O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Retrô

Passei o ano todo pensando em escrever esse último post do ano. Anotei, memorizei tudo que podia para poder relembrar depois, fazer aquela tradicional retrospectiva de um ano que com certeza foi o melhor e ao mesmo tempo o pior de todos. Dizem os chineses que ano que termina com 9 encerra um ciclo. E outro se inicia. Então agora que faltam poucas horas para o final do ano, estou sem vontade nenhuma de escrever esse post. Deve ser o ciclo teimando em querer ficar. Porque escrevendo eu me lembro de como o ano no plano amoroso foi fracasso sobre fracasso sobre fracasso. Eu vou me lembrar dos meses de reclusão e abstinência esperando uma distância acabar, uma distância que acabou por tão pouco tempo e voltou. Eu não vou dizer os nomes dos fracassos, é preciso manter a linha, jamais descer. Foi o ano dos "quase", dos "tomara" e algumas outras que atravessaram meu caminho mas que não conseguiram ficar. São estatísticas agora, apenas um número, algumas menos do que isso. Uma merda de ano no plano amoroso. O ponto alto (esse sim vale a pena lembrar) foram as viagens. Não importa se foram viagens de quinze dias, vinte, dois ou um bate-volta no mesmo dia. Todas elas tiveram sua história para contar depois. As melhores sensações do ano foram vividas na estrada, na busca pelo elemento surpresa, pela gana de saber o que vinha depois. Meu pulso sempre acelerado e minha mente sempre alerta pelas ruas do Rio de Janeiro. O cheiro de mar e a frieza da água nos meus pés enquanto eu andava pelas praias de Santa Catarina vendo o sol se pôr. O calor insuportável de Goiânia e de Atibaia. A tranqüilidade bucólica do centrinho de Itu e São Roque, todos tiveram lá o seu charme. E em meio a tantos acontecimentos, tantos desencontros, tantas paixões que se foram e tantas outras que talvez virão, eu me pego pensando em todas as promessas que fiz para o próximo ano e que sei que não irão se cumprir. Talvez eu faça uma viagem e não volte mais, ou talvez eu me case e sossegue o facho, talvez eu me canse e me refugio em um mosteiro até descobrir quem eu realmente sou, ou talvez eu pare de escrever, pelo menos por uns tempos. Enquanto isso eu continuo aqui, correndo, correndo e não saindo do mesmo lugar.


Feliz 2010 a todos.

Retrô

Passei o ano pensando em escrever esse ultimo post do ano. Anotei, memorizei tudo que podia para poder relembrar depois, fazer aquela tradicional retrospectiva de um ano que com certeza foi o pior de todos. Dizem os chineses que ano que termina com 9 encerra um ciclo. E outro se inicia. Então agora que faltam poucas horas para o final do ano, estou sem vontade nenhuma de escrever esse post. Porque escrevendo eu me lembro de como o ano no plano amoroso foi fracasso sobre fracasso sobre fracasso. Eu vou me lembrar dos meses de reclusão e abstinência esperando uma distância acabar, uma distancia que acabou por tão pouco tempo e voltou. Eu não vou dizer os nomes dos fracassos, é preciso manter a linha, jamais descer. Foi o ano da loira, da morena, da japa e da ruiva, e outras que atravessaram meu caminho mas que não tiveram competência para ficar. São estatísticas. Uma merda de ano no plano amoroso. O ponto alto (esse sim vale a pena lembrar) foram as viagens. Não importa se foram viagens de quinze, vinte, dois ou um bate-volta no mesmo dia. Todas elas tiveram sua história para contar depois. As melhores sensações do ano foram vividas na estrada, na busca pelo elemento surpresa, pela gana de saber o que vinha depois. Meu pulso sempre acelerado e minha mente sempre alerta pelas ruas do Rio de Janeiro. O cheiro de mar e a frieza da água nos meus pés enquanto eu andava pelas praias de Santa Catarina vendo o sol se por.

Que Chato!

Definitivamente, pior do que um domingo em casa é um sábado de manhã no trabalho. E quando é um sábado que teve feriado no dia anterior e todo mundo achava que ia prolongar mas que teve que trabalhar, aí o desespero é inevitável. De algum tempo para cá tenho desenvolvido uma insônia latente. Durmo no máximo quatro horas e mesmo assim somente quando os primeiros raios da manhã começam a dar o ar da graça. Nunca gostei de remédios, mas de algum tempo para cá eles tem se tornado meus amigos quase íntimos. Lexotan, Lorax, Valium, todos os que me desligam já que eu vivo constantemente em duzentos e vinte. Mas sábado de manhã eu trabalho logo cedo, e não posso me arriscar, então quando chega a sexta à noite, o pânico se instaura e eu já fico pensando nas oito horas de trabalho do dia seguinte, isso quando não são doze. Sábado é um dia feio, sem graça, completamente comprometido pelo trabalho. Sábado é dia das ex aparecerem (que inferno!), é dia de não ter nada para fazer depois, é um dia condenado. Pelo menos para mim. Quisera eu que todo sábado fosse como a última sexta, sempre um feriado. Daí eu poderia viajar naqueles ônibus antigos da Viação Cometa, aqueles que ficam parando de cidadezinha em cidadezinha enquanto eu vejo os passageiros entrarem e saírem até eu tirar uma soneca. E quando acordar do cochilo rápido, vou ouvir Paula Toller cantar As curvas da estrada de Santos, sentindo aquele vento no meu rosto e aquele cheiro que a gente só sente quando está na estrada a caminho de São Roque, ou passando por aquelas estradinhas vicinais que tem antes. Mas já que não dava para ser assim sempre, só ficar em casa curtindo minha cama quentinha já estaria de ótimo tamanho, pelo menos eu não estaria aqui gemendo de dor no joelho por ter caído do snowboard, nem com o braço latejando por causa do arco e flecha que teimava em roçar na minha pele, deixando apenas os hematomas para eu ter de lembrança. Espera aí, acho que eu posso me lembrar melhor vendo um perfil no Orkut do que escrevendo esse texto sem pé nem cabeça. Fui. Conectando...

O que não fazer em um feriado prolongado

Feriado na segunda ou terça-feira e ainda com um sol de rachar é o sonho da maioria de nós paulistanos. Seja para ir à praia ou à serra, as oportunidades são as mais variadas. Litoral, interior, comidinhas deliciosas, pessoas bonitas, lugares agradáveis, agitados ou tranqüilos, e é claro, trânsito caótico no início de quase toda viagem, tudo junto numa mesma cidade. O que é isso? Tradução de boas histórias para contar na volta para o trabalho ou de histórias de lamúrias e decepções? Depende de onde você for. Por exemplo, se você gosta de praia sabe que pode ter surpresas naquela água espumante de alguns litorais paulistas. Às vezes as surpresas podem vir em tamanho médio, ou grande, tudo depende da praia. Agora se você é assim como eu, um amante de esportes radicais, pode desfrutar de lugares ótimos para a prática de diversas modalidades. Epa, espera aí. Não é bem assim. Você tem carro? Não? Então preste atenção nessa dica. Atibaia é um lugar onde de tudo tem, desde que você esteja dentro de um carro e não seja domingo ou feriado, principalmente prolongado. Ir até esta cidade do interior paulista pode ser sinônimo de adrenalina na veia ou de muita raiva na veia. Afinal, com o terceiro melhor clima do planeta, era de se esperar que o transporte fosse mais eficiente. Se você vai de ônibus, deve saber que no domingo ou feriado, os ônibus locais são muito lentos, muito demorados e se você perder a paciência e resolver se locomover de taxi pela cidade assim como eu fiz, prepare o bolso. Tudo é longe, afastado do centro. Até meu bairro é mais movimentado do que aquele centrinho bucólico onde a pracinha matriz é o hot point do lugar. Se você quer ir para o portal dos pinheiros (isso mesmo, aqui é com letra minúscula) prepare-se para um enorme dose de paciência. A estrada é de terra, completamente esburacada, inóspita, afastada de qualquer tipo de civilização e se você estiver num taxi, reze para o condutor ser legal e querer voltar para te buscar, afinal, taxista nenhum quer ir até lá por causa do medo de assalto. E se você estiver no taxi do senhor de cabelos brancos presos num rabo de cavalo, vai precisar de um pouco mais de paciência, porque o mau humor é sentido em cada íon e elétron no interior do veículo. Ah então você é teimoso ou teimosa e quer arriscar? Ótimo, então não se esqueça de levar com você uma bíblia e um terço (se for católico ou simpatizante) e o mais importante, antes de entrar no veículo, faça uma oração, de preferência ajoelhado que é para mostrar fervor maior. Eu não fui até o fim, não tenho o dom da fé presente em minha pessoa, por isso desisti quando o taxista falou que não viria mais tarde. Voltei. E lá se foi mais de uma centena de reais na corrida. Cem reais, é a metade do vôo de paraglider. Outra coisa, se estiver em Atibaia num domingo ou num feriado prolongado, traga com você um laptop com modem 3G porque nenhuma lan house vai abrir as portas por lá. Leve um mapa com você (se for a primeira visita) porque a maioria das pessoas não sabem dar informação. Daí você pode estar pensando: esse cara está querendo queimar o filme da cidade? Então lá vai uma dica bacana: na hora de ir almoçar, escolha o restaurante Rei da Chuleta (esse sim com letra maiúscula). O atendimento é ótimo, a comida é sensacional, barata e a dona além de ser muito simpática tem uma voz belíssima. Aproveite também para ver o reality show das duas lésbicas se pegando no meio da rodoviária para quem quiser ver. Totalmente de grátis. Vale a pena conferir. Depois saia por perto procurando seu queixo, que assim como o meu deverá cair em algum lugar vendo aquela cena surreal. No mais, se quase tudo der errado como aconteceu comigo, aproveite para curtir a paisagem da estrada, porque é linda, desde que você já tenha saído de São Paulo. Essa sim, dá para salvar.

Refluxo

Eu tinha certeza que aquele não seria um sábado comum. Era véspera de feriado e eu estava ansioso para terminar logo aquele dia para poder cair na estrada novamente no domingo. Odeio finais de semana em casa, e aquela viagem havia sido programada desde o meio do mês, e tinha sido alterada no meio da semana. Para variar eu havia dormido pouco trabalhando por toda a madrugada e sabia que trabalharia ainda mais no sábado. Doze horas sem parar e ainda tinha trabalho extra no meio da noite. Será que eu não estava apenas correndo atrás de dinheiro? Mas eu não me importava, eu já estava acostumado com aquele volume de trabalho e de certa forma aquilo me fazia bem. Era bom saber que eu estava produzindo, um peão de volta ao chiqueirinho fazendo girar a roda a todo o vapor. Naquele sábado eu não tive que ficar olhando a cara de lua cheia da minha ex. Mas além de só pensar na viagem, naquele rapel maravilhoso e no vôo de asa delta que eu faria no dia seguinte eu pensava mesmo era como seria a minha noite. Ela com certeza seria utópica. Eu teria que ir trabalhar na casa de uma pessoa que havia feito parte da minha vida durante dois anos e que eu pensava que jamais poderia esquecer. Eu não precisava ir até lá, afinal, tantos outros podiam fazer aquilo no meu lugar, mas havia aquela inexplicável necessidade de provar alguma coisa para mim mesmo e então eu fui. Passei por todas aquelas ruas que eu conhecia de cor, tantas vezes eu havia ido até aquele bairro, mas em circunstâncias completamente diferentes. Apertei o botão do interfone e o porteiro do prédio me olhou com aquele mesmo olhar de um ano atrás, como quem diz: “eu sei quem você é, lembro de você aqui”. Ignorei o olhar porque jamais gostei daquele porteiro, sempre o achei um idiota. Eu precisava ver qual seria minha reação. Uma amiga havia me dito no meio daquela tarde que eu teria uma recaída e que não conseguiria me sair bem. Bato na porta mesmo aberta e sou recebido por um homem que aparenta alguns anos mais novo do que eu. Ele me olha de cima abaixo e parece saber quem eu sou, ou quem eu fui. Parece saber que já estive ali no lugar dele, e que já estive dentro da mulher dele na mesma cama que hoje é dele, mas a tempos atrás. Eu não estava ali como amigo e sim como profissional. Pego meu dinheiro, assino o recibo e ele me conduz a uma sala, me apresentando o local que eu conheço como a palma da minha mão. Então, ela vem, usando a mesma roupa de anos atrás quando eu passava as noites ali, mas tem algo muito, muito diferente. Ela está diferente. Eu estou diferente. E numa curta fração de segundo, me pego pensando o que farei quando a ver. E me assusto com a minha reação. Minha reação foi: nenhuma. Não senti raiva, não lembrei das desilusões, não senti aquele tesão incontrolável que eu sentia e quando ela vem e me abraça como um amigo que não vê a muito tempo, eu retribuo e apenas digo: “oi sumida, tudo bem?”. Nada mais, nada menos. Meu coração não acelerou, minhas mãos não tremeram, meu suor frio não veio. O que veio foi um monte de perguntas, que eu não me desdobro hoje para encontrar respostas. Era mesmo isso que eu queria a apenas um ano atrás? Valeu a pena tudo que eu havia passado tentando por dois anos e meio o que seu marido conseguiu em meros três meses? Será que eu senti uma pontinha de ciúmes por não ser eu quem estava ali naquela noite e em todas as outras anteriores? Não. Ciúmes não. Definitivamente não. O que veio foi uma leve sensação de alívio. De saber que não era eu quem estava ali. Como minha vida havia mudado tanto naquele curto período de tempo? A apenas um ano atrás era eu quem estava ali, sentado naquela cadeira onde fizemos amor tantas vezes, e naquela mesa onde tantas vezes amassamos documentos importantes com nossos corpos apenas sendo levados pelo desejo. E enquanto ela fala e aproveita para me contar como vão as coisas agora que o marido não está por perto eu me lembro do ditado que diz que o amor é cego. Tento me lembrar o que me fazia prender àquela mulher, mas eu não me lembro mais. E as conversas fluem de forma estranha, tanto eu quanto ela querendo fazer de conta que o passado não aconteceu, e que tudo não havia passado de um sonho, ou um pesadelo. Então, como homem bem educado e diplomático que tento ser, me sento na mesa da cozinha com aquela família que um dia eu imaginei que seria minha e escuto seu marido contar histórias e mais histórias, coisas que não quero nem preciso saber, mas penso que as vezes temos que fazer um cerimonial, incorporar um personagem, ou talvez nos travestir de algo que não queremos ser. O que eu estava realmente querendo ali? Nada mais importa, só quero sair logo daquele lugar. Não terei recaídas, porque eu não tenho mais coração. Não tenho mais sentimentos desse tipo a muito tempo e estou melhor assim. Nada de romantismo, nada de amores eternos, porque eu não acredito em amor. Não acredito em pessoas que nasceram umas para as outras e não acredito em um monte de coisas. Aperto o botão do elevador e solto um suspiro. Um suspiro que não sei bem explicar o que é, só sei que é bom. É bom porque eu não estou mais ali. É bom porque agora sei que tudo está superado, bem morto e enterrado no concreto denso do meu passado, junto com o meu coração. Saio para a escuridão da noite, paro numa esquina e fico olhando a fumaça do meu cigarro desenhando formas indistintas sob a luz da rua. Eu não me conheço mais. Eu não moro mais em mim.

Uma resposta

Há dois meses eu estava em viagem de férias na casa dos meus pais, e de repente me lembrei que quando eu ainda morava lá, havia no meu antigo quarto, uma abertura no forro de pinus, que dava acesso à fiação da casa. Coloquei uma cadeira por sobre uma mesa e removi a tampa, lá no alto havia ainda aquelas enciclopédias antiquérrimas do meu pai e uma caixa que eu havia colocado lá e nem me lembrava que existiam. Eu tenho a mania de arquivar tudo que eu vejo. Contas, cartas antigas, cupons de supermercado, ingressos de cinema, tudo. É um hábito antigo. E quando o mundo ficou digital, tudo foi arquivado em emails e discos virtuais: conversas de MSN, antigos emails, fotos e recados que as pessoas mandavam (e depois diziam que não tinham sido elas), tudo está devidamente registrado. Encontrei umas cartas antigas, eu tinha dezesseis anos na época, o ano era 1996. Eram cartas da minha primeira namoradinha, a Marina. Na verdade, a gente nem sabia o que era isso na época, então posso dizer que foi meu primeiro amor, minha paixonite de aborrescência. Anexado à carta dela com um clips, estava a minha resposta que nunca cheguei a enviar e agora não me lembro o porquê. A carta dizia que ela estava feliz por estamos juntos, e que nada nesse mundo iria nos separar, que ela queria envelhecer do meu lado, e ter filhos comigo quando chegasse a hora. Muito bonitinha a carta, confesso que novamente me emocionei. Por isso, agora, quase quatorze anos depois quero responder sua carta.

“Querida Marina*,

Só agora quase quatorze anos depois é que decidi dizer o que eu sentia por você. Você foi para mim o que eu achava que era uma namorada, era a menina que eu dormia e acordava pensando. Você despertou em mim um tremor novo, a primeira emoção do que mais tarde vi que chamavam "amor". E jamais me esqueci, do seu medo de altura quando passávamos por aqueles viadutos quando eu ia te pegar na escola, nem daquelas tardes que ficávamos na sua casa, conversando sobre tudo e sobre nada, e também não me esqueço daquela noite que seu pai chegou em casa e quase nos flagrou naquela maior pegação e eu tive que ficar escondido atrás da porta do seu quarto, até ele entrar no banheiro e eu escapar fugidio. Aquele foi um momento que ficou registrado na minha cabeça pelos últimos quatorze anos. Você nervosa com aquela blusinha cor creme mostrando os peitinhos cada vez mais excitados, seja pela pegação ou pelo perigo, nunca cheguei a saber. Nunca mais nos falamos depois disso Marina e então passamos a viver nos nossos mundos distantes e paralelos. Sei que deve ter sido feliz e que talvez tenha tido um monte de outras aventuras diferentes, embora jamais tenha se casado (sei porque um amigo me falou). Tenho saudade e inveja daquelas nossas tardes de 1996 onde tudo parecia tão calmo e tão à vontade e não tínhamos nenhuma das preocupações que hoje temos que ter, agora que nos tornamos adultos. Mas não reclamo, afinal, me casei, tive dois filhos e então me separei. Tive um monte de amores de todos os tipos imagináveis, mas acabei me conformando que minha sina era e sempre foi continuar só. Chorei várias vezes, de alegria, outras de dor, outras de desentendimento, mas acabei percebendo que essas lágrimas, se vão muito mais rapidamente do que imaginamos. Tão rápidas como aquela florzinha que um dia você me deu e eu embrulhei num lenço de pano, e que ficou guardada comigo durante quase dois anos, e assim que você viu, jogou fora imediatamente. Bons tempos. Beijo enorme e atrasado pra você.”

* O nome foi trocado, obviamente.

Cidade Maravilha

Sempre tive vontade de conhecer o Rio de Janeiro. Desde pequeno. A gente que vive em são Paulo sabe que quase não dá pra fazer muita coisa que saia do eixo casa-trabalho, às vezes, mesmo nos finais de semana. E quando o cara é como eu que trabalha que nem formiga, aí é que a coisa fica complicada mesmo. Mas naquele sábado não. Eu ia conhecer o Rio de qualquer jeito. Não importava se fosse sozinho ou acompanhado, com chuva ou sol, de ônibus, carro ou avião. Se fosse preciso, até com meu skate eu iria. Cheguei e a horrível temperatura de vinte e sete graus às seis e meia da manhã me recebeu de braços abertos. Entrei no hotel mais punk que encontrei, liguei o ventilador no máximo e me joguei na cama. Dormi três horas e levantei com a disposição de um atleta. Não tinha a menor idéia do que fazer ou de para onde eu deveria ir. Entrei num ônibus que vai para o Méier e me senti como Ed Motta. Desci no ponto do Maracanã, quando na verdade queria mesmo ir era para São Januário, reduto do meu Vascão. Visito o estádio ignorando a cara feia dos flamenguistas me olhando torto, eu com minha camiseta do São Paulo. O tempo está firme e agora quero ir para o Cristo. O segurança então me “ishplica” o roteiro e cinco minutos depois estou no metrô. Meu estômago dava voltas, meu nível de adrenalina lá em cima. Sento em um dos bancos do metrô, ao lado de uma loirinha linda. A mais linda que eu havia visto até então este ano. Ela me diz que se chama Cínthia e que mora no Leme, enquanto eu não paro de reparar aqueles olhos muito verdes atrás de um par de lentes com aro violeta. A conversa flui numa boa, mas é que nem naqueles sonhos que a gente raramente tem e se diverte; justo na melhor hora o despertador resolve trabalhar. No meu caso foi a estação. Quase resolvo ir até o Leme com ela e depois voltar. Mas minha cota de aventuras já tinha ido longe demais para um só dia. Salto me amaldiçoando por não ter pegado um telefone ou seu email. Tardiamente vem aquele “click” e eu volto para o vagão, mas o trem fecha as portas e segue em frente. Maldito. Perguntas ali, informações aqui e agora estou nos pés do Cristo. Entro numa daquelas vans do Cosme Velho e me jogo no banco de trás. Um grupo de quatro moças chega em seguida. Depois três franceses. Lá no alto, no Mirante, uma mão toca meu braço: “Moço tira uma foto da gente?”, uma delas me pergunta e eu obedeço prontamente. Elas se juntam numa pose e eu tento parecer gentil: “O que vão querer? Corpo todo? Só dá cintura pra cima?”. O tempo fecha e começa a chover. Caramba, logo agora? Chegamos lá em cima no Cristo e o que dá pra ver da Baía de Guanabara é apenas um borrão escuro do Pão de Açúcar. Nos decepcionamos mas o passeio tem que continuar. Nos despedimos lá em baixo no Cosme Velho e trocamos telefones. Mas meu queixo ainda estava caído por uma delas, que agora conversa comigo de um jeito tão fácil e tão à vontade que parece que já nos conhecemos há muito tempo. Coincidência ou não, as quatro entram no mesmo ônibus que eu. Eu já estava lá atrás quando ouço: “Handerson, venha ficar aqui com a gente”. Quase não acredito. Saímos dali e fomos para São Cristóvão. Ela se senta do meu lado no restaurante e todo mundo conversa e se diverte. Fotos, histórias, risadas. Ela quer saber o que significa os números tatuados no meu pulso direito e claro que eu ia fazer charme. Não conto. Tiramos fotos juntos, todos nós e agora está ficando tarde, está na hora de nos despedirmos de verdade. Desço na Candelária e sigo para o Hotel. Horas depois acordo na minha cama aqui na Zona Sul de São Paulo sem saber se tudo aquilo foi mesmo real ou se não passou de uma das minhas paranóias. Talvez um delírio.

Nota: Quero aproveitar para agradecer profundamente o pessoal do Rio, que me ajudou dando informações mais que precisas. Povo alegre, sorridente, caloroso, com sangue nas veias. Agradeço ao comandante lá no Maracanã que me “ishplicou” calmamente o roteiro para chegar ao “Crishto Redentor” umas três vezes com uma paciência de Jó, quando meu cérebro retardado não gravava muita coisa (gostaria de ter tirado uma foto com ele). Agradeço também à Cínthia, do Leme, que me auxiliou muito além de me proporcionar uma viagem maravilhosa no metrô. Ao segurança no elevador do Cristo, que esconde que torce pro Vascão pra galera não zoar e que pacientemente lidou com a minha câmera idiota, tirando fotos minhas com as meninas de Taboão da Serra que eu conheci lá no Mirante. E todos os que indiretamente me auxiliaram nesta viagem muito mais que utópica. Muito obrigado!

Farol vermelho

Coloco os pés porta afora e olho o brilho difuso da neblina. Olho para os lados, o carro já está parado lá fora, os vidros escuros. Me aproximo e o vidro se abaixa. Eu já estou sorrindo e então Cameron Diaz sorri e pisca pra mim, e em sete minutos estamos na porta da minha casa. Droga, não era a Cameron. O movimento de levar a mão ao celular é automático, mas sempre que preciso do meu ele teima em não funcionar. Ligo para meus amigos confirmando o show no final de semana, mas essa peste não tem sinal. Mas fica nesse inferno interminável de torpedos que não param de chegar perguntando tudo. Menos o importante. E eu ainda tenho que ficar respondendo. Mas hoje não. Quero que se dane o celular. Desligo, mas já ligo de novo. Eu saio do trabalho às dez da noite e ela sai do curso no outro lado da cidade na mesma hora. O telefone toca desesperado e eu atendo. Não dá pra dizer não. Vinte minutos depois o carro aparece. Não me importa se é o dela. Não me importa se é o do namorado, ou se é o da empresa. Nada disso me interessa agora. Só me importa sentir aquele cheiro de Angel de novo. E é assim que vamos. Aos toques. Às tiradas e colocadas de cinto de segurança a cada farol fechado, ignorando os olhares das pessoas ao redor, vendo a gente se pegar ali mesmo no meio da rua. E enquanto eu a ouço contar como foi o dia e como precisava me ver eu me pego pensando em quanto tudo isso me faz bem. No quanto essa mulher, esse demônio do bem consegue preencher cada lacuna, cada espacinho por mais diminuto que seja do meu ser. Que você, mulher que não conheço e não tenho certeza se quero conhecer, me faz ver as coisas de um jeito que eu nem sequer sabia que existia, mas que me tira do sério e faz meus pés saírem desse chão moribundo e decadente. Não sei se vamos nos ver hoje, ou amanhã, ou se não vamos nos ver nunca mais. Não me importa que seu telefone toque quando você está comigo. O que importa é essa falta. É essa necessidade latente que toma conta de mim. Essa falta que não é falta. É essa vontade de sempre ter uma surpresa, ora no final da noite, ora no começo. É essa busca incessante que me tira a concentração, me faz perder a razão, uma razão que já não me pertence mais. E enquanto eu vejo a noite passar eu penso em tudo e em nada. Desligo esse telefone que não para e finjo que durmo. Quero tudo e nada ao mesmo tempo. Eu quero sim. Quero ouvir você falar da minha barba mal feita, e quero ouvir você outra vez dizendo as palavras mágicas. Quero ver sua mão sem anel. E sua boca a me beijar com raiva e necessidade, como se fosse o último minuto do mundo. E é isso que me dá tanta segurança. A insegurança. É saber que não preciso de você. Porque nossas vontades são complexas e congruentes. Porque nossos desejos são semelhantes e infalíveis. Porque embora vivamos em universos diferentes, sempre encontramos um ponto de equilíbrio. Porque só queremos encontrar uma fonte, nosso “end”. E por mais que procuremos nosso meio termo penso que só chegaremos ao nosso ponto e vírgula, ou talvez ao nosso stand by onde podemos ficar esperando um pouco mais. Um minuto mais. Uma hora mais. Uma vida mais. Não tenho a menor pressa. O céu pode esperar. E eu também.

Aurora Boreal - parte II

Sentada sobre a tampa da privada ela lentamente começa o ritual de se despir. Tudo ainda gira ao seu redor e por isso ela fecha os olhos com cuidado para não sofrer ainda mais com a dor de cabeça que a assola. Quando está completamente nua, leva as mãos à parede negra de porcelanato e liga o chuveiro sentindo as gotas pesadas e quentes invadirem cada centímetro de seu corpo. Ainda há tempo de mudar de idéia e optar pela banheira, mas agora que recobrou os sentidos, tem medo de se afogar, o chuveiro é mais seguro. E lá mesmo ela fica por quase vinte e cinco minutos sentindo sua mente ser trasladada para um balneário onde há uma fonte inesgotável de energia e vida.

O cair da noite tornou o ambiente mais frio. Há um aquecedor de ar em algum lugar, mas o frio ao sair do banheiro não a deixa pensar direito. Precisa se aquecer. Caminha sobre o carpete branco do corredor se sentindo pouco melhor e apanha suas roupas na gaveta de um móvel. Agora as diversas camadas de roupa a fazem se sentir melhor.

Ana Paula volta à sua sala onde paira a baderna e olhando para todo aquele espetáculo, as mãos vão ao queixo, depois à boca. Já é hora de se livrar de tudo aquilo. Vai até o aparelho de som e em meio à torre de CD’s, ela escolhe seu preferido, que está no topo da lista. Suas mãos ainda tremem e após algumas tentativas malfadadas de abrir a caixa, uma pequena ponta rasga a pele fina de um de seus dedos. Um xingamento abafado. No armário do banheiro há uma pequena caixa de primeiros socorros e ela se sutura.

Um som toma conta da casa quando Lisa Stansfield começa a cantar Never Never Gonna Give You Up. Ana Paula fecha os olhos e lembra-se do sem número de vezes que viu o clipe quando a cantora sai nua da banheira cheia de água e sai andando por uma rua onde todos os olhos a observam. A música já virou seu mantra.

A música que está quase no fim agora disputa o som com o telefone que volta a tocar. Ela se lamenta por não ter desligado o aparelho, agora não sabe ao certo se deve atender àquela ligação, mas sabe que a essa hora da noite de sábado, nada poderá ser tão importante. Mas como o telefone não parasse de tocar, ela finalmente atende.

“Hello”, ela atende em inglês.

“Ana Paula Mendes Saviolli é você?” a voz do outro lado da linha pergunta, com uma leve sugestão de nervosismo.

“Quem está falando?”

“Meu nome é Amir, não nos conhecemos direito, mas é que eu quase te atropelei na noite passada e quando você correu, sua carteira caiu, então eu..”

“Seu desgraçado, quase me matou de susto e medo”, ela esbraveja, “não se pode simplesmente sair desse jeito por aí colocando a vida dos outros em risco, você é louco?”

“Por favor me desculpe, é que você surgiu assim de repente e eu não pude fazer muita coisa. Olha, me desculpe ter olhado em sua carteira mas eu precisava saber quem você era para poder devolvê-la para você”, Amir explica, na defensiva.

“Afinal quem o senhor pensa que é?”, ela fala de novo elevando a voz, “espera aí, o que está fazendo em Oslo?”.

“Eu sou fotógrafo, estou numa turnê expondo meu trabalho por toda a Europa. O Vernissage tem início na noite de amanhã, porque você não vem? Assim pode pegar sua carteira de volta e podemos nos conhecer numa circunstância melhor, o que acha?”

“Não quero te conhecer, só quero meu documento de volta, se não se importa. Não gosto de vocês e não dou a mínima para o que você faz, agora eu tenho que desligar”, ela diz num rompante de ironia e ignorância, tudo junto, todas as más características que se tornaram parte de seu comportamento hostil.

“Tudo bem Ana Paula, desculpe ter tomado tanto tempo seu. Estarei na galeria nacional de arte moderna a partir de amanhã às sete da noite. Não será difícil me encontrar, eu levo seus documentos para você. Eu estarei aguardando próximo ao quadro que se chama “A Lágrima”. É um quadro onde há uma mulher que tem um manto sobre a cabeça e atrás tem...”

O som de final de ligação deixa Amir confuso. Do outro lado da linha, Ana Paula agride o telefone, está agora tomada pela irritação e pelo ódio, mas no fundo sabe que precisa pegar de volta os seus documentos. Não vê outra alternativa a não ser ir até a galeria.

Respira fundo e decide que irá até lá no domingo à noite. “Entrar e sair”, ela pensa. Tudo poderá ser simples e rápido. Ela só precisa estar viva.

Ontem eu chorei com o Bruno - por Handerson Pessoa

Eu não sei o que acontece nesse mundo. Juro que não sei. E quando esse tipo de coisa acontece eu fico puto da cara. Meu amigo Bruno me ligou, aos prantos ontem porque a namorada o deixou. O Bruno é desses caras meio porra-loca. Conheceu a mulher pela internet no final do ano passado. Ela mora em outro estado mas o cara não ligou pra isso. Resolveu que a ama porque ama e ponto final. Ele me mostrou os emails que os dois trocavam, e também as mensagens de celular. Ela tentou vir aqui em São Paulo mas parece que algo deu errado. Ele tentou ir várias vezes mas ela não fez muito esforço pras coisas darem certo e ele viajar. O cara é tão maluco que colocou uma aliança no dedo e tatuou o nome dela no corpo. Nunca vi uma coisa dessas. Quando eu cheguei na casa do Bruno ele estava com o rosto inchado de tanto chorar. Finalmente ele me contou. Ela disse que recebeu uma proposta de emprego e por isso não queria continuar com ele. E por acaso isso é motivo? Sim, é motivo sim, quando a gente não ta mais afim. Eu já fiz isso uma vez e depois tive que comer o pão que o diabo amassou com o rabo e depois peidou em cima. Eu já fiz isso com uma pessoa que me amava de verdade. Por mais que eu falasse, o Bruno estava inconsolável. Ele me disse que falou pra ela que não tinha importância, que ele se mudaria pra poder ficarem juntos. Ela não quis (eu já ouvi alguém dizer isso pra mim também e fiz que nem ela). Mas Bruno, as coisas são assim mesmo, as pessoas que nos amam de verdade nunca nos abandonam. Um grande amor não se perde por isso. Se perder é porque não era amor, muito menos grande. Fui para casa, depois de chorar com o Bruno. Eu sei o que é ser rejeitado, ser trocado, eu sei bem. Sei o gosto de bunda que fica na boca quando a gente quer tanto uma coisa, quando a gente espera tanto, faz sacrifícios e a outra pessoa nem liga. Sim Bruno, eu sei. O que não sei é o que acontece com as pessoas hoje. Sem alma e sem coração, pensando apenas em si mesmas e em dinheiro, prestigio e posição social. Querendo subir cada vez mais alto e se esquecendo que maior será a queda. As pessoas deveriam estar satisfeitas com o que tem. Mas não é assim que acontece. As pessoas querem mais, e mais. E mais um pouco. Fico impressionado com a quantidade de ricos infelizes, os mesmos que querem sempre mais, mas não tem nada. São os que mais se suicidam, os que mais são traídos, os que não tem paz de espírito. Os humildes, todo domingo tem churrasco e pagode na laje, vivem sorrindo, porque sabem o que realmente importa na vida. Fica assim não Bruno. Você é bom demais pra sofrer assim. As coisas que perdemos sempre voltam pra gente, mais cedo ou mais tarde. Eu não sou a melhor pessoa pra dar conselho, afinal, também fui trocado, também estou sozinho, minha conta ta negativa no banco e eu já tive que recomeçar do zero tantas vezes que nem me lembro mais. Mas é nessas horas que a gente tem que levantar a cabeça, ligar o foda-se bem alto e seguir em frente. Mesmo com a esperança cortada na raiz. Amanhã será um dia melhor. Pode ter certeza. Estou do seu lado pro que der e vier.

Nimbus

Já que não estou mais nem aí pra esse celular, resolvo desligar de uma vez por todas. É nessa hora que ela liga, beirando às duas da manhã. Número desligado ou fora da área de cobertura. Não quero pensar em nada, não quero fazer nada, e que se dane a bagunça organizada da minha casa que eu não to a fim de arrumar. Só quero ficar aqui deitado no meu sofá enrolado no meu edredom azul nessa puta madrugada de sábado. Eu não me lembro de ter ido pra cama, nem sei como fui parar lá, mas abro um olho e acho que já são umas dez da manhã. Aperto as teclas do telefone, daí me lembro que desliguei. Puta merda, já é uma e meia da tarde e eu tenho compromisso as duas, com aquele velho amigo o Benedito. É ele ligando, remarcando pra outro dia porque ta chovendo. Ótimo, penso. Combino de ver o jogo do São Paulo na casa de uns amigos, assim eu me distraio, e volto a ser um pouco mais ser humano. Ela me liga outra vez dizendo que acabou de acordar. Talvez a gente saia mais tarde. O caminho é longo até a casa dos amigos, parece não chegar nunca. Mas chega. Festa. Festa. Festa. Resolvo abandonar o celular jogado numa mesa que agora não sei onde é. É um daqueles dias que não estou suportando o cricrilar do aparelho dizendo que chegou mensagem. Não tenho muito caráter com o celular. De dia quero que ele se foda, mas a noite quero que ele exista e me faça companhia. O telefone toca desesperado e alguém vem me entregar, já são oito da noite e eu tenho que voltar pra casa. Mas ela quer me encontrar. Eu a quero encontrar. Marcamos num ponto escuro da noite gelada e quando eu entro naquele carro, sei que algo vai acontecer. Não sei como, não sei quando, mas vai acontecer. Vagamos sem um rumo certo até pararmos lá no estacionamento superior do Shopping Ibirapuera, de onde podemos ver uma parte da cidade, e os aviões que passam raspando por sobre nossas cabeças. Ela está linda, eu penso, naquela roupa preta cheia de camadas, e anda desfilando um sem número de predicados. Bons predicados. O vento que sopra lá em cima é gelado, mas isso agora não importa. As nuvens, num estágio entre Nimbus e Stratocumulus fazem o céu ficar amarelado e cinzento ao mesmo tempo. À direita, a luz dos faróis de um avião atravessa o céu, junto com aquele barulho, como se o céu estivesse parindo aquela aeronave. Ela olha, eu olho. Ele se aproxima. Passa a poucos metros das nossas cabeças, e quando ela vira pra ver a rota que ele está, nossos olhos se cruzam, nossas mãos se tocam e nossas bocas se fundem numa só, deixando o resto do mundo ali, embaixo dos nossos pés, como se mais nada existisse. Saímos de órbita. Nimbus, Cumulus, Stratus. Mesosfera, Eletroesfera. E é isso que me deixa ainda mais na sua. A incerteza. O elemento surpresa. Se ela vai ligar amanhã? Não sei, não quero saber e não tenho raiva de quem sabe. Não tenho raiva de ninguém. Não tenho raiva das pessoas que já passaram pelo seu corpo, não quero degolar quem talvez ainda passe e tampouco me chatearia pensar que talvez muitas ainda passarão. Não me importa se você vai ficar meia hora ou uma hora inteira. Não me importa se você gosta mais ou menos de mim ou por inteiro. Nada me importa, a não ser o desejo de te empurrar naquela cama e experimentar de novo aquele movimento meio ponto e vírgula que você faz. Não sei explicar. Não sei o nome de ninguém da sua família, não sei se quero conhecer seus amigos, não preciso que você me abrace depois e não faço questão de ser o homem da sua vida. Não tenho medo de ficar com cara de idiota ou de gritar muito alto. Não tenho medo de nada, afinal, a gente só tem medo do que a gente ama. Se me der sono eu durmo, se me der vontade de falar um palavrão alto, falo. E o mais fantástico de tudo é que já que estou tão à vontade, já que meu cérebro louco não está vivendo nem no passado e nem no futuro e apenas no presente do seu corpo quentinho e cheiroso e já que nada em mim dói porque nada em mim sonha... Eu nunca senti tanto prazer em toda a minha vida. Prometi não tentar entender e apenas sentir, sentir mais uma vez.

Para acordar gente grande



Já fazia cinco anos que o Valdivino namorava a Roseli. Cinco longos anos. Debaixo do céu só existiam aqueles dois. Era “meu amor pra lá, meu amor pra cá”. Chegava a dar enjôo. Igual àqueles enjôos que se têm quando se come doce demais e não dá nem pra olhar para o doce por dias. Ficar perto daqueles dois era uma prova de resistência e paciência. A todo lugar que se olhava, lá estavam os dois naquela moto branca e vermelha, e o casamento já estava quase saindo. A todo mundo que perguntava, a resposta da Roseli era sempre a mesma, que ele era o único que a entendia, o único que importava e que os dois haviam nascido um para o outro. Um dia, não me lembro qual, mas o ano era 1992, o então ilustre presidente da república na época, Fernando Collor fez o favor de lançar um novo plano econômico e com isso, o dinheirinho suado dos dois, desvalorizou e muito. Mas um amigo em comum dos dois soube tramar um golpe que iria quebrar a banca. Em questão de algumas semanas, esse “amigo” (diga-se de passagem, que era apaixonado pela Roseli), ganhou rios de dinheiro. Comprou um carro novo, uma moto mais bonita e potente do que a do Valdivino e de quebra comprou um apartamento. Tudo aquilo chamou muito a atenção da Roseli, que logo tratou de ir falar com o “amigo”. Ele não perdeu tempo, e em meio a tantas oferendas, ela não resistiu e terminou com o Valdivino, que ficou completamente baratinado com tudo aquilo. Chorou dias e noites seguidas, pediu, implorou, suplicou para que ela voltasse, mas ela estava irredutível. Como ela poderia dizer não a tanta fortuna? Será que ela era tão louca de ainda continuar com ele, que não tinha nem onde cair morto, só com aquela moto? No Brasil, preto e pobre não tem muita chance na vida, e foi nisso que ela pensou quando terminou com ele. Os dias se passaram, e o coraçãozinho do Valdivino ia cicatrizando. Não foram poucas as vezes que vi meu amigo chorando disfarçado lá no escritório, olhando para a foto dele e da Roseli no porta-retrato que ele ainda teimava em guardar. Nós, seus colegas de trabalho tentávamos reanimar o cara, mas só ele poderia decidir quando sairia daquele buraco. Um dia o vimos no fundo da casa, que era onde o escritório de contabilidade funcionava na época. Estava agachado perto de um montinho de terra com as mãos sujas. Estava enterrando a foto dos dois. Enterrou a Roseli pra sempre. Voltou com os olhos vermelhos e não disse palavra. Seis meses se passaram desde aquele dia, e quando ele já estava curado, aconteceu algo que nenhum de nós, seus colegas de trabalho imaginamos. A Receita Federal descobriu o golpe do tal “amigo” e tomou tudo que ele tinha. Ficou pobre-pobre-de-marré-de-si outra vez. A Roseli? Óbvio, foi lá no escritório pedir desculpas para o Valdivino, que ouviu tudo sem nada dizer. Da salinha do lado dava pra ouvi-la dizendo: “A gente tem que gostar das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm”. Ele não quis saber, e dessa vez foi ela quem saiu de olhos vermelhos. Ele terminou a casa que tinha começado a construir, comprou um Escort 93 e outra moto. Ela ficou na casa dos pais sem nenhum dos seus dois amores, e o “amigo” após entregar tudo, ainda teve um processo nas costas, e preso ficou por três anos. Um dia no carnaval de 1993, fui acordado pelo meu pai, às seis horas da manhã de um domingo. O Valdivino havia falecido em uma festa de carnaval numa cidade próxima. Senti meu estômago dar voltas. Quase todas as pessoas que eu amei e que partiram eu soube pela manhã, a primeira notícia do dia. Meu amigo Valdivino, minhas amigas Miriam e Marie, minhas duas avós. Pra sempre sentirei saudades do meu amigo. Lembrarei sempre das vezes que ele me dizia que devemos sempre dar valor às pessoas que nos amam, porque elas podem não estar mais aqui, numa fração de segundos. Nascemos sós, morremos sós. O que nos cabe é o que fazer com o tempo que nos é dado. O Valdivino teve que amar para saber o que era amor, a Roseli teve que sofrer a dor para saber a mesma coisa. E você? Dá valor às pessoas que te amam de verdade?

Angelicus

Seu primeiro presente foi um nome de anjo: Anyel. Amava o próprio nome tanto quanto a si mesma. Nome de anjo, beleza de anjo, ternura de anjo. Agora lhe faltavam as asas tão somente. Asas aladas para poder voar, para sombrear e para proteger. Para aconchegar, amparar e abraçar. E as asas começaram a aparecer numa tarde quente pouco depois que seus pais se separaram. A desilusão, a frustração e a sensação de impotência ante aquela cena da qual jamais se esqueceria, faria parte da sua vida angélica para sempre. No começo, ela quase não percebeu. Parecia um caroço, um nódulo em suas costas e até pensou em contar para a mãe, mas a mãe continuava numa tristeza só. Preferiu continuar em seu silêncio. E assim, pouco a pouco suas asas de anjo foram surgindo, deixando-a com as feições de uma fada madrinha, e já era difícil esconder aquele volume. As grandes asas se abriram completamente no instante que gerou a filha, sua única. Asas anguladas, brancas e bem arqueadas. Conseguiu outra vez esconder de todos aquele milagre. Por muitos anos. E durante todos esses anos Anyel voou por terras, mares, bosques, planetas e eternidades com suas asas de anjo. Lá de muito baixo as pessoas a viam e se diziam: “que pássaro esquisito!” E continuou voando por lugares onde apenas ela sabia onde ficava. Estava feliz por tudo que tinha ganhado até ali: seu nome, suas asas e uma filha. Apenas faltava um igual. Sentiu falta, chorou sozinha quando não pôde voar, chorou quando tantas vezes foi enganada e chorou quando despencou no abismo negro da dor quando seus medos se tornaram reais, quando seu casamento acabou, e agora com suas asas queimando em fogo vivo ela rodou e caiu, não encontrando mais o chão. Bateu com força na laje fria e cortante da dúvida e da desesperança. E lá de baixo, onde parecia não haver mais fundo, ela começou a se lembrar das asas, agora danificadas. Forçou e forçou, mas o movimento ainda era tão curto, quase imperceptível. Meses se passaram até que as asas voltaram a se movimentar. Alçou vôo e voltou à superfície. Numa noite conheceu alguém por quem se apaixonou. E foi amada, correspondida e adorada. Sentiu-se outra vez feliz, completa e realizada diante de tantas confirmações e afirmações daquele rapaz. Apenas não sabia como contar a ele sobre seu milagre, suas asas, sua benção que muitos achariam uma maldição. Então uma noite ela resolveu contar, sabendo que poderia perdê-lo ali mesmo, para sempre, dependendo da reação do rapaz. Mas ele a amava, disso ela tinha certeza. Ele a abraçou forte quando a viu e percebeu algo estranho em seu olhar, ela parecia triste, querendo dizer algo.“Preciso te contar uma coisa, na verdade preciso mostrar”, ela disse. Ele lhe deu um beijo apaixonado, o mais apaixonado que ela jamais tivera em sua vida angelical. Anyel sentiu-se segura, protegida e amada e num movimento, abriu completamente suas asas brancas. Olhou para ele no fundo daqueles olhos negros, mas ele não se assustou, nem sorriu nem chorou. Ela sorriu para ele e ele sorriu de volta. Em seguida pegou na mão dela e apenas lhe disse: “vem comigo”. Abriu suas asas também e voaram para bem longe dali.

Silêncio!

Silêncio, psiu, nem um pio. Não vou dizer mais nada. Se ela não ligar, eu é que não vou cometer esse desatino. Outro não, por favor. Ela não veio, depois de prometer na segunda, na quarta, e acho que na sexta também. E depois que já havia passado das nove da noite é que resolveu dar o ar da graça, como se nada tivesse acontecido, como se minha opinião e o meu sentimento não valessem nada. É por isso que eu não vou sorrir, não vou perguntar se está tudo bem, por mim que se dane eu não ligo. Não vou perguntar como foi o dia e se o cachorro comeu, se a tia enfartou, se o primo bebeu além da conta, se alguém surtou. Não me interessa. Da minha parte não vou ligar, não vou perguntar nem quê nem por quê. Também sei me fazer de difícil, tenho meus momentos. E quando teimo, nem mesmo uma aquariana vai me fazer mudar, nem desemburrar, nem falar. Silêncio. A chuva teima em cair. Estou no meu trabalho, quando a vejo chegar. Ela me olha e eu retribuo o olhar, um olhar qualquer, o mesmo que ofereço a um desconhecido na rua ou alguém que me pede uma moeda. Ela diz oi e eu repito. Oi. Nada mais. Tá achando que é fácil assim? Silêncio, silêncios, ausência completa de ruídos. Não ligo se teve que resolver um milhão de problemas e por isso não deu tempo de vir, mesmo que tenha acordado à uma da tarde ou às seis da manhã, porque na noite anterior teve festinha (?) e eu, claro, não fui (convidado). Não me importa se a festinha era de família, ou se estava chovendo quando chegou aqui. Não me importa se o novo emprego começa na próxima segunda, ou se a chapinha estragou, ou se a unha lascou, ou se o cachorro morreu, ou se a mãe passou mal, ou se as visitas demoraram a ir embora. Nada disso me interessa. É esse o motivo do meu desdém. É o motivo pelo qual não estou nem um pouco afim de discutir, falar, causar. Silêncio, abstenção voluntária de falar, pssssiuuuuu, cale essa boca. Não quero saber se tem motivos pra clandestinidade, ou se alguém não vai entender, que se dane o resto do mundo que não ta nem aí para nem um de nós, nem eu, tampouco ela, esse mundo de perversos, ignorantes, e filhos da puta, que não estão nem aí desde que pague suas contas e limite-se a balançar a cabeça para algo ou alguém só porque é o que todo mundo faz. Quero meus direitos, apelo para o meu direito de ser ouvido, de ser abraçado, de ser acalentado. Vida real, abaixo o virtual. Coisa viva, palpável, calor, humor. E enquanto ela insiste em continuar com as mensagens de texto, que nada mais são do que formas anônimas de esconder o que se realmente tem pra dizer, eu me canso, meus dedos já não suportam o toque desse teclado duro, chato e feio. Meus dedos se calam, meu silêncio grita. Quero som, ela imagem. Quero real, ela virtual. Quero junto, ela... (o que ela quer mesmo?). E no meio de tantos disparates, no meio de tantas desinteligências começo a me perguntar o porquê de tudo isso. Chega! O telefone vibra, que droga! Pare de me mandar mensagens. Tá me achando com cara de Twitter? E assim, enquanto eu me desabo em verborragias, e nessa catilinária que nada tem de preponderante que apenas traz aquela vontade interna, incontrolável de sangrar e me desesperar, ela se mata de tanto rir da minha desgraça. Eu me calo. Nem um pio.

Quem matou Rita Maria?

De acordo com a previsão meteorológica para a noite de domingo, três de maio, a mínima deveria ficar entre doze e a máxima em dezoito graus. O outono havia chegado e com ele, as frentes frias. Eu havia passado o dia com meus filhos, combinando a festa de aniversário do mais velho, que seria na quarta-feira próxima. Já passava das dez da noite, e eu queria desesperadamente ir para casa. Meu joelho doía horrores e meu pé direito lancinava com um machucado feio.
Eu estava a caminho de casa, lendo “The bone collector” completamente alheio a tudo e a todos ao meu redor. Paramos em um farol vermelho e assim que ergui os olhos para me situar eu vi. Ela estava sentada à porta de uma igreja católica, com um bebê no colo e outra criança que a julgar pelo tamanho, não devia ter mais que três ou quarto anos. A mãe usava uma jaqueta jeans muito suja, de uma cor que outrora fora branca.
Apertei o botão pedindo parada. Aproximei-me da mulher que aparentemente estava dormindo. Como os sem teto conseguem dormir em meio a tanto barulho e ao relento? Antes que eu dissesse qualquer coisa ela abriu os olhos. Os que vivem nas ruas não têm sono tranqüilo.
Quando falei a ela quem eu era, o rosto dela se iluminou. Ela agradeceu pelo meu ato alguns meses atrás enquanto eu apenas a fitava envolvido em quase completa desesperança. Observei a quantidade de coisas que ela carregava. Não era a primeira vez que eu via aquela cena. Na verdade as cenas de tanta pobreza nunca me saíram da cabeça desde que eu deixara a Missão Redentor, poucos meses antes.
Pedi para que ela não saísse dali. Eu tinha que fazer alguma coisa. Ignorando a dor, fui até um supermercado Extra que havia a uns trezentos metros dali. Eu tinha vontade de comprar muita coisa, mas pensei em como eles poderiam carregar tanto.
Numa cantina no interior do supermercado comprei leite com chocolate e a atendente o colocou num recipiente grande para viagem e no Mc Donald’s comprei quatro lanches grandes com refrigerante, tudo para viagem.
Quando voltei, a criança mais velha havia acordado e quando me viu, desviou o olhar logo para o saco pardo com seu jantar. Eu havia comprado também um pacote de fraldas que daria para agüentar até o dia seguinte quando eu iria digitar ferozmente no teclado de algum computador em busca de uma solução para aquela família ter um mínimo de dignidade.
A jovem mãe olhou para mim com lágrimas nos olhos. Aquela cena já havia acontecido outras tantas vezes e mais uma vez me cortava o coração. A criança mais velha se chamava Lorena e depois de algumas perguntas, ela seria minha amiga pelo resto da vida. A mãe se chamava Rita Maria, ela me disse já abocanhando outro pedaço grande do sanduíche. “Para onde você irá amanhã?”, eu quis saber. Mas ela não tinha a resposta.
Combinei com Rita de encontrá-la no mesmo lugar, no mesmo horário na noite seguinte e ela aceitou. Eu era agora um homem com mais uma missão. O frio estava ficando pior principalmente ali às margens do Rio Pinheiros e eu não hesitei em deixar com elas meu agasalho acolchoado, que amenizaria o frio pelo menos um pouco.
Era tarde da noite e eu precisava voltar para casa. Meu joelho doía muito e eu queria acordar cedo, faltar à faculdade a fim de encontrar uma solução para Rita, Lorena e Luana, uma solução, por menor que fosse.
A maior parte dos meus cobertores, lençóis e edredons eu havia enviado para Santa Catarina quando a última enchente assolou a cidade, mas eu ainda tinha um cobertor reserva e um travesseiro que iria substituir os de Rita. Enrolei e coloquei numa sacola grande.
Dormi pensando naquela pequena família e em como estariam naquela madrugada. Assim que o dia amanheceu fui mais cedo para o trabalho fazer pesquisa. A manhã estava congelante e no noticiário, o repórter falava sobre a madrugada mais fria do ano. 5,1º C. Fechei os olhos e respirei fundo outra vez.
O trânsito estava caótico às sete e meia da manhã, nenhuma novidade àquela hora para quem mora em São Paulo. O céu cinza escuro fazia parecer noite, por isso as luzes dos carros de polícia eram visíveis de longe. Minha paciência com transito é bem curta, por isso desci e resolvi terminar o caminho à pé, o vento entrando pelo meu nariz como pequenas lascas de vidro.
Meu coração quase parou quando eu vi as lonas pretas a cobrir os corpos ao lado dos sacos e cobertores velhos perto de um pacote de fraldas e alguns sacos pardos do Mc Donald’s. Eu não conseguia andar, falar ou pensar. Não sei como, mas me aproximei e perguntei o que havia acontecido. Um policial me informou que não havia sinais de violência, tinham sido vítimas do frio.
Eu queria ver aqueles rostos mais uma vez, mas não conseguiria. Sentei num degrau e com as duas mãos na cabeça me desesperei. Vazio, insosso, etéreo. As cenas da noite anterior voltavam como fantasmas a me atormentar e elevar minha culpa.
Levantei-me e voltei para casa. Minha vida havia mudado drasticamente nos últimos meses e estava indo rápido demais. Há apenas dois meses eu havia encontrado Rita Maria no centro, perdido-a de vista e a reencontrado outra vez. Estava completamente perdido em pensamentos. Eu não podia pensar no futuro, o passado ainda estava acontecendo.

Someday

Algum dia, antes do final eu ainda volto. E quando voltar, eu vou de novo andar pela Avenida Afonso Pena em Belo Horizonte e dar uma volta no Shopping Eldorado. Vou de novo de ônibus de Goiânia a Brasília só para ver as luzes do Conjunto Nacional e depois andar pelo Eixo Monumental para ver a decoração de natal, comprar de novo um DVD no Alameda Shopping e jantar no Xique-Xique, aquele restaurante ótimo da Asa Norte e em seguida dormir no Olimpus Hotel. Quando eu voltar, eu vou ver dar meia noite na rua AR-1 no bairro do Aruanã II em Goiânia, ouvindo Alanis Morissette cantar "Ironic" enquanto uma estrela cadente risca o céu. E depois vou jogar bilhar com meu tio para em seguida cortarmos a cidade naquela moto azul dele. Eu vou sair numa segunda-feira de manhã fria e chuvosa e vou entrar num ônibus lotado que vai do Socorro ao Largo São Francisco em São Paulo e vou ficar bem no centro da articulação, lendo o livro Mente Assassina (P. D. James) e ouvindo ao mesmo tempo a britânica Dido cantar "Slide" num aparelho de MP3 e depois me molhar na chuva quando eu descer na Vinte e Três de Maio, no bairro da Liberdade. Quando eu voltar, eu vou de novo dormir no Hotel Filadélfia no quarto trezentos e treze com alguém que eu ame e depois vou ver os aviões aterrisarem no Aeroporto de Congonhas, lá em cima, da garagem do Shopping Ibirapuera. Eu vou comprar uma pipa em Taguatinga, vou ver o dia amanhecer em Frutal e vou jantar uma tábua de frios com vinho no restaurante Mezalluna em Goiânia. Vou ver a festa de final de ano na Bahia outra vez. Vou ouvir uma rádio AM em Uberlândia porque meu walk-man caiu e não pega mais FM. Antes que acabe eu vou de novo ver todos os meus amigos, os que já se foram e os que ainda são. Eu vou dar um abraço na minha amiga Marie Burke, quando ela estiver usando aquela camiseta vermelha horrível do Vila Nova. E vou comer os bolinhos de chuva com chá mate da minha mãe num domingo chuvoso às quatro da tarde, para depois dormir no colo da minha avó ouvindo as histórias dela. Eu vou dormir tarde gravando músicas que só passam de madrugada na rádio. Vou tomar um porre com o Ricardo numa virada de ano na casa dele. Vou caminhar pela pista de cooper perto do estádio Serra Dourada e depois vou ficar sentado, só olhando o sol se pôr enquanto eu empino um avião de isopor que minha mãe comprou pra mim na feirinha de sábado. E depois, eu vou esquecer que eu cresci, e vou voltar a ser criança e tomar Pepsi naquelas garrafinhas com tampa de metal, comendo bolacha waffle que meu pai comprou pra mim. Vou ler uma história do meu livro de português da segunda série e depois vou dormir das três às cinco da tarde porque minha mãe está mandando. Eu não quero dormir agora, mas se o sonho estiver bom, por favor não me faça acordar, me deixe sonhar.

Convivendo com as diferenças

O que constrói o caráter de uma pessoa? As diferenças que ela tem em relação aos demais? Ou será que são as semelhanças? A todo instante somos bombardeados por comentários, insinuações e comportamentos sobre nossas diferenças em relação aos outros e outras tantas vezes pelas semelhanças. Sejam elas diferenças culturais, étnicas, religiosas ou sócio-econômicas.
Em pleno século vinte e um, algumas pessoas ainda não aprenderam a lidar com essas diferenças e isso nos remonta a idades mais primitivas quando se seguia um padrão e tudo o mais era considerado abominável, estapafúrdio. Viver em sociedade implica em aprendermos a respeitar opiniões e comportamentos que por vezes podem nos parecer medíocres, anacrônicos aos nossos próprios princípios.
Deixar fluir as diferenças, com respeito e sem imposições é o que nos torna cidadãos aptos a viver em grupo e não marginais sociopatas, incapazes de aceitar padrões diferentes dos seus.
Essa não aceitação é que cria o recheio do nosso cotidiano. O filho que matou o pai porque o pai não aceitou a sexualidade do filho. O jovem que se suicida porque os pais não aceitaram que ele fosse ator e tinha que ser um médico ou advogado, porque essa é a tradição da família e acima de tudo, onde já se viu falar que ser ator é profissão? Isso é coisa pra gay ou vagabundo. A filha que agora aparece nas páginas de desaparecidos já que fugiu com o namorado porque nem seus pais e amigos aceitaram o fato de ele ser negro.
O desrespeito pelas mudanças de paradigmas é o que provoca ainda mais desrespeito. E tudo vira uma bola de neve, quando idéias novas batem às testas de ferro dos não maleáveis, dos intolerantes e intoleráveis, os chamados senhores da razão. E acaba por afogar conceitos bons e atitudes mais superlativas, que agora ficam enterradas debaixo do cimento frio da ignorância, do ódio, do desrespeito e das diferenças, ou da falta delas. O mundo será um lugar muito ruim de viver se for baseado em desrespeito às diferenças, a não adaptação às mudanças de ideologias, comportamentos e preconceitos.

Os velhos caminhos

As ondas trovejantes estao me chamando para casa a você
O mar batendo esta me chamando para casa a você
Sobre um novo ano escuro esta noite
Sobre a costa Oeste do mundo
Eu ouvi sua voz cantando
Seus olhos dançaram a canção
Suas mãos tocaram a melodia
Foi uma visão diante de mim

Nós sentimos a musica anterior e a dança conduzir adiante
Assim como roubamos para longe a margem do mar
Nós cheiramos a agua tão salgada, sentimos o vento em nossos cabelos
E com tristeza você hesitou

Repentinamente soube que você teria de ir
Meu mundo nao foi seu, seus olhos assim me disseram
Ainda agora isto estava aqui eu senti as encruzilhadas do tempo
E eu só quis saber por quê

Assim como lançamos nosso olhar fixo nas cambalhotas do mar
Uma visão chegou diante de mim
Das causas trovejantes e asas batendo
Nas nuvens acima
Assim como virou-se para ir ouvi você chamar meu nome
Você foi igual a um pássaro numa gaiola batendo asas a voar

"Os velhos caminhos estão perdidos" você cantou assim
como voou
E eu só quis saber por quê

O preço do desejo

O telefone celular de Augusto Pena tocou exatamente as quinze para as quatro de uma tarde de sábado. Era o marido dela. Mas Augusto não sabia. Como também não sabia que na relação de amantes que Francine possuía, ele era o número dezessete. E essa lista iria aumentar a cada final de semana.
Atendeu. E por vários minutos ouvindo a voz do outro lado daquele fatídico e malfadado sinal, Augusto soube da verdade, e muito mais que ele não queria saber. A voz contava detalhes dos encontros amorosos entre ele e Francine. Desde a época em que ela jurava pelo próprio filho que Augusto era o único homem da vida dela e nada mais importava. Tudo não havia passado de uma grande rede de mentiras.
Uma hora e doze minutos depois, Augusto desligou o aparelho. As lágrimas não cessavam. Pareciam ter vida própria, simplesmente não paravam de verter. Aquilo não iria ficar assim.
No dia seguinte, abandonando emprego, tudo e todos, ele cruzou o país a bordo de um Boeing e sua próxima parada foi em Buenos Aires onde passou a morar. Mas no fundo de sua alma sabia que um dia iria voltar e resolver aquele assunto inacabado ao seu próprio modo. “Uma vendeta”, ele dizia em alto e bom som para quem quisesse ouvir.
A vingança começou numa tarde de domingo, mais precisamente às cinco e meia da tarde quando o vôo JG3046 partiu de Buenos Aires em direção à Guarulhos-SP. Já fazia doze anos que Augusto havia saído de seu país com o coração ferido e partido, e até aquele momento, não cicatrizado. A aeronave taxiou na pista e ele desceu. Tinha uma missão pela frente.
Durante uma semana a seguiu. Tudo ali era vagamente familiar. Os horários, as saídas, os lugares. Estava do mesmo jeito como havia sido a doze anos atrás.
Com uma identidade falsa, Augusto alugou um veículo, pagou à vista e estacionou a alguns metros da casa do marido de Francine. A noite caía rapidamente e a chuva fazia a escuridão chegar bem mais rápido do que o esperado. De dentro do carro ele viu os três saírem. Primeiro ela, depois o filho e em seguida, o marido. Ligou o carro e a caçada havia começado.
Duzentos e trinta quilômetros depois, os carros estavam em uma auto-estrada, um lugar deserto. Augusto ultrapassou o veículo e a menos de dez metros e a cento e sessenta quilômetros por hora, ele sabia que o momento havia chegado. Passou a mão no cinto de segurança e em seguida assegurou que o encosto para a cabeça estava seguro. Respirou fundo e sem pensar, pisou com força no freio e puxou o freio de mão ao mesmo tempo.
Com a inevitável batida, Francine e o marido foram arremessados para a frente mas o cinto de segurança evitou o impacto das cabeças contra o painel. A fumaça saía sem parar.
Augusto, afastando o air-bag de sua frente, ajeitou a arma por debaixo do blazer preto que estava usando, abriu a porta do carro e saiu. Olhou no interior do veículo e após checar que todos estavam desacordados, cortou o cinto de segurança das suas vítimas. Carregou os três até o porta-malas do carro que havia dirigido.
Olhou ao seu redor e nem uma viv’alma passava por aquela estrada àquela hora da madrugada. Entrou novamente em seu carro alugado e dirigiu mata adentro. Quatrocentos metros depois parou, voltou correndo até o outro carro, onde antes estavam as vítimas e empurrando com a pouca força que restava em Augusto, conseguiu levar o carro amassado mata adentro.
Abriu o porta-malas e os três estavam ainda desacordados. Retirou um a um, amarrou todos e com uma pá, cavou muito e profundamente o solo afofado pela chuva e não parou até chegar à nove metros de profundidade.
Francine estava acordando. Sua cabeça latejava. Em seguida seu filho acordou e por último o marido. Francine tentou gritar, mas não conseguiu. Sua boca e a de todos os outros havia sido tapada com uma espessa fita adesiva. Quando seus olhos cruzaram com os de Augusto, o terror brilhou em seus olhos vermelhos e inchados. O momento do acerto de contas havia chegado. Tudo que conseguiu fazer foi chorar.
Naquele momento lamentou tudo que fizera com aquele ser que estava agora em sua frente. Mas não havia mais nada que ela pudesse fazer agora que mudasse seu destino.
Todos estavam acordados agora e o relógio marcava duas e quarenta da manhã. O primeiro tiro acertou a coxa do marido. Augusto sabia que ele ficaria ali naquela posição sangrando até o último suspiro. Morreu com os olhos abertos, esbugalhados olhando para a mulher.
O corpo foi jogado na vala e em seguida, incinerado. A seguir, o segundo tirou perfurou a coxa do filho e igual ao pai, o menino tombou e com os olhos arregalados suspirou pela última vez olhando para a mãe. “Eles morreram por sua causa”, Augusto dizia a Francine a cada momento. Mais um corpo jogado na vala.
Mas ele havia reservado o pior para ela. Com um cinto, deu uma surra em Francine. A seguir, com um pedaço de ferro quente, fez marcas em todo aquele corpo que ele havia penetrado tantas vezes.
O dia já estava quase a nascer e a tortura ficava cada vez pior, mas Augusto não deixava que ela morresse. Ia fazer com que ela sentisse ainda mais dor. Quando viu que seu objetivo havia chegado ao fim, chutou o corpo da mulher até a cova que havia cavado. Derramou ainda mais gasolina e o fogo crepitou e a absorveu.
Francine sentiu o cheiro de carne queimando e sabia que era a sua. Morreu olhando o vazio. Augusto, sem remorso algum iniciou o fechamento da cova. Afundou o carro num rio, acendeu um cigarro e sorriu sentindo as gotas de chuva tomarem conta de seu corpo.
Sabendo que sua justiça havia sido feita com suas próprias mãos, entrou no carro, sorriu mais uma vez e partiu.

La Solitudine

Para Igor, a hora mais fria e profunda começa as vinte e três e trinta quando ele entra em casa. A ausência dos barulhos, o escuro da casa e tudo que nela existe, agora servem apenas como ingredientes para aumentar a nostalgia.
Os retratos na parede que tanto dizem, agora estão adormecidos, dormindo e descansando em silêncio. Ele olha para a bagunça da casa e não se importa. As visitas se foram há muito e ninguém restou para reparar naquela pequena confusão. O edredom está revirado na cama, os livros estão espalhados pelo sofá, os tênis e sapatos fora do lugar.
É nessa pequena babel que ele insiste em ficar. Afasta alguns livros, senta-se no sofá após o banho frio e agora as interrogações e as vozes em sua cabeça voltam com força. O silêncio gritante que ribomba em seus tímpanos agora quer falar.
Na penumbra ele pensa e repensa, procurando respostas que nunca chegam e que o colocaram naquela situação. Sente falta de companhia, às vezes não sente. Às vezes lamenta estar ali quando não precisaria estar, e às vezes se alegra por estar ali naquele estado: sozinho. Sozinho ele pode chorar, rir, cantar alto, dançar seus passos mal ensaiados. Pode dormir e sonhar com o que bem quiser.
Igor quer sair dali, ir para outro lugar, mas está perdido, está dividido entre se deve ir ou voltar. Ou se deve fazer o que vem fazendo há tanto tempo: nada. Simples e absolutamente nada. É um coadjuvante de sua própria vida, não o ator principal. E ali, na penumbra ele vê os dias irem e virem, aleatórios, automáticos e fora de controle.
E enquanto as horas passam e os minutos insistem em não mais voltar, ele olha o escuro da noite pela janela do quarto querendo ponderar o imponderável, prometer a si mesmo o que talvez não possa cumprir: ficar sozinho, não mais. Adiós Solitudine.

The Landing


As poltronas dos números dezesseis a dezoito em um avião modelo Air Bus 737-400 são as piores. Ficam localizadas em cima das asas, e da janela, independente se é A ou F, a visão fica encoberta, mas é possível ver o aerofólio das asas, os flaps e parte da turbina.
Eu estava na poltrona 17F, do lado direito da aeronave, sentindo as delícias de ver o céu se unir à terra a dez mil e trezentos metros de altitude. O comandante, pelo sistema de auto-falantes dizendo que a temperatura interna era de vinte e três graus centígrados e a externa de menos quarenta graus me despertaram da leitura.
Estava lendo “O Testamento”, de John Grisham, justamente naquela parte onde o avião que ele estava foi obrigado a fazer um pouso de emergência em uma fazenda. No incidente, apenas uma baixa: uma vaca.
Em muitas vezes na minha vida eu havia observado as placas de sinalização e de avisos serem lidas e ignoradas. “Não fume”, ao redor dos fumantes, “Proibido ultrapassar”, quando há ultrapassagem, “Piso escorregadio”, visto por pessoas já no chão, “Desligue o celular”, nos postos de gasolina. Jamais ouvi ou li algo sobre algum posto de gasolina em qualquer lugar do mundo ter explodido porque alguém estava falando ao celular.
Mas ali, no vôo OR 3341 da Ocean Air, o comandando havia dito que os celulares, laptops, câmeras e tudo de eletrônico fossem desligados, pois poderia influenciar e interferir nos instrumentos do avião. A poltrona 17E estava vazia e a 17D era ocupada por uma mulher com aspecto austero e a todo momento fazia anotações e apontamentos em uma agenda. Furtivamente, ela conectou um fone de ouvido a um celular, teclou um número e quase que sussurrando, avisou a alguém que chegaria fora do horário. Nosso vôo havia atrasado quase duas horas.
A chamada ainda estava em curso quando a luz vermelha localizada acima da porta de acesso à cabine do comandante piscou e um alarme baixo, mas assustador soou. A seguir o frio na barriga quando sentimos despencar céu abaixo, perdendo altitude rapidamente segundo a segundo. As máscaras de oxigênio se soltaram do teto e assim que as pusemos, inalamos o oxigênio como se fosse o último ar do mundo.
O pânico tomou conta de todos nós e por mais que os comissários de bordo nos dissessem para ficarmos calmos, o aviso sendo efusivamente confirmado pelo comandante, tudo que queríamos era estar fora dali, com os pés firmemente plantados no chão. Ninguém queria apertar os cintos e abraçar as próprias pernas. Os estômagos de todos estavam de cabeça para baixo.
Tudo estava tremendo e tudo que eu esperava era o choque contra o chão, e depois daquilo... bem, eu não havia pensado nisso, não havia tido tempo pra pensar nisso. Pela janela, o chão ficava mais próximo a cada segundo. Não sabia o que pensar, havia um turbilhão de pensamentos na minha cabeça. E nada mais eu vi.
A aeronave, num pouso forçado, desceu em um campo limpo, sem uma árvore sequer por perto. Era um campo de trigo e no choque contra o chão, a parte de trás bateu primeiro e o avião se partiu em dois. Por um incrível milagre não explodiu.
Acordei com um corte feio na cabeça e o primeiro cheiro que pude sentir foi o de éter. As luzes brancas, muito difusas para mim, faziam médicos e enfermeiros parecerem anjos ao meu redor. Adormeci outra vez. Dois dias depois, quando minha consciência voltou, eu acordei e vi um televisor ligado num canto do quarto.
Um repórter dizia que leitura da caixa preta (que na verdade é laranja) do vôo OR 3341 havia sido feita. De acordo com a reportagem, a falha nos controles do avião foi causada por um sinal externo, muito provavelmente um celular, usado durante o vôo. A seguir, mais detalhes sobre o acidente aéreo que ceifou três vidas. Uma vez que eu sabia mais que o repórter, respirei fundo, virei para o lado e dormi mais uma vez.

Próxima estação: Luz

Domingo, vinte e dois de fevereiro. Triple Two. Os convites para o teatro dali a algumas horas com a minha namorada estão sobre a cama. Tudo está arrumado, nada pode sair errado. Os candelabros já estão com as velas para o jantar de mais tarde, assim como também o vinho. Basta meu telefone vibrar para eu saber que tudo está sob controle. Finalmente o aparelho toca, mas é outra pessoa, um engano.
As horas passam, tenho que fazer alguma coisa para driblar a ansiedade. De repente, uma batida na porta, meu coração vai a quase duzentas batidas (por segundo ou por minuto?). É meu vizinho. Gasps, desatinos e blá blá blá. Preciso sair daqui. Meu telefone irá vibrar alguma hora e se estiver longe, pego um taxi e volto.
Saio sem ter a mínima noção de para onde estou indo. Minutos depois estou em frente ao Shopping Ibirapuera e entro para comprar algo para ler. Acabo comprando um Pocket Book chamado “Pretend you don’t see her” sem ter certeza que irei conseguir ler aquele livro em inglês. Saio da loja e quando vejo, estou na estação Santa Cruz. Entro no metrô e começo a ler. Tento ler, mas há um grupo de moças falando em alto volume e me perco na leitura que só vai até a página dez. Não consigo ler quando há pessoas perto falando alto, muito menos quando estou lendo em outro idioma. Desisto e guardo meu Pocket Book. Mas a história me interessa: é sobre alguém que presencia um assassinato e tem que entrar no programa de proteção a testemunhas.
“Próxima estação: Luz”, diz o condutor. Fecho o livro e desço seguindo a multidão. Só quero ir para bem longe. Entro no corredor para os trens da CPTM e resolvo ir até Ribeirão Pires sem a menor idéia do que irei fazer lá. Alguém me pede uma informação que não sei dar: sou um estranho ali. Fico preocupado. Dentro do metrô o celular não funciona, e só me resta esperar enquanto subo pelas escadas rolantes em direção à plataforma.
Eu já vi aquele lugar outra vez. Era um dos horríveis papéis de parede do famigerado Windows 98. A subida pela escada rolante está quase no fim quando meu celular vibra no meu bolso. O coração dispara. Palpitações, arrimitia, disritmia, hipertermia. Conheço aquele número. Mas a mensagem vem de outro remetente. É um recado da minha namorada contando o incidente. Leio enquanto minha boca se abre lentamente e o estômago dá voltas. Não posso acreditar no que leio. Olho e vejo o trem chegar, mas estou na plataforma errada. Se eu entrar, vou parar em Guaianazes quando deveria ir no sentido de Rio Grande da Serra.
Meu semblante cai, uma linha de expressão surge na minha testa. Dou as costas ao vagão e desço as escadas rolantes que estão paradas. Chego à base e subo outras escadas rolantes que desta vez estão funcionando. Quando chego na plataforma certa, o trem não está lá. Saiu há dois minutos, eu tinha visto.
Sento então num banco marrom e inevitavelmente uma lágrima rola pelo meu rosto. Uma daquelas bem pesadonas. Não quero mais continuar. Desço as escadarias e entro mais uma vez no metrô.
Desço na estação Sé, muito peculiar e familiar para mim. Na estação há uma clarabóia e o celular vibra mais uma vez. Temor, tremor, estado avançado do meu estupor. Leio a mensagem e olho o emaranhado de placas com suas setas. Olho para a minha esquerda e lá está o metrô que vai para o Corinthians-Itaquera. Odeio Corinthians. Em algum lugar há um alto-falante onde Michael Bublé canta “Home”. Sei que posso ir para onde eu quiser, mas tudo que quero agora, como diz a música, é ir para casa.
Perspectiva: teatro off. Pizza sozinho e filme sem sentido: On. Pizza e refrigerante: 19 reais. Filme na locadora: 4 reais. Amar ainda mais minha namorada depois daquela mensagem: Não tem preço.

Viagens Insólitas


Conheço esse trajeto. Esse caminho é antigo. É o mesmo que eu costumava fazer quase todas as manhãs de sábado. Estou outra vez na estação Socorro, aqui em São Paulo. São oito e quarenta da manhã e hoje é um dia qualquer de 2007, mas eu estou com pressa. Quando entro e me sento em um banco marrom, me pergunto o que estou realmente fazendo ali. O ar condicionado gela minha imaculada camisa branca e eu sinto o gosto doce do gelo.
Meus ouvidos são agraciados pelo som da voz de Marina Elali cantando One Last Cry e eu me pergunto por que os trens não podem ser como os metrôs, três ou quatro vezes mais rápido. A música acaba, mas a função “repeat” já está ativada no meu celular, e assim vou até a estação Pinheiros. De lá, entro em uma lotação que vai até o bairro da Casa Verde, mas descerei bem antes, em uma rua onde há um hotel chamado Filadélfia. O carro faz uma curva e encosto a cabeça no vidro. Durmo.
Acordo no carro do meu pai, aquele antigo Monza prata, seguindo o fluxo dos carros que agora seguem em sentido bairro pela Avenida Estrutural em Brasília. As duas pistas seguem em sentido único. Sentido bairro. De manhã, a companhia de tráfego irá inverter o fluxo e só será possível usar a Estrutural no sentido centro.
Procuro uma boa música no meio daquela babel de rádios de Brasília, pior do que as de São Paulo e paro quando ouço Duran Duran cantar A Matter of Feeling. Olho para o painel do carro. São 19h44min de 11 de agosto de 1997. É a última coisa que vejo antes do carro sair da pista e se chocar contra um poste. O que vi depois foi a poeira. Senti o sangue escorrer pelo meu nariz e em seguida as luzes do hospital.
Acordo oito anos depois numa noite quente em Goiânia quando os termômetros da cidade marcavam 21º C. Calor. Sudorese. Saio para caminhar pela Avenida Tocantins vendo as luzes de natal. Em um carro parado está tocando Lighthouse Family cantando “High”. Olho tudo ao meu redor como se fosse a última vez, prestando atenção a cada detalhe.
Quando a música termina, aperto um botão no celular e tudo vira silêncio na madrugada em minha cama. Respiro fundo e viro para o lado, antes que algum som me leve daqui pra qualquer outro lugar, para outra viagem insólita.

Parceiros da Vida - parte IV

Já fazia duas semanas que eu não ia até a Missão Redentor e estava começando a me preocupar. Naquela tarde de sábado eu havia trabalhado bastante e havia trabalhado ainda mais no final da tarde. Estava longe de casa, e de onde eu estava no bairro do Cambuci até a minha casa era uma hora de distância. Ainda por cima eu havia prometido a mim mesmo ir à igreja naquela noite.
Tudo que eu queria depois que a reunião na igreja acabou era uma sopa quente e minha cama. Minha namorada estava longe e não fazia sentido sair sem ela e ainda por cima eu estava exausto.
Eram 22h30min quando meu telefone tocou. Animei-me com a possibilidade de ser a minha linda Janie. Era o Amauri. Senti minha consciência doer. Finalmente ele me convenceu. Levantei-me da cama, vesti os meus tênis de corrida e saí. Meus amigos já estavam na Sé distribuindo alimentos. Aquela cena me era peculiar.
Eu nem me animava mais em encontrar aquela jovem mãe de um mês atrás. Mas a noite estava apenas começando e algo iria acontecer. Eu podia sentir. Depois que nossos suprimentos terminaram, vieram os cumprimentos do restante dos meus amigos. Os sorrisos eram genuínos e efusivos, afinal, deveria ser bom ter mais ajuda outra vez.
O sono começava a me rondar e eu já começava a querer voltar para casa quando olhei os grupos sentados no chão, recostados na amurada, comendo seus sanduíches com suco de pêra em copinhos descartáveis de plástico. Um pouco mais afastado estava um homem sentado com um dos sanduíches. Um branco, não muito mal vestido, os cabelos muito curtos. Perguntei ao Amauri se já havia visto ele por ali alguma vez, ele negou. Comentei sobre seu estado. Nem de longe ele parecia um sem-teto, muito menos um mendigo.
“Por que não fala com ele?”, o Amauri me perguntou. Para ele é fácil, afinal, ele é psicólogo e já fazia aquilo a um milhão de anos, mas mesmo assim eu fui. Um recém chegado às ruas.
Respirei fundo e me aproximei. Cumprimentei e perguntei como estava a comida, sem a menor idéia do que fazer depois. “Boa”, ele disse, sem olhar para mim. Ele parecia ter uns cinqüenta anos e provavelmente não iria querer muita conversa com alguém quase a metade de sua idade.
“Você não parece um desabrigado”, eu disse e recebi como resposta apenas um “hum” sussurrado, mas audível. “Por que não me conta a sua história?”, perguntei sem saber direito o que estava fazendo. Após alguns instantes de um silêncio inquietante, ele falou: “Arnaldo Fachi”, e estendeu a mão para mim. Terminou de comer e finalmente olhou para mim, os olhos muito verdes.
A seguir contou-me sua história. Arnaldo era médico, e levara uma vida muito desregrada nos últimos tempos. A esposa havia se envolvido com drogas e havia vendido tudo que o casal tinha em casa para pagar as dívidas com o traficante. Quando já não havia quase nada a mais para vender, ele a mandou embora e ela foi morar com um cafetão cujo ponto ficava próximo à Rua Augusta.
A partir daí sua vida se desmoronou. Primeiro foi a bebida. Gastou uma pequena fortuna com prostitutas e cocaína. A seguir veio o crack. Depois as drogas mais pesadas. Ninguém no Hospital São Luiz pareceu notar. Logo depois ele deu um tempo com as drogas, sempre falando o que todos os viciados dizem: que podem controlar o vício. Mas depois de alguns meses veio o Valiun. Tomava sempre à noite, nunca largando o vício, mas sempre tomando cuidado para não ficar viciado.
Até que um dia, ainda grogue com os remédios ele deixou um bebê cair. A criança morreu na hora. Arnaldo foi processado e sua licença cassada. Sem saber o que fazer, ficou em casa vários dias, encharcado de bebidas e é claro, Valiun.
As contas não pararam de chegar. Sem emprego, ele teve que vender a casa e gastou o que sobrou em drogas. Meses depois soubera que a ex-mulher fora estuprada e morta por traficantes.
Indo de clínica em clínica de recuperação, ele consegui se manter sóbrio por muitos meses e até estava procurando um emprego, mas ainda era orgulhoso demais para pedir ajuda à família em Barueri. Estava agora morando em um albergue, mas tinha uma entrevista de emprego na quinta-feira, e ele estava confiante que iria conseguir. Com o emprego iria alugar uma pequena casa e reconstruir sua vida.
Mesmo diante daquela história triste eu estava feliz em poder ajudar de alguma forma. Eu estava lidando com pessoas reais, fatos reais, que poderiam ter acontecido a qualquer pessoa, inclusive eu mesmo.
Cumprimentei-o, apertando sua mão e desejei boa sorte. Estava na hora de voltar para casa. Minhas aulas recomeçariam na segunda-feira. Os dias se passaram. Era terça-feira agora e eu estava num intervalo de uma aula para outra. Na internet abri um portal de notícias. Há tempos perdi o interesse por jornais e televisão, apenas acompanho alguma coisa pela internet. Eu não costumo acompanhar as notícias em São Paulo. Já tenho problemas demais para me preocupar, e não sei porque cliquei nas notícias da cidade. Finalmente uma delas me chamou a atenção.
Na segunda-feira, a noite anterior, às 23h40min a polícia foi mandada para uma loja de bebidas na rua Maria Paula no centro. O dono do lugar, que mora na sobreloja tinha ouvido tiros e disse que na frente de seu estabelecimento havia um homem caído. Na calçada, a polícia encontrou o corpo de um homem. Branco. O sangue recente vinha de dois orifícios de bala na cabeça.
Mais tarde ele foi identificado como Arnaldo Fachi.

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