O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Estação Paraíso

De tudo se vê na estação Paraíso. Do lado de fora, igrejas megalomaniacamente grandes dividem espaço com a Praça Estela, e com seus moradores ilegais que teimam em permanecer ali, mesmo sabendo que podem (e vão) apanhar da polícia toda vez que as viaturas passarem por lá. A prefeitura não quer vê-los naquelas redondezas nem tampouco fornecem meios para que eles saiam do local.
Do lado de dentro da estação o espaço acaba sendo pequeno para a quantidade de pessoas que circulam num dos pontos de baldeação do metrô. Um casal de punks discutem num canto depois da bilheteria e antes das roletas. Parece que é o único meio de se darem bem é daquela maneira, às agressões verbais. Cada um, cada um.
Na fila da bilheteria, um senhor bem vestido, com um terno cinza claro espera pacientemente a sua vez de ser atendido. Enquanto isso ele olha a foto dos procurados pela guarda municipal. São infratores que assaltaram as bilheterias. As fotos estão ali faz anos e jamais foram trocadas.
Descendo as escadas rolantes apinhadas de pessoas, olho para a minha esquerda. Lá em baixo estão duas moças, devem ter no máximo dezessete ou dezoito anos, ao estilo EMO. A maquiagem pesada que as deixam com a aparência de seres do “underground”, criaturas demoníacas em corpos humanos a transitarem por aí, chama mais a atenção do que o beijo apaixonado que as duas agora compartilham. Todas as atenções se voltam para elas. Um senhor e uma senhora bem idosos olham para aquela cena que chega a ser utópica e ao chegar ao final da escada rolante, com o pescoço ainda voltado para aqueles dois seres do além, ouço os idosos sussurrarem um para o outro: “que barbaridade!”. Os dois queixos estão agora no chão, três com o meu.
Um homem negro com um saxofone toca uma bela música num canto próximo a um pilar. Seus cabelos (se é que podem ser chamados de cabelos) estão grandes, a cor é imprecisa, uma mistura de preto, cinza e marrom. As tranças parecem ser encapadas com mofo e bolor e ganham sob a luz difusa da estação um tom levemente arroxeado. Sua caixa de contribuições tem poucas moedas. Se continuar assim, ainda vai conseguir comprar ao chegar às dez horas da noite um litro de leite e alguns pães.
Entro em um dos vagões do trem (parece que é o mais cheio) e sigo em direção à estação Ana Rosa. As pessoas me apertam na porta, parece que todo ar está sendo sugado com força e minha cabeça gira. Tenho que chegar à estação Saúde para um compromisso importante e só faltam treze minutos.
De uma estação para outra na linha azul do metrô gasta-se aproximadamente dois minutos. Quando as portas se abrem, uma avalanche de pessoas descem, me empurrando e me levando junto com elas. Um joelho acerta minha pasta que escorrega dos meus dedos e cai aberta, espalhando papéis importantes pelo chão. Muitos dos papéis são pisoteados e agora eu não posso simplesmente mostrar aqueles prospects para o meu cliente. As marcas de sapatos e tênis que ficaram nos papéis, não vão me deixar à vontade, e muito menos meu cliente.
Sento-me em um dos bancos e olho para o alto, desconsolado. Apesar de estar a alguns metros abaixo do solo há uma clareira, e lá de baixo, como se eu estivesse nas entranhas do planeta eu posso ver um céu avermelhado, salpicado de nuvens branco-alaranjadas. Olho para meu celular. Sinal fraquíssimo naquela profundidade. De repente uma vibração. Olho para o aparelho e vejo que é meu cliente. Espero o pior, espero uma reclamação, uma bronca, um grito para depois em seguida vir o meu choro e meu ranger de dentes por não ter saído um pouco mais cedo.
É ele. Me pede mil desculpas, mas não vai poder me aguardar. Seu filho caiu na escola e ele tem que ir ao médico. A visita fica para amanhã no mesmo horário. Meu sorriso vai de orelha a orelha, mas tento manter a postura de cliente interessado.
Dou a volta e entro no metrô, agora no sentido contrário, no sentido Tucuruvi. Não sei qual a direção que está pior. Mas em meio àquela baderna, àquela babel que se forma dentro do vagão, a voz sublime, doce e celestial da operadora do metrô diz serenamente: “Estação Paraíso”, e faz com que eu me desprenda dali e viaje naquela voz para outra dimensão.
Eu deveria descer, mas permaneço ali, olho no relógio. São 18:59. Amanhã estarei aqui de novo para pegar este mesmo trem e ouvir de novo aquela voz. Mas não quero deixar para amanhã, quero ver quem é ela agora, então eu deliro e penso rápido em um plano infalível, como todos os meus outros planos. Quando chegar na próxima estação, vou descer correndo e irei até a cabine de comando. Como sei que não dará tempo, tentarei entrar num dos primeiros vagões. Na estação seguinte, corro e olho o rosto dela. Não sai como eu planejava, quando consigo olhar pelo vidro frontal da cabine do operador, há um enorme adesivo plotado no vidro com uma propaganda de um supermercado famoso. Não vejo o rosto. Só posso imaginar.
Sem alternativas, entro novamente no trem e vou até a última estação, faço o retorno apenas para chegar de novo na minha estação preferida e sentir novamente aquela ótima sensação que me dá ao ouvir o anúncio de mais uma chegada. “Estação Paraíso”.

Amor cabeça - por Handerson Pessoa

Aquelas lotações de São Paulo na hora do rush viram uma armadilha para quem está atrasado e só quer chegar no seu destino, não importa se é em casa ou no trabalho. Uma fila tripla se forma no ponto final, afinal, ninguém quer ir em pé naquele aperto.
O Milton entrou, sentou, abriu seu livro e começou a ler, mas o barulho das conversas alheias era tanto que ele guardou sua leitura para depois, colocou os fones de ouvido e ligou o rádio no último volume. Estava tocando Hotel Califórnia, do Eagles. Dois pontos depois deitou a cabeça no espaldar do assento e o sono veio ligeiro. A princípio ele pensou que estava sonhando, mas a gente não costuma sentir cheiro no sonho, nem dor. Foi quando um par de cadernos despencou lá de cima e acertou o queixo do Milton.
O cara levantou de um salto, e enquanto ela se abaixava para pegar os cadernos em meio àquela avalanche de materiais escolares, as duas cabeças se chocaram e ela se desequilibrou e caiu sentada no chão. Desculpas e mais desculpas foram pedidas por ele mas tudo o que ele recebeu em troca foi um "idiota" que ela gritou para quem quisesse ouvir e nem sequer deixou ele ajudar a recolher os materiais.
Ele olhou desconsolado para ela, massageando a testa. Ela olhou feio para ele e se levantou. Ele pediu para levar os materiais, ela recusou. Na parte de fora de um dos cadernos, pendia uma etiqueta de identificação: Patricia Castro. Deu de ombros e voltou a cochilar, mas a testa ainda ardia.
Chegou no trabalho e contou a história para a dona Rosa, que fazia o cafezinho. Ligou o computador. A primeira coisa que fez foi ver as mensagens do seu Orkut. Por uma mera curiosidade, digitou Patricia Castro, São Paulo, na área de pesquisa. Duas páginas depois, lá estava ela, com a mesma calça jeans azul apertada e aquela blusa branca fininha de uniforme. A foto parecia ter sido tirada naquela manhã, porque ela parecia estar com a mesma maquiagem e com os mesmo cabelos castanhos presos. Milton ainda se perguntou se aquela maquiagem também fazia parte da indumentária exigida pela escola. Olhou as fotos, salvou algumas no computador, pensou em mandar uma mensagem mas não mandou. Fez logoff e foi trabalhar.
No mesmo dia, no final da tarde, lá se ia de novo o Milton ver seu orkut. Na lista de pessoas que visitaram o seu perfil, lá estava ela, e ainda tinha deixado um recado pedindo desculpas pela grosseria naquela manhã. Ele respondeu o recado.
Duas semanas depois marcaram um cinema. Ele na volta foi deixá-la em casa, e a casa era do lado da sua casa e ele não sabia. Passava os dias fora de casa e não conhecia nem mesmo seus vizinhos. Ela preferiu não voltar para casa e ficar na casa dele que três dias depois passou a ser sua casa. Agora que moram juntos a dois anos querem ter um filho. O Milton ganhou uma promoção no trabalho e comprou um carro. A Patrícia passou no vestibular e vai estudar Biologia. Sempre passam na frente do ponto final da lotação e se lembram com saudade do dia em que se conheceram. A melhor cabeçada de suas vidas.

Saudade - por Pablo Neruda

Saudade...


Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas a amada já...


Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...


Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...


Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Saudade - por Pablo Neruda

Saudade...

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas a amada já...

Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais... S
audade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: a
quela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.

Perfeita Imperfeição - por Handerson Pessoa

É verdade que não existem crimes perfeitos, mas esse aqui chegou bem perto. O Wagner, também conhecido como Japão, era um colega de trabalho a alguns pares de anos atrás. O salário de fome de duzentos e sessenta reais, na época, não dava nem mesmo para ele pagar o funesto aluguel, quanto mais cumprir com o restante de suas obrigações mensais.
A coisa chegou num ponto que começou a perturbar até mesmo as suas obrigações, é, bem, suas obrigações maritais. Recebeu cartão amarelo da mulher, teve que dormir na sala por quarto noites seguidas e quando voltou para sua cama, enfrentou um período de abstinência sexual da mulher.
Aquilo tinha que acabar, ele tinha que encontrar um jeito de arrumar dinheiro. Mas não conseguia outro emprego. Queria fazer um assalto, mas não tinha coragem e além de tudo, detestava armas. Pensou por dias seguidos, e num dia de bebedeira, encontrou a solução para sua tão malfadada sorte.
Então lá se foi o Japão para o boteco comigo, o Mauro e o Zezinho tomarmos nossa tradicional breja de sexta a noite. Conversa vai, conversa vem ele ouve alguém falar sobre alugar uma casa. A luzinha da idéia acendeu na cabeça dele. Mal sabia ele que pouco depois, outra coisa iria acender na cabeça dele.
O Japão falou com o indivíduo durante dez minutos. Pegou o telefone do homem e eu ouvi quando ele disse que ligaria no dia seguinte.
O plano era tão simples que parecia ridículo. O Japão pagava cem reais de aluguel. E alugou a casa que ele próprio já alugava, sem consultar a proprietária, pelo valor de duzentos reais! A idéia era genial. O Japão mudou-se com a mulher de madrugada, sem contar direito o plano. Ela relutou em ir, mas o Japão como era dado a ser valente, tirou o cinto e fez menção de acabar com aquela aleivosia. Ela parou no mesmo instante.
No dia seguinte, o Japão recebeu o dinheiro, e com os duzentos reais, alugou uma outra casa, pelos mesmos cem reais. Já tinha uma comissão. E foi nessa toada que ele permaneceu por seis meses, cada semana morando em um lugar diferente. Nem a polícia era capaz de encontrar o homem, porque ele não tinha residência fixa. Era um nômade. Um sem terra. Um Japão-ninguém.
A mulher se cansou de tanta mudança, mas adorava ter de novo um bom poder de compra. O negócio foi ficando rentável e o Japão já era agora um catedrático quando se tratava de negócios imobiliários. Saiu do emprego, e nos deixou com saudades. Saía cedo de casa, e deixava a mulher com saudades, enquanto ficava vadiando, perambulando pelas ruas, bares e botecos, procurando alguma alma incauta para malograr.
Um dia ele chegou em casa e quando abriu a porta teve a visão do Ricardo em seu quarto com sua mulher de comportamento acima de qualquer suspeita. Aquilo buliu com o juízo do Japão, e enquanto o sujeito corria com as calças na mão, a mulher apanhava feito uma condenada. Ficou toda machucada.
Ele parou, sentou-se no chão e chorou. Ela pediu perdão, ele concedeu. Ela viu que era fácil demais lidar com ele e disse que ia na delegacia da mulher, ele pediu perdão, ela concedeu. Viveram como Bonie e Clyde durante quatro anos, superfaturando dos inquilinos e subtraindo dos proprietários. Nunca mais a mulher reclamou.
Quando tinham já dinheiro suficiente para comprar uma casa, a mulher uma noite embebedou o Japão, pegou suas coisas e foi embora, junto com o Ricardo, aquele mesmo. Ao acordar, foi surpreendido pelo proprietário do imóvel postado ali junto à porta querendo o dinheiro do aluguel. Ele não tinha.
O proprietário chamou a polícia e levaram o Japão ainda semi-consciente. Ele mora agora numa delegacia, e responde pelos crimes de peculato, formação de quadrilha e furto qualificado. Diz que nunca mais vai fazer isso de novo, mas está mais conformado porque não está precisando pagar o aluguel.

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