nesga de esperança. Dez dias de coma profundo se passaram. Miguel está vivo outra vez. Resta saber por mais quanto tempo.
Cristina se vira e sabe que aquilo foi a cena de despedida que ela jamais havia imaginado. Está decidida, e nada irá mudar aquela noite. Miguel pode chorar, ameaçar se jogar do terceiro andar, que ela não vai voltar atrás. Duvida que ele tente se jogar do terceiro andar, um lugar em que ao se jogar, a morte ainda não é uma certeza, e estar vivo mais uma vez depois de tanta humilhação seria ainda pior. Mas sabe que ele sempre pode subir alguns andares a mais e cumprir sua promessa de que não poderá viver sem ela. Uma pessoa que se joga de tão alto busca alívio, não o salvamento.
Ela está eufórica, não com o término da relação conturbada, mas com a reação do namorado. Quem tenta o suicídio por amor, é capaz de matar também por amor, e essa ameaça ela já ouviu. É preciso ter cuidado com as pessoas que não tem nada a perder.  O telefone mostra no visor o número 190 e basta pressionar a tecla verde, caso ela escute alguma batida mais agressiva na porta ou algum impropério dito por ele. Alguns minutos antes, fez uma ronda pela casa, em busca de tudo que poderia servir de muleta para um homicídio ou um suicídio. Deu fim em todas as garrafas de bebida, jogou fora todos os remédios, que havia no apartamento. Felizmente Miguel não tem uma arma. Cristina está um pouco mais tranquila, mas seu coração pulsa acelerado a cento e vinte batimentos por minuto.
A batida na porta vem, mas não é agressiva, é suave, e a voz carinhosa, quase angelical de Miguel a chama do outro lado. “Por favor não vá embora”, ele diz calmamente e ela sabe que restam apenas mais alguns segundos para que as lágrimas cheguem de forma raivosa, um dique prestes a explodir. “Eu sei que você não me ama mais, me deixe apenas te dar um abraço antes de ir”, ele implora, de maneira serena.  Cristina tem medo, ele pode usar sua psicologia para alterar seu modo de pensar, e usar sua engenharia social para tentar mantê-la ali para sempre. Está consciente do jeito de Miguel. Psicopata, sociopata, desprovido de senso prático, e morador da zona erma, que é o lugar onde moram os marginais mentais. Condutopático. Ela pede que ele espere um minuto. Ele concorda.
Cinco minutos se passaram. Cristina sai do quarto, as malas estão prontas e o táxi a espera lá em baixo. Vai passar alguns dias com a irmã em São Paulo, afim de colocar a cabeça no lugar outra vez. Abre a porta e sabe que aquele será o momento mais difícil, o que irá alterar toda a história, mas está preparada para o que vier. Ela pensa que está. Miguel está sentado no carpete da sala, encostado no sofá. “Eu já vou”, ela diz, com medo de que ele esteja com alguma arma, ou que demonstre alguma reação violenta, agora que sabe que perdeu. Ele não responde. Ela volta ao quarto, pega as malas e sai fazendo barulho com as rodinhas. E assim terminou a relação que ela achava ter sido o pote de ouro no final do arco-íris: sem um adeus, sem um beijo, sem nada. Os dois simplesmente se afastaram.
Cristina abre a porta, enquanto espera alguma reação, reação esta que não viria. Ela coloca as malas no corredor e olha pela última para dentro do apartamento. Miguel está ainda sentado. Mas começa a se mexer. Cristina sente o coração disparar outra vez, prevendo que ele vá até a porta e faça algo, mas não é isto que acontece. O corpo de Miguel tomba para o lado e ela sabe que algo de errado aconteceu.  Os pulsos foram cortados com lâminas de barbear, também há marcas de corte na garganta. Ambas as mãos estão sujas de sangue, e Miguel começa a tremer e a se debater. Cristina sabe que é hora de tomar uma decisão. Mas não pode se render novamente às chantagens e bizarrices do namorado sociopata. Respira fundo. Já passou por aquela situação outras vezes. Apanha o telefone, e liga para o serviço de emergências do hospital da Casa Verde. Não tranca a porta, apenas fecha, puxa suas malas ouvindo o barulho abafado das rodinhas no carpete do corredor. Enquanto espera o elevador chegar ao terceiro andar, arruma os cabelos usando como espelho, o metal prateado da porta do elevador. Entra no táxi que ainda a está esperando e desaparece no escuro da noite. Olha pela última vez a entrada do edifício Magnólia, e sabe finalmente, que ali, ela jamais irá voltar.

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