O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Ossos do ofício

A moça com blusa vermelha listradinha passa pela trilionésima vez na frente da sala onde ela tem aula toda santa semana sem saber para onde deve ir. Não sabe onde deve se sentar e a sala tem quinze cadeiras disponíveis. Abre o editor de planilhas, depois de quase três minutos procurando pelo programa que ela abriu três vezes por semana pelos últimos sete meses. A cada letra digitada errada se desespera e pede ajuda. Já errou um milhão de vezes nesta meia hora que está aqui, o mesmo erro, a mesma ladainha: “ai professor, não tá indo”, naquela voz irritante que somente eu (porque só tem eu aqui hoje) tenho saco ainda pra agüentar. Estranhamente a sala está cheia agora, e eu estou sozinho sem ajuda alguma. Ela luta com todas as forças para conseguir realizar o mesmo cálculo simplório na décima sétima linha da planilha, o mesmo que cálculo que eu estou ensinando desde a linha três. Quer usar a alça de preenchimento e acabar com aquilo de uma vez por todas. Mas eu não vou deixar. Vai fazer linha por linha, e ela treme e quase se desespera porque quer desesperadamente abrir seu comunicador instantâneo e conversar com meio mundo de homens, todos os homens, menos o marido. Abandona o programa e parte para outro tipo de “programa”. As telas de chat funcionam a todo vapor e seu celular não para de registrar números de telefone. A todo instante quer saber como enviar aqueles recados coloridos que eu detesto no Orkut. Continuo olhando alguma alternativa para que ela consiga logo o que quer e pare de torrar com a minha paciência. A sala enche e eu continuo sozinho, mesmo depois de pedir auxílio. E assim num vai e vem meu de um lado para outro acudindo todo mundo, ela toda quase morre de rir da minha desgraça. Quer agora mandar seus dados para as empresas e tentar conseguir um emprego. Quer ser moderninha e mandar por email. Mas não sabe o próprio email que ela acabou de usar para conversar com sua legião de pretendentes famintos por uma nova presa. Eu tenho que entrar em ação, fazer qualquer coisa para essa sem cérebro ligar o tico e o teco e se mandar. Faço eu mesmo o seu cadastro, enquanto ela procura a caneta que não sabe onde colocou para anotar o quê mesmo? Ela não sabe direito o que precisa anotar, só sabe que precisa do emprego e quando pergunto qual a pretensão salarial ela pergunta o que é pretensão. Não, eu tenho que ir lá fora rir sozinho da burrice alheia porque não posso fazer isso aqui na frente de todo mundo que é o que eu queria. Seus olhos brilham quando eu falo sobre dinheiro, e ela mais que depressa enche a boca e diz quanto pretende ganhar: “seiscentos reais”. É demais para a minha cabeça. Escrevo lá setecentos reais, pensando no tamanho do prejuízo do dono do local ao contratar uma funcionária bonitinha, mas que tem no lugar do cérebro, apenas um grão de amendoim. E agora que já chegou a confirmação de recebimento do tal currículo, ela se levanta imponente, enche o peito e sai desfilando caras e bocas pela rua, vigiada pelos olhares lascivos dos homens de mesmo nível que passam por ela.

O assalto

Depois de outras quatorze horas de trabalho, tudo que eu queria era voltar para casa com aquela sensação de dever cumprido e a esperança de um bom banho e uma noite de sono. Mas não foi bem assim que aconteceu. Eu estava a poucos metros de casa quando percebi a moto voltando. Eram dois e pela fraca iluminação da rua não pude ver seus rostos cobertos parcialmente com esses agasalhos com capuz. E foi então que eu, sempre alerta me deparei com a dura realidade: era um assalto em curso. O carona saltou da moto ignorando as outras pessoas que passavam por ali junto comigo e apontou a arma. O piloto sacou a sua também. “Aí maluco passa o celular aí agora”, disse o carona, e foi exatamente o que eu fiz sem pestanejar. Com o canto dos olhos percebi o andar agora acelerado dos que passavam por mim. O piloto vendo que eu abria meu agasalho que levava meu telefone novíssimo disse: “eu to te roubando velho, agora não fala nada, não olha pra trás, vai”. É claro que meu coração disparou, e minha mente atarantada pareceu levar horas para processar aquela informação. Tive uma vontade quase incontrolável de olhar para trás e memorizar o número da placa mas eu apenas disse: “tudo bem”. Eu não ia arriscar desobedecer uma ordem expressa, afinal, balas atravessam paredes, carros, pessoas e eu jamais me colocaria num risco ainda maior por causa de um aparelho celular. Segui meu caminho, atordoado. Por uma estranha razão eu não me importava com aquilo. Eu estava feliz por ter sido apenas um telefone que eu facilmente poderia comprar outro. Entrei em casa ainda estupefato, mas muito longe de estar em estado de choque. Sentei na minha cama e numa prece silenciosa, agradeci a Deus por estar vivo e bem. Pensei na minha linda Rosana e agradeci mais uma vez por ela estar em casa e segura, longe desses marginais sociopatas com suas armas, assaltos e infanticídios. Lembrei de Gerson Brener e Marcelo Yuka que reagiram a um assalto e que foram salvos por, posso dizer, um milagre. Eu não queria entrar para a estatística. Mas sentirei saudades do meu aparelho, que tão pouco tempo ficou. Que ele possa servir para alegrar alguém e registrar em fotos e vídeos, momentos tão bons e inesquecíveis como os que eu tive.

Escada Rolante

Ela me olha por sobre o monitor, apenas os olhos aparecendo naquele castanho profundo. Ri das minhas piadas sem nexo e ainda antes do meio dia vai me abraçar e com aquele beijo que só ela sabe dar vai mudar o destino do meu dia. Caminho poucos passos até encontrar a suavidade das suas mãos e o cheiro do seu cabelo negro cobrindo aqueles brincos que realçam ainda mais sua beleza que de tão nata, chega a ser inebriante, trancendente, quase divina. E por ali vamos, tentando reduzir ao máximo a rapidez dos nossos passos para que o tempo passe mais devagar, e quando chegamos ao nosso restaurante preferido de todos os dias é como se uma nuvem cósmica nos rodease e nos isolasse do resto do mundo. Nessa hora tudo muda, e todo o resto das coisas fica lá atrás da nossa porta imaginária: os descasos, os tropeços, as desinteligências e desistências, os medos, as dores e os pecados. O que nos resta são nossas línguas e linguagens secretas, os idiomas que só os nossos olhos sabem dizer e são traduzidos pelo toque das nossas mãos e pela luminescência do nosso beijo. E embora esses minutos teimem em passar mais rápido, nada mais importa agora. Nem nossos trabalhos que nos chamam de volta à vida real, nem a garçonete com cara de bolacha que demora com o pedido, nem a escada rolante que quer nos derrubar porque já está chegando no final, mas nosso beijo ainda quer mais alguns instantes. E num esforço quase incomum nos soltamos e seguimos em direções opostas. Direções que apesar de tão curvas, nos trarão de volta ao nosso ponto de partida amanhã. E depois. E depois.

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