O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

A Relíquia - Vol. I - por Handerson Pessoa

Fazia nove dias que o grupo de alunos da faculdade de historia da PUC-SP estava no Cairo, Egito, trabalhando nas escavações de uma importante relíquia que era procurada desde o século dezesseis. Após alguns acordos entre as embaixadas egípcia e brasileira, os pesquisadores entraram em ação e agora estavam localizados nas ruínas de uma antiga civilização.
Dalton era o líder, o único que falava francês, e estava acompanhado de Márcia, Dora e Ronaldo. Há horas não viam a luz do sol, estavam muito profundamente abaixo do solo sendo guiados pela coragem e pela forte luz das lanternas, enquanto o séqüito de egípcios recrutados para ajudar com o transporte e carga aguardava em dois jipes, em meio ao escaldante sol do meio-dia e a interminável chuva de areia.
O grupo encontrou uma clareira entre as poderosas paredes rochosas da gruta. Lá dentro, um enorme salão tipicamente egípcio com inscrições e desenhos que Dora teve bastante dificuldade em decifrar. Os artefatos encontrados eram os mais diversos: pontas de lanças, pratos, o que parecia ser fragmentos de um copo rústico e um sem número de objetos que levariam tempo para serem datados.
E ali, no fundo da cripta estava o jarro, quase imperceptível, escondido entre o pó e ossos de algum antigo habitante. Com extremo cuidado e perícia de um profissional, Danton removeu o jarro de barro tampado e com sua abertura lacrada por cordas. Com um canivete suíço ele conseguiu com cautela romper as amarras e destampara o pote. O objeto estava frio e úmido, apesar do solo quente. Todos suavam e quando a luz penetrou o interior do jarro, um líquido vermelho, pegajoso e viscoso fez todos se sobressaltarem.
- Parece sangue – disse Márcia.
- Com certeza é sangue – Ronaldo falou após tocar o líquido com a ponta dos dedos.
- Meu Deus, que cheiro horrível – Dora exclamou, depois que o odor nauseabundo tomou conta de suas narinas.
- Tem mais alguém aqui – Danton disse. Um estranho barulho fez com que todos se alarmassem e vasculhassem o interior da cripta com as lanternas, mas não conseguiam ver forma alguma.
Logo ouviam os pios, os chiados do que parecia ser um ataque maciço de ratos. Talvez morcegos. Um enorme rato despencou sobre os cabelos de Márcia, que gritava em pânico e na loucura para se livrar do terrível animal, bateu o cotovelo esquerdo no jarro que rodopiou e caiu de onde estava. Não se quebrou porque estava sobre uma pedra baixa, lisa, bem perto do chão.
O sangue escorreu pelo chão empoeirado e logo tiveram que sair dali, pois os ratos correram na direção do sangue. Finalmente conseguiram encontrar a saída da gruta, mas não viam a claridade solar. O céu estava completamente tomado por escuras e pesadas nuvens de chuva por onde quer que seus olhos alcançassem.

Os guias egípcios desapareceram e enquanto Dalton tentava pegar o rádio comunicador no bolso da calça, o chão tremeu sob os seus pés. Um forte terremoto fez todos se deitarem no chão. No rádio só havia estática. Tentou o celular. Não havia sinal.
- Meu Deus o que fizemos? – gritava Márcia.
- Eu não sei, mas teve algo a ver com aquele jarro – gritou Dalton.
Repentinamente o terremoto cessou. O céu estava cada vez mais negro, e agora a chuva caía pesada e intermitente, como confetes no carnaval do diabo.
- Vamos nos abrigar dentro da gruta – Dora disse e correu para dentro, seguida pelo restante do grupo.
- Existem registros de uma antiga civilização egípcia adoradora do sol e que faziam rituais, sacrifícios, muitas vezes de humanos, e para que sua colheita e equilíbrio de vida fossem restaurados, eram sacrificadas mulheres, adolescentes virgens para aplacar a fúria das antigas deidades egípcias – Dalton falava enquanto todos prestavam atenção.
- Acha que aquele sangue tenha sido oferta a algum deus egípcio? – Ronaldo perguntou.
- Acho – Dalton disse – e se for, estaremos completamente perdidos.

A Relíquia - por Handerson Pessoa - Vol. II

Uma hora se passou e a chuva não cessava. Outra hora se foi, e mais outra. E outra. De onde estavam escondidos era possível ver a saída da gruta, por onde a água entrava às enxurradas. Tudo era visto pela luz das lanternas.
- Desliguem as lanternas – Dora falou – não sabemos ainda quanto tempo ficaremos aqui, por isso, pouparemos as baterias. Apenas uma lanterna fica acesa.
A temperatura começou a cair muito rapidamente e o vento que entrava parecia querer congelar os pulmões.
- Dalton, você que é mais experiente que nós, diga-nos: já se ouviu falar numa queda de temperatura dessa proporção à essa hora do dia no Cairo? – Márcia perguntou – Quero dizer, tudo bem que esfria muito no deserto durante a noite e quase gela de madrugada, mas meu Deus, são quatro da tarde agora.
- Isso não é normal – ele respondeu – nós provocamos isso.
- Cara estou dizendo, é aquele sangue – Ronaldo falou – O sangue foi derramado e agora temos que enfrentar a fúria dos deuses.
- Vou tentar o rádio de novo – Dalton falou.
Apenas o ruído peculiar da estática. Após isso, ninguém mais disse nada por muito tempo.
- Dalton, você disse que para aplacar a fúria dos deuses antigos, era preciso sangue humano, de uma virgem, é isso? – Dora perguntou.
- É.
- Precisamos sair daquie e sei lá, encontrarmos alguém que preencha esse requisito.
- E fazemos o que depois? Convencemos a tal virgem a ser voluntária ao sacrifício e depois enchemos novamente o jarro com seu sangue? – Dalton reclamou – Ah Dora faça-me um favor e me deixe em paz.
- Por que você não se torna voluntária e salva a humanidade, hã Dora? – Ronaldo desdenhou – Quantos anos tem? Vinte? Vinte e dois?
- Trinta, seu idiota e para o seu governo não preencho o requisito de virgindade. – ela respondeu – Mas talvez você possa fazer isso, já que nunca soube o que é uma mulher, a não ser pelas revistinhas que levava para a faculdade, na mochila.
- Vaca! – Ronaldo disse, vermelho de raiva e vergonha.
Todos os queixos agora batiam de frio. O relógio no pulso de Dalton marcava agora oito e meia da noite, horário local. Num canto, encolhidas dormiam Dora e Márcia. Ronaldo chegou perto de Dalton e falou-lhe ao ouvido:
- Dalton, escute, todo o planeta está sofrendo um dilúvio moderno. Olhe, o lugar está ficando inundado, logo teremos que sair daqui. E para onde vamos? Em breve, tudo ficará submerso, vamos morrer afogados. Veneza, Paris, São Paulo, em baixo d’água, já pensou nisso?
- Pelo amor de Deus Ronaldo, estamos no Cairo. Você está delirando com essa idéia de dilúvio – Dalton ponderou sentindo sua respiração ficar cada vez mais rápida.
- Olhe Dalton, Márcia tem dezessete anos, veio como assistente eu ouvi dias atrás uma conversa dela com a Dora sobre perder a virgindade com um egípcio – Ronaldo continuou – Sabe como são essas conversas de mulher.
- Está sugerindo sacrificar sua própria amiga? – Dalton perguntou, arregalando os olhos, mas considerando a sugestão
– Não se esqueça que foi ela que derramou o sangue. Eu vou descer e buscar o jarro antes que ele seja levado pela água.
Dalton chegando perto de Dora, abraçou-a e sentando-se atrás dela com o pretexto de aquecê-la. Com o braço direito apertou a garganta de Dora que esperneou e tentou em vão se livrar daquelas garras. Fora imobilizada e algum tempo depois acordaria sem saber o que lhe havia acontecido.
Foi até Márcia e aplicou o mesmo golpe. Ronaldo voltou com o jarro, a tampa e as cordas. Retirou Márcia de onde estava e a deitou sobre uma pedra plana. Com o canivete suíço fez um profundo corte no pulso esquerdo da amiga que jazia inconsciente na pedra fria.
Encheu o jarro e o lacrou, devolvendo-o ao seu lugar original. Jogaram o corpo de Márcia gruta abaixo e ele logo foi levado pela água profundeza abaixo.
Meia hora se passou, após ambos, Ronaldo e Dalton jurarem que aquele seria um segredo a ser levado para o túmulo.
- Já estamos em um túmulo – pensou Dalton.
Os primeiros raios de sol penetraram o interior escuro e frio da gruta. Dora acordou e chorou ao saber que sua amiga Márcia havia fugido e desaparecido durante a noite.
Dalton olhou o celular. Havia sinal, fraco, mas havia. No hotel assistiram por um canal de TV a cabo o estrago que a tempestade havia provocado no mundo todo.
“estima-se a morte de milhares de pessoas, talvez milhões”, disse o repórter.
A tempestade causada por um estranho fenômeno natural estava ligada à passagem de centenas de tsunamis, ciclones e furacões simultaneamente e que haviam alterado o eixo de rotação da Terra e seu eixo angular.
O repórter comentou também que esse fenômeno, de acordo com especialistas da área, já havia acontecido antes, milhares de anos atrás e que aconteceria novamente, alguns milhares de anos no futuro. Felizmente acontecia de maneira muito rara e em intervalos de tempo muito remotos e como se tratava de um fenômeno natural, nada era possível fazer, a não ser esperar. Dalton olhou para Ronaldo que olhou para Dalton. Então o repórter finalizou: “Que Deus tenha piedade das gerações futuras”.

Trote - por Handerson Pessoa

Desde moleque o Lucas já tinha começado a aprontar. Na lista das suas traquinagens, a que ocupava o topo era tocar a campainha nos muros alheios e sair correndo. Em segundo lugar era roubar a correspondência de caixas de correio para ler o que não lhe era devido. Juntou pilhas de revistas dos vizinhos que chegavam pelo correio e teve que queimar tudo quando seu pai descobriu.
Com o passar do tempo, as brincadeiras eram mais ousadas. Aos quinze anos, apanhava o jornal no trabalho do pai e se concentrava em lugar para as prostitutas da seção de acompanhantes, só para ver, escondido é claro, a reação das esposas dos vizinhos da sua rua quando abriam a porta e se deparavam com aquelas mulheres em trajes mínimos chamando por seus maridos. Já vira três casamentos se acabarem com aquela brincadeira de mau gosto.
Telefonava para a central de polícia informando crimes que jamais aconteceram e certa vez ficou preso uma semana para poder refletir sobre o que estava fazendo. De nada adiantou.
Aprendeu a usar computadores e quando ia à casa dos amigos sempre dava um jeito de encontrara as carteiras dos pais e pegar os números de cartões de crédito para depois fazer compras pela Internet. As compras era as mais diversas: eletrônicos, móveis e flores. E no escuro do seu quarto ficava pensando nas reações das pessoas: as que recebiam os presentes inesperados e as que tinham que pagar as contas que não tinham feito.
Telefonava para as farmácias pedindo remédios para serem entregues em casas em que as pessoas não tinham feito pedido algum. A mesma coisa com as pizzarias, só para deixar moradores e entregadores morrendo de raiva.
Tudo que era trote era mesmo com o Lucas. Um dia quando chegou em casa mais bêbado que um gambá, se cortou feio com uma faca tentando fazer não-sei-o-quê. Arrastou-se até a sala, apanhou o telefone e ligou para o serviço de ambulâncias. Sua voz mais conhecida do que tudo estava sendo ouvida pela atendente que afirmou que os médicos estavam a caminho.
Lucas esperou, esperou e esperou enquanto via sua vida esvaindo-se do seu corpo. Esperou demais. Do outro lado da linha, a atendente sorria enquanto terminava a chamada. “Algo importante Regina?”. Seu chefe perguntou: “Não seu Cláudio, era só um trote”.

Longe demais dos finais - por Handerson Pessoa

Chegou o último dia, e com ele, os últimos momentos. Sou um homem velho, sozinho e odiado, doente, sofrido e cansado de viver. Estou pronto para o depois, seja lá o que for. Deve, sem dúvida, ser melhor do que isso.
Sou o dono do apartamento neste bairro luxuoso na qual sacada estou sentado agora. Tenho quatro filhos, um com cada uma das esposas que tive. E agora não sei quem eram os piores. Os filhos ou as ex-esposas? Provavelmente eu.
Houve um tempo em que eu tive todos os meus desejos realizados: os carros, os eletrônicos, as casas e apartamentos que eu sempre quis. Comprei todos os carros que nunca dirigi, as roupas que nunca usei e freqüentei os mais caros restaurantes que eu nunca provei a comida. Mas estou velho demais para isso agora. O dinheiro é a fonte da minha infelicidade.
Não dou bem com nenhuma das minhas quatro ex-mulheres nem com meus filhos. Hoje eles vão se lembrar de mim, porque estou morrendo e será a hora de dividir o dinheiro. Planejei este dia por muito tempo. Esqueci de todos os lugares que fui sem querer ir e rasguei todas as catas e livros que escrevi e nunca publiquei. Não quero que outros se apossem das minhas idéias.
Eu já desliguei o telefone e joguei o celular no vaso sanitário, porque não quero falar com ninguém hoje. Hoje é apenas outro dia aqui sozinho. Houve tempos em que eu passava dias inteiros sem ouvir o som da minha própria voz por não ter com quem conversar. E houve dias em que eu dormi fraco demais por não ter o que comer. Mas isso já faz muito tempo. Não sei porque estou me lembrando disso agora. Talvez esteja louco como todos pensam. Deixe que pensem. Não faz diferença para mim.
Fico sentado olhado a cidade à minha frente. A campainha jamais toca. Houve tempos quando o dinheiro ainda não havia aparecido, mas a solidão já era a minha quinta esposa, que eu me animava quando meu cão Billy latia e eu corria até a porta para ver ninguém.
Preparei jantares para convidados que não vieram e telefonei para tantas pessoas que não me atenderam que hoje já não consigo mais contar. Chorei lágrimas de sangue sem que ninguém se importasse com isso.
Apanho meu sanduíche natural e tomo um gole do meu suco de maçã. Não como carne há muitos anos porque me lembra os diversos churrascos que eu freqüentava quando eu era jovem. Mordo meu sanduíche e jogo o resto na mesinha ao lado. Minha última refeição.
Lembro-me dos finais de semana em branco e todas as vezes que olhei para minha caixa de correio vazia e meu celular sem nenhuma ligação ou mensagem recebida.
Empurro a cadeira para trás e fico de pé. Minhas mãos e pernas tremem. Meu coração bate forte. Certamente já estarei morto antes de chegar ao solo. Seguro na amurada. Sento-me nela. A chuva que cai está fria, quase congelante. Olho para trás enquanto minhas lágrimas salgadas se misturam com as gotas de chuva formando um sabor agridoce.
Sem olhar para baixo, faço um movimento e atiro-me lá do alto sem saber voar.

O crime quase perfeito - Vol. 1 - por Handerson Pessoa

Já passava das cinco horas da manhã quando o gato miou, passando os pêlos nas pernas brancas e finas do agora famoso escritor Ralph Sinclair. O nome do gato era Al e o senhor Sinclair tinha por ele um amor quase que de pai para filho, uma vez que o gato era seu companheiro mais próximo. Havia também uma tartaruga e uma samambaia, mas sem dúvida, Al recebia a maior parte da atenção do seu dono.
Al colocou as garras para fora e miou ameaçadoramente para um pequeno pássaro que pousou na janela, piando, no momento que aqueles primeiros raios de sol começaram a aparecer. Vendo que não havia nada de interessante ali, o pássaro desapareceu. Al ronronou e foi se aconchegar na cesta onde ficavam as revistas do senhor Sinclair. "Cai fora daí Al", o homem gritou e o gato miou de forma ameaçadora mais uma vez.
O exemplar nº 142 da revsita Year's Book estava em cima de todas as outras e o senhor Sinclair tinha um verdadeiro ciúme daquela edição em particular. Na página trinta e oito estava a relação dos duzentos melhores escritores e suas respectivas obras do ano de 1986. A relação havia sido feita baseada na tiragem total das obras desde janeiro daquele ano.
E o orgulho de ter seu nome na revista fazia o senhor Sinclair encher o peito de ar e orgulho. Seu nome era o primeiro caso alguém lesse a tabela de baixo para cima. Ele não se importava. Pouco ganhou com aquela tiragem miserável a não ser um punhado de dívidas.
O senhor Sinclair era pouco mais que um escritor mediano de acordo com os padrões da revista mas conseguiu ter seu nome ali devido à sua persistência e astúcia. Anos antes do falecimento de sua mulhr, a adorável senhora Geena Mary Jackson, o senhor Thomas L. Jackson (agora conhecido por Ralph Y. Sinclair) abriu numa modesta loja, uma gráfica e editora chamada Ocean, onde ele mesmo cuidadva da edição do jornal semanário local e era auxiliado pela mulher. Publicou dez mil cópias do seu quarto livro (os outros três ainda não haviam sido publicados) que se chamava A terrível maldição da rainha de Sabá, e na parte de trás da capa, onde deveria aparecer a sinopse do seu trabalho havia uma proposta de reembolso, mais um prêmio de dois mil dólares para o leitor que encontrasse a palavra RAIMBOW impressa na página cem do livro. Plastificou toda a fornada dos seus livros e enviou para Gerald, seu cunhado e dono de uma grande rede de livrarias.
A obra foi exposta em um quiosque gigantesco no centro da livraria com um enorme cartaz pendendo do teto que dizia: "Mais Vendido". Ninguém jamais ouvira falar em Ralph Sinclair mas em poucos dias o estoque das vinte e oito livrarias se esgotou. Novas edições foram impressas e assim o escritou passou de anônimo a celebridade cultural em pouco tempo.

O crime quase perfeito - Vol. 2 - por Handerson Pessoa

Nas cartas recebidas pela editora e nos programas de televisão qu Ralph Sinclair participava, a pergunta era a mesma: "Quem ganhou o prêmio?". Nunca houve prêmio algum e agora o boato que circulava era que Ralph Sinclair não passava de uma farsa e ganhava enormes proporções.
Geena não estava mais lá, o dinheiro havia acabado e a Ocean agora com um novo máquinario rodou durante semanas a nova obra de Sinclair chamada A incrível batalha dos cabaleiros templários pelas ilhas de Tishman.
Para colocar sua obra à venda era preciso um pouco mais de esforço. todos consideravam Sinclair uma farsa e agora que não tinha mais a irmã Geena para amofiná-lo até que ele cedesse e colocasse o livro nas suas prateleiras, o senhor Sinclair simplesmente foi à falência e por pouco quase ficou louco. Entrou em seu quarto e num rompante de ostracismo não saiu de lá durante dois anos.
Ralph Sinclair tinh caixas e mais caixas de sua obra empilhadas e uma vez que apenas duas foram vendidas, era hora de traçar outra estratégia. Limpou o pó do maquinário da editora Ocean e imprimiu um cupom de desconto-reembolso no valor de dezoito dólares e cinquenta para quem não gostasse do livro e quisesse devolver ou quisesse usar o cupom para abater o valor da compra de outros livros, tudo pago pela livraria do cunhado.
Logo em seguida embalou novamente os livros com o cupom desconto-reembolso anexado à contra-capa. Os cupons poderiam ser trocados a partir de setembro de 1987, três meses depois que o livro foi para as lojas.
Claro que nada daquilo era do consentimento do senhor Gerald que na inocência vendeu todos os exemplares. O livro era vendido a 9,50 dólares e se esgotou rapidamente. Um cheque de cento e oitenta mil dólares foi enviado para Ralph Sinclair. A estratégia era extremamente simples. Nas cinco cidades onde haviam as livrarias de Gerald R. Manson, Sinclair deu dez dólares para cada um dos dez jovens que ele recrutou para que fizessem dez telefonemas cada, de telefones públicos diferentes fingindo interesse na compra do livro.
Com o acumulo de telefonemas, o senhor Gerald Manson foi quase obrigado a mandar caixas e mais caixas para as outras lojas. O que começou como uma tentativa interssante para fazer o dono das livrarias comprar mais edições do livro se tornou um lucrativo negócio. Três meses depois começariam os problemas.

O crime quase perfeito - Vol. 3 - por Handerson Pessoa

O senhor Sinclair, quarenta e três anos, após um café forte e certo que Al, seu gato estava longe da suas revistas ouviu um barulho na porta e sabia que a revista Year's Book de novembro havia sido atirada contra a sua porta. Abriu novamente na página trinta e oito da mesma forma que havia feito algum tempo atrás e contemplou o seu nome na posição vinte e sete. Estivera antes na posição duzentos e agora dera um grande salto.
A algum tempo atrás também vendera sua casa, sua decadente e inoperante gráfica e editora Ocean por novecentos mil dólares. Uma bagatela, ele dizia. Pegou seus cento e oitenta mil dólares e agora estava milionário. Deixou o dinheiro guardado em um banco onde rendia vinte por cento ao ano no nome de Thomas L. Jackson, seu nome verdadeiro. Três meses depois comprou uma casa modesta na cidadezinha de Kanton onde morou tranquilamente até aquela manhã.
O senhor Gerald Manson jurou que mataria Ralph Sinclair onde quer que ele estivesse, desde que o encontrasse. Comprou uma arma e não saía de casa sem ela. E após os pedidos constantes da senhora Claire Manson, ele levou a mulher e os dois filhos para uma viagem de dez dias para a Flórida.
Sinclair estava m seu carro, um Fox 86, tamborilando os dedos no volante cantando uma música country que tocava na única rádio da cidade. Parou no farol enquanto via os pedestres atravessarem a rua. Foi quando Gerald Manson apareceu.
A princípio Sinclair não o viu. Estava com os olhos fechados cantando um refrão, mas quando Gerald o viu, parou na faixa de pedestres e fixou os olhos para ver se era mesmo quem ele pensava que era. O farol ainda estava fechado, Sinclair abriu os olhos, arregalou-os, prendeu a respiração e abaixou o volume do rádio. Ainda teve tempo de ouviu Gerald murmurar: "Filho da puta".
O movimento seguinte dos dois foi rápido e rasteiro e ambos com a mão direita. Sinclair engatou a primeira marcha enquanto Gerald sacava a arma. O Fox branco atingiu o homem com a arma e o jogou para o alto e para a esquerda. Com o fluxo dos veículos rurais naquela manhã de domingo Sinclair perdeu o controle do carro, foi tocado por um trator e bateu num poste.
A senhora Claire, percebendo o movimento e o barulho, entrou no carro no momento que vi a o marido ser jogado para cima e foi ao seu encontro. Parou o carro a poucos centímetros de Gerald, e ao ver que estava vivo, o ajudou a entrar pela porta direita. Seu joelho esquerdo estava arruinado. Claire não sabia que o marido tinha uma arma e muito menos que andava com ela.
A fumaça saía do capô do Fox destruído. Claire e Gerald saíram às derrapadas, o poste iria ceder. E cedeu. Caiu sobre o Fox de Sinclair. A explosão foi ouvida de longe. As crianças choravam no banco de trás. A única viatura da pacata cidadezinha patrulhava uma rua distante dali.
E assim Sinclair foi definitivamente aposentado no mesmo dia que comemorou seu triunfo ao ver seu nome pela segunda vez na lista dos mais famosos escritores.
Gerald e Claire abortaram a viagem e voltaram. Ela e as crianças para casa. Ele para o hospital. No caminho, ela berrou com o marido: "Você sabe que eu odeio armas". Estavam próximo a um campo onde uma ave de rapina atacava ferozmente um animal morto. Parecia um boi. "Desculpe querida, não preciso mais dela", e jogou pela janela o revólver.
A ave se agitou e foi conferir o que era aquele barulho. Ao sentir o cheiro de pólvora e vendo que não havia alimento algum, a ave bateu asas e voou.


A super quarta-feira - por Handerson Pessoa


Edmundo tinha vinte e nove anos e desde os nove fumava intermitentemente, nunca tentando largar o vício mas cuidando para não ficar viciado. Gostava das marcas famosas e sempre preferia as tradicionais. Eram onze e meia da manhã e Edmundo estava preocupado. Haviam apenas outros dois cigarros, nenhum dinheiro no bolso, nem na carteira, nem no banco. Fuçou todos os lugares onde talvez pudesse encontrar algum dinheiro. Cinquenta centavos foi tudo o que achou depois de longos períodos de procura entre seus pertences.
Olhou concentrado na pequena caixa de West nas suas mãos. Com aquele dinheiro não dava para comprar outra. Bela hora para parar, ele pensou. Era a hora do almoço e ele foi para o bar. Além do cigarro, o jogo era outro dos seus vícios. Raramente ganhava, mas naquela manhã achava que poderia ter sorte. Anotou quatro números do código de barras do cigarro e foi até a mesa do apontador.
O sorteio corria ao meio dia e com um MP3 ele ouvia os resultados na mesa da copa da firma onde trabalhava. Não conseguiu segurar um pequeno grito e um soco na mesa quando soube que ganhou. Cinquenta centavos haviam se transformado em novecentos e oitenta reais.
Recebeu o dinheiro três horas depois. Estava no caminho de volta do banco para a sua firma. Parou e apostou de novo. Dez reais nos mesmos números e outros quinze reais em números diferentes. O sorteio agora do jogo do bicho acontecia às quatro da tarde.
Do computador ele acompanhou os resultados. Não acreditou no que viu. Outro palpite correto. Dezesseis mil, quatrocentos e cinquenta e dois reais e dezoito centavos.
Queria comemorar ali na frente de todo mundo, mas se conteve. A lei trabalhista diz que um funcionário pode ser demitido por justa causa pela prática constante de jogos de azar e ele não queria correr esse tipo de risco. Receberia sua pequena bolada no dia seguinte em outra agência para não levantar suspeitas. Era o seu dia de sorte. Fez outras apostas para o sorteio das 18:30 mas não pegou nada. Não se importou. A apenas algumas horas atrás ele estava preocupado por ter apenas cinquenta centavos. O dinheiro multiplicou espantosamente num dia só.
A sorte finalmente havia batido à sua porta e Edmundo não queria desperdiçar nenhum minuto daquele maravilhoso dia. Entrou na lotérica apanhou diversos bilhetes, marcou todos e foi para casa. Acabou dormindo por causa do excesso de vinho. Tinha medo de dormir e acordar com seus cinquenta centavos no bolso.
Acordou com uma terrível dor de cabeça. Chegou atrasado no trabalho. Brigou com o gerente e foi demitido. Ia embora daquele lugar no fim do dia. Abriu um portal de notícias na Internet. Conferiu os números e vomitou ali mesmo no cestinho de papel debaixo da sua mesa. O sorteio número 735 teve apenas um ganhador. Vinte e três milhões, novecentos e setenta e nove mil reais e um troco.
Levantou-se da cadeira, foi até a sala do gerente e disse para ele enfiar aquele emprego ele sabia onde. Foi direto ao banco, recebeu o prêmio, transferiu para outra conta. Uma semana depois estava em sua casa de praia, sentindo a areia quente nos pés, olhando para seu pequeno barco luxuoso. Andou pelo píer e entrou no barco. Pegou sua caixa de West, amassou e jogou na água. Nunca mais, ele disse para si mesmo. Mas como homenagem colocou a caixinha milagrosa do West de dias atrás em uma cristaleira e ninguém tocava nela.
Passou o resto da vida navegando pela águas calmas da costa brasileira, parando em vários quiosques comprando todos os cigarros que conseguia e destruindo todos. Fez campanhas contra o tabaco e teve muitos seguidores. Seu slogan era: "o cigarro pode matar ou destruir você". Mas no fundo sabia que por causa dele, sua vida tinha apenas começado, sem hora certa para parar.

O pombo atirador de elite - por Handerson Pessoa

A dona Neusa chegava a ser irritante com a sua mania de limpeza. Qualquer cisquinho pelo chão da sua sala limpa e asseada e lá vinha ela com sua vassourinha na mão. Sujeira por menor que fosse no seu carpete? Lá vinha a dona Neusa com uma vassoura de pia sava nas mãos. Não tinha aspirador. Carro então nem se fala. Era impecável. Completamente limpo, nenhum pó. Lavado de três a quatro vezes por semana, aspirado e perfumado. A dona Neusa não podia com bagunça, nem tampouco com sujeira.
Participava das reuniões organizada por um grupo de psiquiatras voluntários especializados em transtorno obssessivo-compulsivos e sempre que ia se sentar, passava um paninho embebido em álcool para limpar o assento e o espaldar. Lavava as mãos a cada dez minutos e entrava
em parafuso só de pensar que microorganismos poderiam invadir seu corpo. Tinha síndrome do pânico. Seu jardim estava completamente livre de ervas daninhas e suas luvas com as quais revolvia a terra eram sempre descartáveis. Era a versão feminina do famigerado detetive Monk.
Mas aconteceu que um dia a dona Neusa voltava de uma das suas sessões de terapia (como ela costumava chamar) e parou em um farol. Observava atentamente as vitrines das lojas com marcas de dedos nos vidros, e apertava com força o volante do carro, os nós dos dedos
chegando a ficar brancos, louca para entrar na loja somente para pedir para as vendedoras deixarem ela passar seu paninho com álcool nos vidros. Com os carros na rua era a mesma coisa. Era implacável com a sujeira, o seu currículo de caça-sujeira não tinha jaça.
O farol abriu e lá ia ela com seu imaculado automóvel pelo lado direito da pista. À sua frente todos os faróis estavam abertos e ela poderia pisar fundo no acelerador e chegar em casa o quanto antes.
Foi quando um humilde pombo que havia pousado em um dos fios da rede de alta tensão resolveu salvar a vida da dona Neusa. Carimbou o pára-brisas do veículo com uma precisão digna de atirador de elite, a diferença era que a sua arma...bem...era um tanto diferente. O projétil acertou em cheio o vidro do carro e dona Neusa quase em pânico com aquela sujeira enfiou o pé no freio, os carros buzinando atrás. Ignorou completamente o buzinaço dos veículos e ao abrir o porta-luvas para pegar um papel higiênico para limpar o vidro ouviu o estrondo. Um caminhão vermelho Scania, do tipo jamanta de 20 marchas atravessou o cruzamento no farol vermelho, e se chocou com o carro da faixa ao lado da que estava dona Neusa. O motorista estava sozinho no Fiesta verde abacate que ficou completamente destruído, mas ele
sobreviveu.
Dona Neusa boquiaberta viu que tinha sido salva pelo pombo. Jogou o papel na rua, pensando: Dane-se a rua com essa sujeira! entrou no carro e parou no primeiro lavajato que viu na frente. Como homenagem ao pombinho salvador ela foi a um viveiro de aves, comprou
duas dúzias de pombos brancos e pensou em levar para casa, mas sabia que não conseguiria conviver com a sujeira deles. Abriu as caixas e soltou todos.
Parou de fazer terapia, relaxou um pouco mais com a ordem e a limpeza da casa, começou a fumar e a não se importar com as cinzas pelo seu chão e era vista sempre roendo as unhas. Comecei a viver, ela dizia para quem quisesse ouvir. Fez drad no cabelo, uma tatuagem nas
costas, um grafite na parede do seu quarto e adotou um cachorro. Virou uma radical.

A carteira - por Handerson Pessoa

O Fernando estava na área de lazer do shopping, comprando créditos para o seu cartão para as máquinas de fliperama quando o restante dos seus amigos resolveu ir embora. Já estava ali desde as quatro horas da tarde, e cinco horas depois se cansaram dos mesmos jogos. Mas não o Fernando. Lá estava ele de novo naquela moto. Sempre chegava em primeiro, no mínimo um segundo lugar. A carteira incomodava no bolso de trás da sua calça jeans, então ele a colocou perto do painel da máquina, ali perto do lugar onde tinha que passar o cartão.
Primeiro lugar de novo. Levantou-se e foi para outra máquina. Trinta minutos se passaram. Os créditos acabaram e a fome apertou. Ao lado ficava uma pizzaria: Pizzaland, uma daquelas pizzarias que cortam a pizza em quadrados pequenos. Ele se sentou, pediu uma pizza e esperou. Levou a mão direita ao bolso da calça e apertou o bolso vazio. Cadê a minha carteira? - ele se perguntou em voz baixa, mas todo mundo ouviu.
Sentiu um calafrio por dentro. Seu estômago rodou. Sorrateiramente ele saiu da pizzaria, sem deixar rastro. Voltou ao fliperama. Caramba! Fui roubado e nem vi - ele ficava repetindo para si mesmo o tempo todo. Andou por entre a multidão e olhou. Ao longe viu um rapaz com uma camiseta preta escrita PAZ em letras grandes e maiúsculas. O rapaz mexia em uma carteira. O Fernando foi chegando perto e viu que era a sua. O rapaz olhava ao redor, parecia desconfiado, parecia procurar o dono da carteira.
Sem pensar o Fernando chegou por trás e deu um tapa nas costas do outro.
- Tá pensando o que rapá? Roubando a carteira dos outros? Tá querendo apanhar aqui é? - ele gritava.
- Cê tá louco cara? Sou ladrão não, eu achei essa carteira ali no...
- Me dá isso aqui - O Fernando disse, pegou a carteira e deu um empurrão no peito do rapaz
Começava uma briga. Os dois rolaram pelo chão se agarrando, dando coices e pontapés, parecendo uma dupla de garotos de oito anos. Até que chegou um segurança. Um não, três. Os arruaceiros foram imobilizados e levados à administração do shopping onde foram explicar a história. O rapaz de camiseta preta da Paz foi jogar no simulador de corrida de motos. Encontrou a carteira do Fernando e naquele momento estava olhando para a foto da carteira de identidade e procurando o seu dono. Daí chega o Fenando e começa o embate.
Após os pedidos de desculpas, a carteira foi devolvida. Nada de errado com ela, tudo estava lá, intocável. Lenços foram distribuídos para os dois limparem os narizes sangrentos. O Fernando agradeceu, o outro concordou, e depois de um abraço de confraternização, os dois foram para a pizzaria onde pediram pizza de calabresa e uma rodada de chopp. Em seguida voltaram ao fliperama onde disputariam uma partida no simulador de motos. Mas por precaução, dessa vez o Fernando colocou a carteira dentro da camisa.

Serviço de bordo - por Handerson Pessoa

Para o serviço de bordo do vôo BR1021 da BRA, a comissária serviu como de costume um sanduíche de peito de peru, um bolinho com gosto de velho e um copo plástico com refrigerante quente de guaraná que parecia ter sido aberto na tarde do dia anterior. Seu nome era Paula Marques e a sete meses havia entrado para o time das comissárias.
Seu trabalho era relativamente fácil. Depois de mostrar como se usavam os equipamentos em caso de falha da aeronave ( o que ela detestava porque parecia uma marionete em um espetáculo onde poucos prestavam atenção), era só esperar o comandante nivelar o pássaro mecânico a pouco mais de dez mil metros de altitude para começar a servir. Mas Paula não era apenas uma comissária comum. No começo apenas fazia seu trabalho, meses depois começou a querer um pouco mais.
Paula trabalhava dia sim e outro não. Isso facilitava. Um dia antes, como tinha acesso a diversos setores da companhia, ela acessava via Internet a relação de passageiros que estariam nos seus aviões no dia seguinte. Escolhia suas vítimas assim. Selecionava os mais ricos, que provavelmente viajariam com dinheiro, cartões de crédito, cheques e toda aquela quinquilharia eletrônica que ela agora tinha em casa e que estava disposta a vender. Jamais havia levantado dúvidas. Estava acima de qualquer suspeita. No começo seu pulso chegava a cento e quarenta, mas com o tempo o medo foi passando e já havia se tornado algo banal para ela.
O doutor Walter Inácio dormia a sono alto quando ela passou pela sua poltrona. Geralmente o serviço de bordo era servido do início para o fim do avião, mas por causa da insistência do doutor Walter querendo um whisky (era seu primeiro vôo e ele precisava relaxar) ela resolveu iniciar pela última fila.
Voltou rapidamente para a cozinha onde abriu uma frasco com comprimidos e despejou os pedaços sobre a bebida sem gelo do homem. Sorriu para ele, que deixou o laptop na poltrona ao lado sobre o blazer cinza claro. Era a última fila da aeronave, e por uma sorte muito grande estava viajando na poltrona A sendo que as poltronas B e C estavam vazias. Parou o carrinho na volta para a cozinha na frente da poltrona, sentou-se e verificou o estado da sua vítima. Inconsciente. Ele acordaria algum tempo depois na enfermaria do aeroporto com fortíssimas dores de cabeça e sem saber para onde haviam ido seus pertences. Dias depois iria abrir um processo contra a empresa aérea e um dia seria ressarcido de seu prejuízo. Paula Marques sorriu. Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos...
Recolheu carteira, dinheiro, e o laptop que colocou embaixo do carrinho. O vôo estava cheio de poltronas vazias e isso tornou o roubo ainda mais fácil, ninguém percebeu nada.
Quando o avião aterrissou, ela foi a primeira a comunicar o comandante que pelo rádio chamou uma ambulância. Depois dos paramédicos realizarem o seu trabalho ela graciosamente pegou sua mala com rodinhas, desceu as escadas e entrou no aeroporto Santa Genoveva em Goiânia. Acima de qualquer suspeita. Tinha uma hora e meia de descanso antes de voltar na mesma aeronave para São Paulo. Começou a fazer as contas. Discretamente entrou no banheiro e abriu a carteira do pobre homem. Tinha dinheiro ali equivalente a três meses do seu salário como comissária. Apanhou o dinheiro e se desfez da carteira, jogando no lixo do banheiro. Logo a carteira seria encontrada.

Já estava na hora de voltar. Ajeitou seu cabelo, sua roupa, e estava pronta. Novamente levou para dentro do avião sua bagagem. Acompanhou a subida dos passageiros, fez o teatrinho da máscara de oxigênio e estava pronta para o serviço de bordo quando ela caiu. Ela não sabia o que tinha acontecido, mas o episódio foi rapidamente escondido pelas outras comissárias que a levaram para um local isolado do avião. Paula estava desacordada, não tinha reação alguma, mas ouviu ao longe uma pessoa dizer: “Pegue o remédio dela”. Paula tinha medicação controlada, e num terrível e comprometedor engano, a amiga pegou o frasco de comprimidos errado. Paula voltou a dormir e quando acordou e abriu os olhos viu tudo branco. “Estou no céu”, ela pensou e quase disse, mas sua cabeça doía horrores e ela nem mesmo tentou dizer nada. Tentou se levantar, mas não conseguia. Olhou para o braço esquerdo e uma pulseira de metal cintilava em seu pulso. Olhou para o outro lado e uma policial estava acompanhando a criminosa. Paula chorou e o mais improvável aconteceu. Convenceu a todos que aquela não era a sua mala. Durante o tempo de espera no aeroporto em Goiânia, Paula furtivamente trocou o distintivo das malas que eram sempre idênticas entre as comissárias. Alguns passageiros possuíam malas iguais e no saguão do aeroporto houve a troca. Ela não era bandida, era uma simples vítima como o doutor Walter, ela dizia. Paula, depois de alguns esclarecimentos foi libertada, voltou para a sua casa e prometeu não processar a empresa que trabalhava depois de um pomposo acordo. Sentiria falta de sua bagagem, mas a empresa já havia providenciado outra. E assim Paula escapou por muito pouco de passar os dias confinada a uma cela. Ufa! O doutor Walter teve seus valores restituídos mas nunca mais viu sua velha carteira e seu computador, e em algum lugar próximo ao Jardim América em Goiânia, alguém gastava o dinheiro do doutor Walter em um shopping e depois voltaria para casa para usar um laptop.

O Troco - por Handerson Pessoa


Todo dia de finados chove. Pode reparar. Desde os oito anos de idade eu percebi isso e nos dezenove anos seguintes tem sido assim. É só amanhecer o dia dois de novembro que já começa. Se não for pela manhã é no final da tarde que o pranto sagrado resolve dar o ar da graça.
E foi durante uma daquelas intermináveis chuvinhas que minha campainha tocou. Era o Júnior. Pálido, tremento de medo e de frio, com os olhos esbugalhados. Preparei um chá quente enquanto meu amigo tomava um banho e vestia uma das minhas roupas.
Então passado o susto ele resolveu contar. Acabara de ficar sob a mira de uma arma. Tudo isso por causa de um troco errado. O Júnior acordou cedo e foi para a casa da irmã. Entrou na lotação e sentou-se num daqules lugares reservados para idosos e deficientes. Era o ponto final e enquanto meu amigo se maravilhava com a calça extremamente justa da cobradora e que mostrava a calcinha vermelha para quem quisesse ver, ele respirou fundo e falou:
- Cobradora, só tenho uma nota de cinquenta, você pode trocar?
- O troco máximo é de dez reais - ela disse sem olhar para ele.
- Mas eu só tenho essa nota - meu amigo falou.
- Vou ver o que posso fazer - ela disse e pegou o dinheiro.
Enquanto meu amigo contava, eu ia servindo mais chá. Ele então continuou. A lotação foi enchendo, enchendo e uma mulher grávida e com um outro bebê os braços entrou com sua mãe já idosa. Meu amigo cedeu o lugar. Cedeu porque além de ser cavalheiro, é lei municipal ceder aqueles lugares.
Tudo lotado e meu amigo ali em pé. A cobradora abriu uma pochete onde haviam diversos maços de notas amarrados com um elástico amarelo. Um solavanco, uma freada e vários maços caíram. Meu amigo ajudou a pegar. A cobradora agradeceu e deu o troco para o Júnior. Era o ponto dele descer e como não dava para ir pela porta de trás, desceu pela frente mesmo. Colocou o dinheiro, o troco no bolso de trás da calça jeans e se foi.
Chegou na casa da irmã. Ela não estava. Resolveu esperar um pouco, foi a uma lanchonete, pediu refrigerante e um beirute. A chuva não parava de cair. Quando foi pagar, o susto. Noventa e sete reais e setenta centavos. Na pressa, a cobradora gostosinha enfiou a nota de cinquenta no meio das outras sem perceber.
O Júnior voltou para casa depois de esperar pela irmã que nao voltava. Na frente da sua casa, um carro branco o esperava. Assim que ele abriu o portão, dois caras saíram com uma arma cada um.
- Tá querendo sacanear a gente malandro? - um deles perguntou.
- Do que você está falando? - o Júnior perguntou - Quem são vocês?
- O dinheiro do ônibus, cadê? Eu quero o dinheiro - o outro vociferou.
Com a barulhada da chuva ninguém escutou nada, nenhum vizinho sequer apareceu na janela.
- Desculpe, não foi culpa minha, eu ia devolver - o Júnior disse gaguejando ao sentir o cano do revólver encostar na sua barriga.
- É claro que ia - um dos homens disse.
Meu amigo pegou o bolo de diheiro e ia retirar a nota de cinquenta reais quando num movimento brusco, o homem arrancou todo o dinheiro do Júnior, enquanto o outro dizia: "Ande logo com isso". O homem guardou o dinheiro num dos bolsos da calça e mandou o meu amigo virar de costas. É claro que o Júnior não ia desobedecer a dois caras armados, foi quando sentiu o soco nas costelas e ficou ali deitado no chão enquanto os caras iam embora.
Na minha lavanderia as roupas do Júnior secavam ao vento frio. ele não sabia como tudo aquilo poderia acontecer. Quase ser morto por causa de cinquenta reais? Daí eu me lembrei do caso do cara que morreu baleado por causa de um mísero pedaço de pizza.
Meu amigo, mais calmo, resolveu ir embora. Pegou a jaqueta ainda molhada e levou outro susto. No bolso largo de dentro havia três maços de dinheiro. Como havia aparecido ali? Daí se lembrou da freada da lotação e o dinheiro voando em maços da pochete da cobradora. Total: oito mil, duzentos e setenta e sete reais.
Definitivamente ele não ia devolver aquele dinheiro depois de tudo que tinha passado. Levei meu amigo para casa depois de ser presenteado com mil e quinhentos reais. Claro que fiquei satisfeito. O Júnior, lógico, ficou pensando em quanto tempo os caras voltariam. Não voltaram. Mas por via das dúvidas, comprou uma moto e se mudou de bairro. E nunca mais andou de ônibus e nem de lotação.

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