O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Os gritos do meu silêncio

Quando eu era criança sempre sonhei com uma casa com jardim, um cachorro branco pintado de marrom claro, filhos bonitos e cheios de amor, uma mulher que eu amasse de verdade e um emprego aonde eu chegasse em casa às sete da noite quando depois de uma dança (ou várias), iríamos jantar, jogar conversa fora e depois dormir e sonhar em fazer tudo outra vez amanhã. A infância passou, a adolescência chegou e se foi com a velocidade de um raio e finalmente a fase adulta me alcançou. Mas nem as pressões, as contas a pagar e muita coisa a esperar me fizeram mudar aqueles sonhos gravados tão fortemente no meu subconsciente. Sorri, chorei, andei, parei e esperei. Me rebelei aos vinte anos, virei punk aos vinte e um, deixei o cabelo crescer e fiz vários furos na orelha aos vinte e dois. Saí de casa, mudei de cidade, me regenerei. Me casei aos vinte e três, fui pai aos vinte e quatro, depois outra vez aos vinte e cinto, construí uma casa aos vinte e seis, escrevi um livro aos vinte e sete. Conheci a mulher da minha vida aos vinte e seis, sofri a indignação de uma traição aos vinte e sete, traição seguida de tentativa de morte, depois de uma ingestão mal feita de remédios para dormir, e depois balancei entre e humilhação e o ódio quando atravessei meu primeiro processo. Primeiro o de separação, depois de perda da guarda dos filhos, meus menininhos. Tudo isso armado com apenas a esperança do lado esquerdo, dentro da camisa. Aos vinte e oito oscilei entre o desespero e a raiva, depois que a mulher da minha vida foi embora para voltar meses depois quando eu já estava me recompondo. Esperei ligações que não aconteceram, promessas que foram esquecidas por não terem sido cumpridas, e palavras que foram ditas e muito pouco realizadas. Esperei o mundo mudar para só depois tentar ser feliz, escrevi histórias que nunca publiquei, e em noites solitárias, sentei, chorei e me desesperei. Recusei amores genuínos esperando meu amor tomar coragem e vir para mim. Machuquei corações que não mereciam sofrer, fiz sorrir, fiz doer, fiz sonhar e fiz muitos pesadelos aparecerem. Venci e fui derrotado tantas vezes que hoje não consigo nem me lembrar. Passei noites em claro ouvindo meus filhos chorarem quando bebês e passei noites em claro querendo ouvir seus sons quando eles já não estavam mais aqui. Dei boa noite aos meus filhos todas as noites, esperando que meus sussurros viajassem por vários quilômetros e chegassem até eles em sonhos. Tentei ser um bom pai, tentei ser bom aluno, tentei ser bom amigo e bom professor. Fiz o que podia para ser um bom amante para aquela quer se tornou a segunda mulher mais importante da minha vida. Briguei, insisti, lutei. Gravei sua inicial na minha pele para que se tornasse uma marca indelével no meu corpo, marca que já era cravada, talhada em meu coração. Letra que gravada a ferro e fogo na minha alma, tinha mais luz do que o sol. Quando estava sozinho pensei e desejei. Nas noites frias amei em silêncio. Quando acordado, sonhei. Escrevi, meditei,orei, busquei, ajoelhei e muitas vezes me resignei. Escrevi histórias que fizeram rir e lamuriar. Delirei, assustei, diverti, amei. Esperei muitas vezes, em outras cansei. Me declarei, expus, entreguei, agarrei, consolei e me apaixonei. No fim da noite quando finalmente descansei, o telefone tocou. Sorri, chorei, respirei e suspirei. Escutei, falei, esperancei, afirmei e sonhei. Os gritos do meu silêncio se encerraram por mais esta noite. Terminei, cansei, desliguei, me deitei e relaxei. Minha tatuagem ardeu, meu corpo estremeceu, e outro “eu te amo” ela me deu. Quem sabe agora o sonho se realiza e aquele menino possa viver para sonhar outra vez. Deus é bom.

O que a gente não disse - por Lya Luft

Eu não estava preparada. Nem quando parava para pensar na vida tinha imaginado aquilo. E não era muito de pensar na vida. Apenas cumpri minhas tarefas, e sei que fui uma boa mulher para meu marido.
Quando me virei, esperava vê-lo andando em direção ao carro para mais um dia de rotina. Nem sei por que me virei. Ele era a criatura mais próxima e mais comum na minha vida comum, e eu não esperava nenhuma surpresa. Tínhamos feito isso milhares de vezes, a despedida trivial, cada um seguindo para as suas atividades – também triviais. Mas dessa vez ele continuava parado, ombros caídos, parecendo particularmente cansado. Nos olhos uma expressão que só mais tarde entendi: era o seu último olhar – e ele não me disse nada. Eu, que toda noite dormia a seu lado, nada percebi. Ou vinha notando de um jeito difuso uma tristeza, quem sabe um desejo de falar, ele que era tão contido. E não éramos muito de falar. Quase voltei, quase perguntei o que havia. Mas desisti e fui em frente, com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varri minha breve inquietação para debaixo do tapete.
E se eu tivesse perguntado?
E se ele tivesse me dito?
Se eu tivesse merecido saber?
Isso me atormentou por longo tempo. Eu me sentia muito culpada. Hoje, acredito que não saber é o que torna a vida possível.
Escolheu o seu lugar preferido, e fui eu que o encontrei duas horas depois: ele sabia que eu o encontraria, nesse jogo de conhecer e desconhecer de qualquer relacionamento. Despediu-se de mim, foi ao laboratório onde trabalhava, pegou a poção que tinha preparado, a seringa, a agulha, e foi de carro até a árvore que amara tanto, logo fora da cidade. Sentou-se na sombra ampla e maternal que lhe faltara toda a vida, isso ele dizia, eu nunca tive mãe de verdade. Mas falava sem raiva, aparentemente sem sofrimento.
Eu teria de passar por ali, voltando de uma floricultura onde ia apanhar coisas para o nosso jardim, isso ele sabia. Muita gente deve ter passado por lá antes de mim, sem dar importância a um carro no acostamento, ao homem descansando embaixo da árvore. De longe reconheci o carro dele, e antes mesmo de começar a frear vi meu marido, sentado, encostado no tronco, como se olhando o movimento na estrada, tivesse tirado uns minutos para refletir em alguma coisa importante demais para ser pensada na agitação do superficial cotidiano.
Saí do carro e fui andando até ele, com cuidado porque parecia cochilar e eu quis lhe pregar um susto. Mas uma ansiedade louca começou a se revolver em mim, e quando cheguei junto dele quase vomitei. Estava morto.
O rosto um pouco voltado para cima, corpo encaixado numa concavidade do tronco, como um berço preparado só para ele. Por isso não tinha escorregado para o capim.
A seu lado brilhavam, no sol filtrado entre as ramagens, a agulha e a seringa. Não precisei de mais nada para entender.
Então o parceiro de minha vida havia me abandonado por vontade própria, da forma mais definitiva, embora, eu sabia, me amasse também. Mas não o suficiente para querer ficar. Depois me disseram que foi instantâneo. Instantâneo não diminuía minha dor. Nem dizerem durante o velório que ele estava bem, estava bonito, estava tão sereno, sempre fora um homem tranqüilo. Odiei cada um daqueles comentários, eu entrava num longo período de incerteza e culpa. Como eu não tinha percebido, em que eu havia falhado, eu e meus filhos já homens feitos, em que o havíamos abandonado com tamanha crueldade, se o amávamos tanto?
Embora parecesse satisfeito com sua vida simples, dentro dele uma força o consumia. A única estranheza dele, que eu lembre, era aquele sonho que de vem em quando relatava. Estava sendo chupado por um funil, estreito e vertiginoso, que girava e girava, e no fundo via-se um buraquinho minúsculo, a morte. Só com grande esforço, às vezes com um grito, ele conseguia resistir. Nesse momento acordava e me acordava também. E cada vez que a gente falava, tomava café na mesma mesa, comentava notícias da televisão, trocava brincadeiras no computador ou até se abraçava na cama, mesmo que ele não comentasse, aquela sedução continuava. Aquele apelo. Nem o deixou esperar o curso natural das coisas, envelhecer a meu lado, ter alguma doença fatal, sofrer um acidente: ele se entregou voluntariamente, jogou-se no seu abraço escuro e me deixou.
Deve ter sido imediato: a picada, o alivio da morte: oblivion, onde li essa palavra? Esquecimento. Silêncio para sempre.
Palavras podiam ter salvado a sua vida? Teriam poupado a minha dor, recomposto os nossos laços deteriorados e a gente fingia que não? Mas porque a gente se conhecia tanto, nem procuramos por elas. Palavras são máscaras de tragédia ou nariz de palhaço, abrem campos queimados até a raiz da última plantinha, como os que se estendiam entre nós. Eu achava que estava tudo bem, a vida era assim, casamentos eram assim, com sua dose de silêncio e desencanto.
Era o que eu pensava. Para mim, o que tínhamos era tudo. Para ele, não bastava. Como tantos homens bons rompem com sua vida bem enquadrada, e numa paixão iluminante, largam tudo e só querem aquele novo amor, aquela nova vida, arrancando tudo pela raiz, ele seguiu o seu desejo.
Sem que eu soubesse, as coisas não ditas haviam crescido como cogumelos venenosos nas paredes do silêncio, enquanto ele ficava acordado na cama, fitando o teto com o branco dos olhos reluzindo na penumbra. Se eu interrogava, o que você tem, amor? Ele respondia que não era nada, estava pensando no trabalho. A gente sabia que era mentira, ele sabia que eu sabia, mas nem um de nós rompeu aquele acordo sem palavras. Nunca imaginei o mal que o roia. Era impossível qualquer coisa tornar a morte algo melhor do que tudo que tínhamos. Isso era o que eu achava. Ele também falava pouco no passado, a infância numa cidadezinha do interior, o monte de irmãos, os pais morrendo cedo, ele responsável pelos menores. Haveria ali, com uma raiz venenosa, alguma coisa tão triste que o levava a querer morrer?
Antes nunca pensei nisso. A gente não comentava nada que nos perturbasse. Eu era uma pessoa muito prática, para mim importava o presente. Vivia ocupada sendo feliz, tentando fazê-lo feliz, organizando família, parindo filhos, levando as crianças para a escola, indo às reuniões de pais. Estava distraída sendo fútil, sendo alegre, sendo realizada com meu marido amado e meus filhos saudáveis, gastando pouco em roupas minhas, botando termômetro quando um deles estava com febre, fazendo bolo nas tardes de sábado.
Ele pensava em morrer. Preparava-se para isso. Deve ter levado anos premeditando a morte e criando coragem. Qual a substância mais rápida, indolor e eficaz que iria escolher no laboratório. Que agulha, que seringa, que lugar, que hora, que dia. Teria pensado em mim? Teria pensado nos filhos e na perplexidade deles? Teria imaginado meus tormentos, por ter sido tão superficial e limitada enquanto ele se dilacerava?
Morrer devia ser como parir a si mesmo. Eu em cada parto me senti um bicho acuado, mas pensava: vai chegar ao mundo através de mim uma nova pessoa, que coisa maravilhosa. E isso me dava força. Na morte, o que estará nascendo? Quando o velamos, e quando estava enterrado, nossos filhos solteiros, e o filho casado com sua mulher e crianças, ficaram por perto tentando entender e descobrir algo em mim, pedindo uma palavra, uma explicação.
- Mas como, mamãe, como você nunca percebeu nada, nosso pai era tão infeliz que se matou, e a senhora não viu nada?
- Não, meus filhos. Nunca percebi. Para mim ele era meu homem, pai de vocês. Deitava comigo na cama, ia para o trabalho, me dava um beijo de despedida todas as manhãs e um beijo de chegada todas as noites, e pagava as contas. Nunca reclamava de nada em especial. Parecia um homem contente com sua vida. Não era. E eu não percebi.
Com o tempo deixamos de falar no assunto e cada um resolveu essa dor do seu jeito. Mas em mim, essa agonia ainda mexe como um grande verme inquieto. Não sei se teria adiantado a gente saber. Não sei se conversas ou psiquiatra ou médico ou padre teriam ajudado. Sei que ele escolheu o caminho, o fim. Eu ficaria de fora. E se a árvore não estivesse ali, aquela que ele sempre mencionava e admirava, se eu tivesse sido mais atenta, se ele tivesse confiado mais em mim, se a agulha tivesse se quebrado, se eu tivesse chegado uma hora mais cedo, se ele fosse mais feliz? Mas nada disso aconteceu, e assim matou-se quem eu amava.
Apesar de todos os pratos que lavei, das camisas que passei, da casa que limpei, dos lençóis que dobrei, das flores que botei na sala, do muito que economizei, dos filhos que pari, cuidei e encaminhei, do carinho bom que partilhei – não tive grande valor para ele. Valor tinha essa que o aguardava e o acolheu debaixo da árvore que ele apontou milhares de vezes passando por ela de carro, e repetia sem notar que se repetia:
- Olha só, parece uma grande mãe. Como deve ser bom dormir ali em baixo.
Foi o que fez.
Depois da despedida e do olhar que era o último, mas eu não sabia, voltei para a nossa vida, enquanto ele, caminhando até seu carro, o mesmo velho carro de sempre, apalpava no bolso do paletó o frasquinho, a seringa, a agulha, pensando que logo estaria para sempre com a sua poderosa amante, que afinal venceu.
Porque em tantos anos, tantos acomodamentos, tantas pequenas brigas e tantas descobertas em comum, os filhos, as férias, as doenças e as alegrias, e as contas a pagar, a gente nunca falou no mais importante – que eu agora não tenho mais como saber.

Perdendo dentes

Brooklyn. São Paulo. Cinco horas e quarenta e dois minutos. Fim de tarde de uma terça-feira pouco movimentada. Os clientes já foram quase todos atendidos (na verdade apenas um apareceu) e agora só resta mais uma alma para ser curada. O último. O derradeiro. O doutor Murilo o observa com atenção. O paciente está lá, tenso como o quê, refestelado na cadeira de dentista esperando pela temida e tremida anestesia quando o doutor irá lhe curar da dor de dente que a tanto tempo o aflige. Doutor Murilo prepara o composto que irá penetrar pela gengiva maltratada e deixará a região insensível. Vai fazer um canal. Primeiro passa um dose de uma pomada com gosto de laranja usando o próprio dedo indicador direito na gengiva do homem. A seguir o brilho da luz na extensão da agulha faz o homem ter um arrepio. Uma piscada mais forte, uma leve sugestão de dor, uma respiração profunda, e lá se foi a anestesia. Cinco minutos depois o homem mal consegue falar. Perdeu o poder de controle sobre a língua. Junto com a morte repentina do membro falador, vem também o cansaço seguido de um sono que ele não sabe de onde veio. Ainda ouve o doutor Murilo dizer: “relaxe, é um novo tipo de anestesia para deixar a pessoa ainda mais à vontade.” Doutor Murilo é ágil, enquanto o paciente vai se embalando naquele sono de recém nascido, ele já prepara outra injeção com um anestésico diferente. Pega um alicate do tipo binlão e deixa na bandeja próximo à cadeira. A lista de instrumentos está à sua disposição: abaixa-lingua, cureta, fórceps, espátula, brunidor e toda a parafernália típica dos dentistas. Então ele começa. Com a ajuda do fórceps e de uma cureta, doutor Murilo extrai um dente, e outro e mais outro. Logo o paciente já não possui dente algum na parte superior. Todos estão agora dentro de um vidro transparente de densidade média onde serão estocados e quem sabe até vendidos para a faculdade de odontologia a preços módicos. O doutor abre um armário onde agora é possível ver uma horda de frascos idênticos, todos com dentes de pacientes desavisados que caíram em sua lábia. Todos os dentes da arcada superior. O paciente irá acordar algum tempo depois e descobrir que o efeito do remédio foi completamente diferente, porque ele, o paciente possui um tipo de bacilo que faz com que um dos nervos que passa por dentro das gengivas pare de funcionar, deixando os dentes sem proteção na raiz e despencando do céu da boca como frutas maduras a se desprender de uma árvore. A todos os pacientes o doutor Murilo diz a mesma coisa, com algumas leves diferenças na mesma história. Na verdade o doutor Murilo não se chama Murilo, e sim Cezion Firmino de Paula e nunca foi doutor. Abandonou a faculdade de odontologia ainda no primeiro ano depois que foi pego traficando remédios no mercado negro. Agora em seu consultório é assim que as coisas funcionam. O doutor cobra cinqüenta reais por qualquer tipo de trabalho que precisa realizar. Arranca os dentes superiores dos seus pacientes e em seguida vende o tratamento completo de reposição dos mesmos dentes que o paciente acabou de perder por causa da ação do tal bacilo. Doutor Murilo sorri satisfeito. Mais um cliente que saiu depois de deixar três cheques assinados no valor de oitocentos reais cada um. O tratamento de reposição dos dentes será completo e irá começar na semana que vem. Como falta uma semana, doutor Murilo, para não esquecer nem se confundir mais tarde, anota o nome do cliente numa etiqueta e prega no frasco de vidro com os dentes agora polidos, limpos e tratados. Liga para uma companhia aérea e pede uma passagem para Florianópolis. Vai passar o final de semana na casa dos pais onde seu pai que também é dentista, lhe fará uma revisão nos dentes. Sem a misteriosa anestesia.

Caçadores de Emoção - Parte I

Para minha amiga Thais Lopes Lima...
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Já fazia onze anos que o jornal A Voz do Povo esperava por uma novidade. Sempre as mesmas notícias maçantes estavam fazendo o jornal perder leitores e as despesas aumentarem. Durante muito tempo, o jornal foi ameaçado de fechar.
O tempo foi se encarregando de promover a dispersão dos funcionários. Quando o senhor Helio Braga iniciou seus empreendimento jornalístico, em meados de 1973, o jornal contava com dezesseis funcionários. Nada mal para a pequena comunidade da cidade de Campos. Desde então, as novidades não eram mais novidades e com o senhor Hélio agora, só restaram três funcionários.
Mas naquela madrugada do dia dois de outubro enquanto o senhor Helio Braga acompanhava a impressão dos últimos exemplares do jornal, um sorriso brilhou no seu rosto. Aquela era talvez a reportagem que salvaria o seu jornal. E salvou.
Quando o dia amanheceu, a reportagem invadiu as casas dos habitantes de Campos e os deixaram perplexos. A reportagem de capa dizia: “ASSALTO AO BANCO UNIAO – BANDIDOS FOGEM LEVANDO 18 MILHÕES”. Como o senhor Helio previa, seu telefone não parou de tocar aquele dia, e com toda certeza, o prestigio d seu jornal aumentaria. Novos tempos promissores o aguardavam.
A policia da cidade de Campos passou todo o dia empenhada na busca aos assaltantes, mas nada fora descoberto. A cidade tinha pouco mais de oito mil pessoas. Naquele dia as pessoas se perguntavam qual era a razão de dezoito milhões de reais estarem no poder de um bando em uma cidade que parecia estar esquecida pelo resto do mundo.
A tranqüila comunidade estava alerta. Muito dinheiro havia desaparecido e ninguém ainda havia sido apontado como suspeito. Os bandidos entraram no banco depois de cortarem o fornecimento de energia da rua onde ficava o banco. A população dormia a sono alto quando eles entraram, fizeram os vigias de reféns e levaram todo o dinheiro embora. Os bandidos saíram tão rapidamente quanto entraram. Em vinte e três minutos exatos levaram tudo que podiam em sacos grandes e pretos e fugiram em duas caminhonetes.
“Um crime perfeito”, como dizia os moradores locais. Os bandidos, algum tempo depois reconhecidos pela policia como sendo, Augusto e Paulo Silva Borges eram primos em primeiro grau e eram trabalhadores em uma empresa de segurança, na cidade vizinha, Arcos.
Depois de tramarem meticulosamente seus planos, participou junto com eles Luiz Carlos Frota, conhecido por eles apenas como Frota.
O dinheiro seria levado para uma casa velha e abandonada que iria servir como esconderijo. Ali seria distribuído em partes iguais e cada um dos três seguiria em um rumo diferente, prometendo a si mesmos esquecer tudo, mudar um pouco a aparência e aproveitar todas as coisas boas que o dinheiro pode comprar. Mas os planos não ocorreram como eles imaginavam.
Na noite de dois de outubro, o terceiro homem, o Frota havia saído para comprar algumas cervejas em um posto de gasolina a vinte quilômetros dali. Não se preocupou em deixar os outros dois para trás com dinheiro, porque não havia como fugir. As duas caminhonetes usadas no assalto foram afundadas em um rio a vários quilômetros dali. Só havia agora o Ford Blazer que naquele momento estava a poucos quilômetros do posto.
Frota olhava a todo instante pelo retrovisor, certo que estava sozinho naquela estrada que parecia ligar o nada a lugar nenhum, ma todo cuidado era necessário. A noite foi ganhando uma tonalidade amarelada com as nuvens pesadas de chuva. Uma tempestade estava para chegara. Mas ele conseguiu chegar ao posto antes da tormenta. Entrou na loja de conveniências enquanto a chuva lá fora açoitava o lugar.
Comprou toda a bebida que pretendia comprar, pagou em dinheiro, sorriu para a balconista e para o senhor no caixa e foi embora. Tudo normal, mas por dentro ele era um turbilhão de nervos. Entrou no blazer e três quilômetros depois o veículo parou por falta de combustível. Comprara o que queria, mas esqueceu completamente da gasolina. A maldita gasolina.
Ali parado, apenas observando o clarão dos relâmpagos e ouvindo o granizo se arrebentar contra o veículo junto com as grossas gotas de chuva, começou a abrir as garrafas de cerveja e bebeu. Não havia se dado conta de quanto havia bebido, quando sua cabeça girou e ele desmaiou sob os efeitos do álcool.


Augusto e Paulo tentavam contar tanto dinheiro com alguns litros de uísque na cabeça. Já haviam perdido a conta várias vezes. E foi numa nova tentativa frustrada de contar o dinheiro que tudo começou. A sala onde estavam agora tinha uma espessa camada de fumaça próximo à luz que pendia do teto. Numa pequena mesa num canto da sala estava o cinzeiro abarrotado de pontas de cigarros já queimados. A luz fraca só contribuía para o cansaço dos dois. Já estavam acordados por quase quarenta horas, mas naquele momento, dormir não era importante. Contar o dinheiro sim.
Por diversas vezes Augusto questionou a importância de se fazer aquela contagem uma vez que o jornal A Voz do Povo havia divulgado o valor do assalto. Mas Paulo insistia na contagem. Augusto mais uma vez perdendo a concentração nos números em meio a tanto dinheiro, soltou um berro na sala: “Mas que merda!” o impropério foi acompanhado de um forte tapa com a mão espalmada na mesa e fez Paulo se assustar e também perder a contagem daquele maço de notas.
Muitas pessoas quando estão sob o efeito estuporante do álcool fazem coisas inesperadas que se arrependem depois. Paulo agora sabia disso. Após longos minutos de discussão entre ele e Augusto a briga passou para a agressão física.
Um forte soco acertou Augusto e o fez girar e cair. Caiu, levando imediatamente as mãos à cintura. Sacou o revólver e disparou três vezes.
Paulo não teve tempo de pegar a sua arma e então fortes dores dilaceraram o seu corpo. O primeiro tiro acertou seu ombro esquerdo, o segundo no estomago e o terceiro a poucos centímetros do segundo. Ele ficou ali, deitado, o sangue se espalhando pelo chão, os olhos esbugalhados olhando para o vazio.
Augusto, se desesperando com o assassinato que acabara de cometer, apanhou duas sacolas de náilon pretas, onde estava escondendo o dinheiro, colocou nas costas e caminhou em direção à porta, pronto para fugir, ignorando a tempestade que devastava tudo lá fora.
Olhou pela ultima vez para o céu lá fora, sentindo as rajadas de vento salpicarem seu rosto com gotas de água e então um forte relâmpago cortou o céu. Um trovão quase o ensurdeceu. Lembrou então da capa de chuva, e antes que pudesse se virar, o primeiro tirou o acertou nas costas. Ainda teve tempo de se virar e ver Paulo com a arma na mão, antes que a arma fosse descarregada no seu corpo.
Paulo não resistiu. Ao ver o corpo de Augusto ali no chão, fechou os olhos e deu seu último suspiro. Os dois estavam mortos. A porta aberta deixava a fraca claridade da luz vazar para a imensidão da noite. A estrada ficava a algumas centenas de metros da casa, mas mesmo de longe, aquele ponto claro indicava que havia uma casa ali.


A princípio eles não notaram, mas quando a chuva foi se dissipando, algumas horas depois, eles conseguiram ver a velha casa. Era ali que eles iriam pedir ajuda.
Eles estavam a caminho de mais uma aventura. Charles e Sonia já haviam feito quase de tudo em matéria de aventura. Já haviam desafiado a maiores ondas nos mares mais bravio do planeta, já haviam saltado inúmeras vezes de pára-quedas e “bungee jump”, já haviam escalado um dos picos mais altos do mundo e verta vez passaram treze dias cruzando fronteiras a bordo de um balão.
Tinham planos de atravessar os oceanos em um pequeno barco, mas agora estavam sem destino, passando por diversas cidades e lugares em seu Pathfinder. Foi a sensação de liberdade e aventura que fez com que os dois se aproximassem e fossem viver juntos.
O Pathfinder tinha tração nas quatro rodas, mas a estrada de terra tinha grandes surpresas. Um enorme buraco fez as duas rodas da frente ficarem presas, e por mais ré que fosse dada, o veículo não saía do lugar.
Charles já havia parado de reclamar e estava com as duas mãos no alto do volante, a cabeça apoiada nas mãos quando Sonia avistou a luz. Animaram-se novamente ao perceber que existia um sinal de vida por ali (ou seria de morte?).
A idéia inicial era que Charles fosse até a casa e trouxesse ajuda enquanto soia aguardava dentro do veículo. Mas aquela era uma região muito isolada e nenhum dos dois aparelhos celulares recebia sinal. Como já haviam passado por tantos perigos e aventuras juntos, resolveram encarar mais aquela.
- Que fim de mundo! – dizia Sonia a todo instante.
- Essa chuva acaba com qualquer um – Charles disse tentando fazer da mão uma proteção para os olhos – e essa luz vinda dessa casa faz a gente imaginar que estamos um filme de terror.
- Parece a casa da Bruxa de Blair – disse Sonia, enxugando em vão o rosto com a camisa que usava por cima da camiseta branca.
A pequena casa estava a poucos metros agora. Charles bateu palmas. Sonia iluminava o redor com uma lanterna.
“Olá, tem alguém em casa?”, Charles gritou. “Ola”.
Nenhuma resposta. Como a chuva não dava trégua foram se aproximando da porta. Sonia abafou um grito com as mãos, deixando a lanterna cair quando viu os pés de Augusto estirado no chão.
“Oh meu Deus”, dizia Sonia sem para enquanto Charles a amparava.
“Temos que avisar a polícia”, ele disse, mas se lembrou no mesmo instante que não podia retirar o veículo dali e os telefones celulares não funcionavam.
“Vamos sair daqui Charles, estou com uma péssima impressão deste lugar”, Sonia disse, “confie em mim, vamos embora”.
“Querida espere. Não há mais ninguém aqui”, Charles disse quase sussurrando, “vamos ver o que temos aqui dentro”.

Caçadores de Emoção - Parte II

A chuva foi começando a ficar fina, Charles chegou próximo à porta. Se houvesse mais alguém ali, já sabia da presença dos dois. Ele abaixou-se e pegou a lanterna. Entrou pé-ante-pé na casa. Sonia estava atrás dele com as mãos nos ombros molhados do namorado.
Entraram na casa e Charles colocou dois dedos no pescoço de Augusto. Sem pulsação. Olhou para Sonia e o susto o tomou de assalto quando viu o corpo de Paulo, meio sentado, meio deitado, a arma não mão e os olhos injetados, muito abertos sem piscar olhando para ele.
“Meu Deus, um deve ter matado o outro”, Sonia conseguiu exclamar.
“Ou alguém os matou”, Charles replicou.
A casa tinha apenas um ambiente. Parecia que ninguém morava ali. Não existia nada no interior a não ser uma mesa com quatro cadeiras, a luz que pendia do teto e sacolas de náilon pretas. Muitas sacolas empilhadas em um canto.
- O que acontece aqui?’, Sonia questionava tentando encontrar respostas.
“Querida, não sei exatamente o que aconteceu aqui, mas tem algo a ver com essas mochilas”, explicou Charles, “veja só, este cara aqui tem duas dessas nas cortas e há um monte delas aqui”.
“Será que este cara”, perguntou Sonia apontando o dedo para Augusto, “tentou fugir e este outro o matou?”, ela limpava o rosto ainda molhado.
“Mas se for, como os dois acabaram mortos?”, Charles perguntou. “O que tem nas sacolas afinal?”.
Charles e Sonia andaram em direção ao monte de sacolas com todo o cuidado para não pisar no sangue que manchava o assoalho. Os dois olharam um para o outro e as pernas amoleceram. Centenas, milhares, talvez milhões de reais estivessem ali. Eles começaram a acreditar que existissem milhões ali, porque o volume de mochilas era muito grande.
A sorte dos dois havia mudado. Chegaram até ali, o carro atola na pista de terra a chuva os deixa encharcados e ainda encontraram dois corpos ainda quentes ali, assassinados. E agora o dinheiro. Todo aquele dinheiro. Charles e Sonia estavam de passagem por ali, e desconheciam as noticias da região, por isso não sabiam do assalto ao banco horas antes.
Sabiam que deveriam chamar a policia e entregar o dinheiro. Mas agora uma dúvida passava por suas cabeças: a policia acreditaria neles? E se um policial fosse até lá e ao ver tanto dinheiro, atirasse nos dois e fugisse levando todas aquelas mochilas? Seriam então quatro corpos e talvez ninguém jamais os encontrassem.
Charles não ia deixar todo aquele dinheiro ali. Sabiam que aquele não era um dinheiro limpo, mas que diabos, alguém um dia encontraria e o gastaria. Então porque não serem eles? Sonia concordou com a idéia. Não levariam tudo porque não conseguiriam, mas iriam levar uma boa parte.
Tinham que encontrar uma maneira de trazer o carro até ali. Com o fim da chuva talvez fosse mais fácil tirar o Pathfinder do atoleiro. O caminho da casa até o carro era longo e por isso, antes de voltar ao carro, eles procuraram ao redor da casa algo que os ajudasse a tirar o veículo.
Encontraram pedaços de madeira que Charles usou como aríete, enquanto Sonia pisava no acelerador levemente, o botão no painel indicando a tração 4x4 ligada. Após cinco minutos e os dois quase perdendo as esperanças conseguiram tirar o carro do atoleiro.
Charles entrou no carro e Sonia acelerou rumo a casa. Os dois estavam muito nervosos com todo aquele dinheiro ali, esperando por eles. O carro permaneceu ligado. Charles abriu rapidamente a porta do carro e abriu o porta-malas. Sonia saltou do veículo atrás da fortuna. Estavam ali os dois, isolados do resto do mundo, com dois corpos que eles não conheciam e todas aquelas mochilas cheias de dinheiro, mas algo os perturbava. Queriam sair logo dali.
Foram necessários doze minutos para carregar todo aquele peso para dentro do carro. Ao final estavam exaustos. Entraram no Pathfinder e partiram rumo à felicidade.
Tinham que encontrar uma maneira de esconder o dinheiro. Não poderiam simplesmente sair estrada afora com o carro cheio de malas com dinheiro. Mas aquele era o menor dos problemas. Muito sol e felicidade os esperavam.


***

Frota estava enjoado quando o calo no interior do veículo começou a sufocá-lo. Acordou, abriu os vidros e colocou a cabeça no lugar. Girou a chave mas nada funcionava. Ligou as luzes de alerta, e ficou na estrada esperando que alguém o socorresse. A ajuda não veio nos primeiros quinze minutos, nem nos outros trinta, muito menos nos outros sessenta. Frota voltou a pé até o posto, encheu uma garrafa pet de dois litros com gasolina e voltou ao carro.
Ligou o motor, voltou ao posto e agora estava a caminho do casebre, para encontrar seus comparsas.
Algo estava errado, a porta aberta, marcas de pneu diferentes dos do Blazer. Entrou e viu seus comparsas ali deitados no chão, completamente imóveis, mas naquela hora, as mortes eram os menores dos problemas.
Quando frota olhou as malas e percebeu o movimento, seu corpo todo aqueceu. Instintivamente ele levou as mãos à cintura e sacou sua arma. Talvez os ladrões ainda estivessem por perto de tocaia.
Primeiro assassinaram seus dois colegas, em seguida fugiram com grande parte do dinheiro. Colocou o que sobrou do dinheiro no interior do veículo e pisou fundo no acelerador. Por nada deste mundo ele iria deixar as coisas daquela maneira. Tinha tido muito trabalho para consegui-lo e ninguém, ninguém iria chegar ali e pegar toda aquela fortuna.
Estava a muitos quilômetros de qualquer tipo de civilização. Por um instante ele pensou em voltar pela estrada que levava ao posto onde horas atrás ele havia comprado toda a bebida, mas algo que ele nunca soube o que era o fez seguir na direção oposta. Se o dia estivesse clareado ele poderia ter a confirmação que estava certo ao ver as marcas dos pneus do veículo no chão ainda molhado mas teve que contar apenas com a sua intuição.
Quando olhou no relógio tudo estava turvo. Só haviam passado algumas horas desde que ele tinha se embriagado no interior do Blazer, e os efeitos de tanta cerveja ainda eram evidentes. Mas ainda eram duas horas da madrugada e se ele estivesse certo quanto à localização do veículo talvez ainda pudesse alcançá-lo antes de o dia amanhecer.
Pisou ainda mais fundo no acelerador. A próxima cidade ficava a quase noventa quilômetros dali, caso ainda estivesse seguindo em direção ao sul. O ponteiro marcava agora cento e sessenta quilômetros por hora e estava quase sempre aumentando. O motor quase por fundir, mas ele não iria desistir. Abriu os vidros do furgão, absorvendo o máximo de ar frio no rosto para se manter sóbrio e quem sabe pensar melhor o que iria fazer quando encontrasse os responsáveis por tudo aquilo.
Voando agora a cento e sessenta quilômetros por hora naquela rodovia federal, Frota finalmente avistou as luzes de um veículo algumas dezenas de metros à frente. Sorriu para si mesmo ao ver as luzes. Ele havia pisado fundo. Agora era o momento de acertar as contas.
O veículo ficava cada vez mais próximo ao Blazer de Frota e ele tateou no escuro atrás de sua arma. Com apenas um das mãos no volante, ele conseguiu retirar o pente da arma. Estava carregado. Colocou de volta ao lugar. O Blazer tinha os vidros escuros, o que facilitava o seu trabalho, mesmo sendo madrugada.
Acelerou ainda mais. O veiculo estava agora a poucos metros à sua frente. Frota abriu um pouco mais os vidros do carro pronto para atirar caso encontrasse sua presa. Era um furgão, do tipo Traffic, de cor preta, que estava ali à sua frente. Emparelhou o veículo após ter reduzido drasticamente a velocidade.
Com os dois carros um ao lado do outro, Frota do lado esquerdo da pista dupla apontou a arma para o motorista do carro da direita e disparou. O tiro acertou em cheio o motorista, que sem controle, puxou o volante para a direita. O furgão cantou pneus riscando a pista e capotou diversas vezes.
Frota parou seu Blazer e voltou em direção ao veículo tombado. Abriu as portas de trás, mas o veículo estava vazio. Nada, a não ser o motorista existia lá dentro.
“Droga!”. Foi tudo que ele conseguiu dizer depois da frustração. Voltou correndo para o carro. O Traffic permaneceu ali quase ao meio da pista, o tanque de combustível vazando gasolina. Frota acelerou o Blazer e viu pelo retrovisor o Traffic explodir vários metros atrás. Menos um de seus problemas. Ficou menos preocupado pelo fogo estar agora consumindo tudo e não deixando para trás nada que o pudesse incriminá-lo.
Ele não estava preocupado com incriminação. Tinha ainda muito dinheiro ali. Com todo aquele dinheiro ele iria desaparecer de tudo e de todos. Iria mudar sua aparência. Iria comprar roupas novas, mudar seus hábitos, sua identidade e ninguém jamais descobriria seu paradeiro.
Mas ele não deixaria tudo aquilo acontecer. Mesmo que não encontrasse os responsáveis pelo sumiço do dinheiro naquela noite, ele encontraria algum dia e resolveria tudo a seu modo.

Caçadores de emoção - Parte III

Ainda mergulhado em seus devaneios de vingança, ele avistou outro par de luzes à sua frente. Era uma nova oportunidade, mas desta vez ele estava disposto a não derramar mais sangue. Resolveu uma abordagem diferente. Pisou ainda mais fundo no acelerador e encostou-se ao veículo. Então astutamente jogou o carro de um lado ao outro da pista até que a colisão lateral foi inevitável. Os dois veículos pararam.
Dentro do Pathfinder, Sonia e Charles se perguntavam a todo o momento se aquele era o fim. O Blazer parado ali na sua frente bloqueando a pista criava com seus faróis uma visão fantasmagórica da realidade. Tentando demonstrar calma, Charles desceu do veículo.
“Ahn, você está bem?”, ele perguntou indo em direção ao Blazer.
“Desculpe-me senhor”, Frota disse, a voz engrolada simulando certa medida de embriaguez.
“Tudo bem, acho que nenhum dos veículos ficou muito danificado”, Charles disse, “talvez tenha sido apenas alguns arranhões”.
“É, talvez”, disse Frota, “tem uma lanterna aí?”.
“Ah sim claro”, Charles caminhou de volta ao Pathfinder, mas o mesmo instante se lembrou que a lanterna havia fiado na casa. Foi tanta pressa para sair que ele não se lembrou de apanhar a lanterna que ficou ali, ao lado do corpo morto de Augusto.
“Desculpe. Acho que não estou com a minha lanterna”, Charles falou a poucos passos do Pathfinder.
“Não se preocupe, acho que tenho uma aqui”, Frota disse e andou em direção ao Blazer. O cheiro de álcool estava forte, mas mesmo assim ele fez questão de tropeçar e simular sua própria embriaguez.
Frota ligou a lanterna e foi em direção ao Pathfinder. Iluminou os veículos. Apertou os olhos e viu que um líquido vazava do Blazer. A conversa entre ele e Charles não iria chegar a lugar algum e Charles abaixou-se para ver se talvez conseguisse descobrir a origem do vazamento.
Foi o que Frota precisou para em três segundo desviar a luz para o interior do veículo de Charles e ver os olhos de uma Sonia apavorada no banco do carona. Ao fundo varias mochilas de náilon pretas. A caçada havia chegado a fim. Com um movimento rápido golpeou Charles na nuca, que caiu sem jeito no asfalto ainda molhado.
Sonia soltou um grito e sem pensar tentou passar para o banco do motorista para quem sabe atropelar aquele homem, em seguida trazer Charles para o interior do carro e desaparecer dali, mas Frota já estava com a arma apontada para ela que não teve alternativa a não ser aceitar seu destino.
“Nem pense nisso!”, disse frota apontando a arma em direção a Sonia, “pensou mesmo que seria fácil assim levar meu maldito dinheiro?”.
“Do...do que está falando”, Sonia gaguejou olhando para Charles ainda imóvel no asfalto molhado.
“Cale essa maldita boca sua vadia. Desça do carro bem devagar. Vamos brincar de transportadora de valores. Primeiro vamos colocar todas as sacolas no seu carro. Que droga você arruinou o meu carro! Tire tudo da mala do Blazer, faça tudo bem rapidinho e eu prometo que mato você e seu namoradinho bem rápido. Garanto que não irão sentir dor alguma.”
Sonia era só lagrimas e soluços e levou um susto quando Frota gritou: “agora!”, e a empurrou pelas costas. Trôpega, caminhou os poucos metros que separava um veículo do outro. Começou o trabalho de movimentar o dinheiro.
Frota foi até o carro, abriu outra garrafa de cerveja e veio bebendo, encostou-se à frente do carro e ficou olhando sua vítima naquele trabalho que já estava deixando exausta.
Charles abriu um olho e viu o mundo na vertical. Sua cabeça sofria pontadas excruciantes de dor, mas ele precisava de uma idéia rápida, certeira, clara e fatal. Fechou mais uma vez o olho e pensou.
Sonia já havia descarregado quase todas as mochilas do interior do Blazer, agora já dava para ver o engradado de cervejas no banco de trás. Esticou o braço e puxou o engradado para perto de si.
Frota inclinava a cabeça para trás afim de melhor apreciar sua bebida agora quente. Sacudiu a garrafa para ter noção de quanto ainda restava dentro dela. Faltava pouco para acabar. Do outro lado do veículo, Sonia segurava outra garrafa pelo pescoço pronta para atacar seu oponente ao menor sinal de vacilo dele.
Com a garrafa na mão direita e apoiando outra mochila na mão esquerda, foi caminhando em direção ao Pathfinder, quando Frota, num movimento arremessou a garrafa no asfalto, estilhaçando-a. Neste movimento, a arma que estava na mão esquerda caiu no chão e disparou. O estampido quase ensurdeceu os três e num movimento de abaixar para apanhar a arma, frota acidentalmente chutou a arma para mais longe de si.
Charles levantou num salto e correu em direção ao homem agarrando-o pelas costas e derrubando-o no chão. Os dois homens rolaram se esbofeteando, mas Charles ainda estava levando a melhor. Sonia aproximou-se com a garrafa cheia ainda na mão e no instante que Frota ergueu o punho para desferir um soco em Charles, a cabeça do bandido ficou por dois segundos exposta. Ela só precisou de um. Acertou com força a cabeça do homem, causando um barulho oco, seco e viu o homem tombar.
Frota ainda conseguiu se mexer e quando tentou levantar, Sonia fez um movimento cortando o ar com o pedaço da garrafa que ainda estava em sua mão. A lamina do vidro cortou a garganta de Frota como uma faca quente cortando um pedaço de manteiga. Ele caiu mais uma vez, as mãos tentando conter o sangue que esvaía do seu corpo.
Charles e Sonia correram para seu carro, batendo as portas enquanto Frota em seus últimos movimento tentava se reerguer. O carro saiu em velocidade máxima. Frota caiu outra vez, perdendo o sangue e as forças. Piscou lentamente os olhos e viu a arma ali no chão. Apanhou e rastejou em direção ao Blazer. Por baixo do carro, viu o outro veículo desaparecendo na escuridão da noite.
Em seu ultimo movimento esticou o braço direito, fez pontaria e atirou. No instante que seu dedo indicador fez o movimento de puxa o gatilho foi que perceber que estava deitado sobre a poça de gasolina que vazava do Blazer. O clarão foi a ultima coisa que viu antes do calor das chamas fustigarem seu corpo conduzindo-o direto para o inferno. Uma passagem só de ida.


O jornal A Voz do Povo abriu a semana com a matéria de capa em letras grandes: ASSALTANTES DO BANCO UNIAO ENCONTRADOS MORTOS – Quem assumirá a culpa pelos dezoito milhões queimados?
Sonia e Charles olharam um para o outro e sorriram. Jogaram o jornal para o lado e voltaram para o quarto. Ela jogou seu corpo por sobre o dele e perguntou: “e então? Vai assumir a culpa pelo sumiço do dinheiro?” ele apenas olhou para ela com desaprovação e meneou a cabeça em negativo. Ela virou para o lado, o abraçou e apenas murmurou: “muito menos eu”. E dormiram profundamente.

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