O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Valeu Galera

É amigos, mais um ano se passou. Chegou e se foi tão rápido que mal conseguimos alcançar. Foi um ano de muitas perdas e muitos ganhos. E é só naqueles balanços que fazemos em todos os finais de ano que percebemos o quanto ganhamos e o quanto deixamos de ganhar. É verdade, não foi um ano muito fácil, mas se tivesse sido, talvez não teria tido tanta graça.
Nesse ano que está nos segundos finais aprendemos muita coisa. Aprendemos que devemos dar sempre valor a quem nos apoiou e não desistiu. Aprendemos a ter consciência social quando as tragédias naturais acontecem e aprendemos também, às vezes a duras penas que o sonho existe e que se corremos atrás, eles acontecem. E que nossos esforços podem não ser reconhecidos, mas que nada irá acontecer se não nos esforçarmos.
Nesta última postagem de 2008 quero agradecer a todos os que visitaram este blog e tiveram a paciência de ler minhas crônicas. Um agradecimento sincero a todos os 2.987 visitantes que deram alguns minutos por dia ou por semana para ler este conteúdo. Foram centenas, milhares de acessos no Brasil em 303 cidades e também na Grécia, Espanha, Inglaterra, Portugal, Japão, Estados Unidos, Islândia, Argentina, Noruega e Austrália*. Obrigado a todos os brazucas que estão lá fora e que acompanham o blog.
Quero agradecer também a algumas pessoas em especial que contribuíram com seu tempo e comentários (muitas vezes pessoais) para que esses números se tornassem realidade: Admir Junior, Lívia Mendonça, Thais Lima, Rafael Dias e Deise Nascimento.
Um agradecimento especial à Cleuza, minha amiga e irmã do peito. À minha amiga Ana Vera que tanto me ouviu e como sempre me agraciou com seus conselhos e sua paciência. A meus filhos Caio e Ariel por me fazerem tão feliz com seus sorrisos, beijos e abraços. E a você Janie, que tanto me ajudou no dia do meu vestibular e desde então não saiu mais da minha vida e do meu coração e que está ao meu lado sempre me mostrando a cada dia que se passa, que a felicidade não é paranóia nem delírio, ela existe de verdade e sempre chega quando já achamos que tudo está perdido.
A todos vocês meu muito obrigado. E que neste novo ano, todas as esperanças se renovem e que todos possam encontrar um verdadeiro sentido para continuar. Assim como eu encontrei. E que o blog que entra no terceiro ano de existência possa trazer risos, sorrisos, lágrimas e momentos de reflexão. Como tem sido até agora. Feliz 2009 a todos nós. Valeu!

* Dados extraídos do Google Analytics

Parceiros da vida - Parte III

Tenho memória fotográfica. Se vejo uma vez, jamais esqueço um rosto. Foi assim que o reconheci. Mas preferiria jamais tê-lo visto.
Estávamos outra vez na Liberdade. Eu estava ansioso para chegar logo na Praça da Sé. Já havia se passado uma semana desde aquela noite insólita quando eu peguei aquele bebê nos braços. No fundo eu estava torcendo para que aquela mãe estivesse de novo por lá. Eu havia comprado um fardo grande com fraldas e havia conseguido alguns sacos de leite em pó, para o caso de encontrar aquela pequena família outra vez.
Olhava atento para todos os lados à procura delas pela praça. E nada. Eu estava exausto. Havia trabalhado a manhã toda e feito uma prova importante à tarde. A princípio eu não estava disposto a aparecer na Missão Redentor, mas eu tinha que encontrar aquela família de novo. Papai Noel estava esperando e elas não tinham a menor idéia.
Quando a fila terminou assim como nossos suprimentos, resolvi andar alguns passos para ver se localizava a jovem mãe por ali. De repente o susto. Uma mão segurou meu pescoço e eu o ouvi dizer: “Parado aí, pode passar o relógio para cá”. Meu coração batia tão forte que eu tremia todo. Tirei o relógio sentindo uma ponta de faca nas minhas costas, e estendi para ele que pegou imediatamente. “Suma daqui”, ele disse e foi exatamente o que eu fiz.
Olhei para trás, não resistindo ao impulso e o reconheci. Era um dos homens a quem havíamos acabado de alimentar. Quase não acreditei. Só depois foi que fui me dar conta que os que moram nas ruas fazem suas próprias leis. Principalmente quando é madrugada e eles se tornam os donos da noite.
Era uma forma de agradecimento que eu não queria receber. Definitivamente não era. Na minha vida aquela não era a primeira vez. Eu havia salvado a vida de minha ex-mulher uma vez e como agradecimento ganhei um divórcio. Quando salvei a vida da minha ex-namorada tirando-a do inferno que vivia, dando a ela uma vida nova, segura e fiel, ganhei como agradecimento a separação. E agora isso. Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas.

Mas todos estes episódios foram pequenos solavancos no meu caminho e essas balas não iriam me fazer parar. Nem me derrubar. Voltei para a van onde meus amigos me esperavam. Eu estava desesperançado e só pensava na minha prova na manhã seguinte, dali a algumas horas.
No caminho de volta falei pouco. Quando cheguei em casa e me deitei, fiquei pensando em tudo que havia acontecido até ali. Lembrei-me daquela passagem bíblica quando Jesus curou os dez leprosos e eles na euforia por terem sido curados, saíram correndo e nem se lembraram de voltar e dizer um simples obrigado. Exceto um.
Em minha missão, não espero agradecimentos por salvar vidas, apenas um pouco de reconhecimento, de gratidão. Mas isso não me faria desistir. Continuo salvando as vidas necessitadas que aparecerem pela frente. E faço isso de coração aberto. Mas sinto falta do meu relógio. Esta semana compro outro. Só não posso me esquecer de tirá-lo na próxima vez.

Parceiros da Vida – Parte 2

São Paulo. Sete de dezembro de 2008. Meia noite e cinco. Enquanto parte da cidade dorme, e outra se diverte estamos de novo em nossa missão. Mari teve gripe e não pôde vir nesta noite. Mas nosso trabalho tem que continuar. É meu segundo final de semana como voluntário na Missão Redentor.
De tudo que vejo e sinto, só há uma coisa que acho que não consigo suportar: os cheiros. Cheiro de cobertor velho, molhado e seboso. Cheiro de roupa suja, impermeável que há anos não sente o toque de água com sabão. Os cheiros peculiares das ruas.
Saímos outra vez da ponte Condessa de São Joaquim, no bairro da Liberdade rumo à Praça da Sé. Enquanto esperamos o farol abrir olho para o lado, para a minha direita, enquanto um homem come um pão seco com mortadela deitado no último ponto de ônibus da Av. Liberdade. Ele devora o mais rápido que pode como se aquela fosse a última refeição de sua vida.
Quando chegamos à Praça da Sé e abrimos a van, a fila começa. Os que moram nas ruas não resistem a uma fila. Nomes para mim são importantes. Sou professor e sempre tive que memorizar nomes, agora virou um hábito. Sempre que posso pergunto os nomes das pessoas que estendem o braço para pegar o pão com mortadela que eu ofereço. Nem todos respondem. Muitos estão cansados demais, bêbados demais, drogados demais.
De repente meu celular vibra, chegou outra mensagem. Uma amiga perguntando o que um professor está fazendo a essa hora com a ralé das ruas. Digo a ela que sou primeiro um ser humano, só depois sou professor. Envio um SMS para alguém que um dia fez parte da minha vida, alguém que eu não pronuncio mais o nome. Apesar de tudo, gostaria que ela estivesse lá fazendo alguma coisa realmente útil em sua vida sombria. Mas minha cabeça não estava para lembranças tristes. Não sou mais do tipo que se importa com coisas que não posso mudar. Meu caminho está cheio de batalhas que eu posso vencer. Como esta agora.
Uma jovem mulher está sentada encostada num mural com uma criança nos braços. A criança chora, mas ela parece estar em outro mundo. Os olhos injetados, o pensamento longe. Ela está imóvel. Visivelmente drogada. Meus novos amigos estão ocupados servindo a fila que nunca termina. Deixo meu posto e vou até a mulher. Aquele choro já está me irritando. Aproximo-me, e só então a mulher abre os olhos, ao menos tenta abrir. Pergunto se posso ficar com o bebê um pouco, ela não responde, apenas estende os braços e me entrega.
A criança está completamente encharcada. Está com fome. E nós não temos leite hoje. Minha jaqueta agora tem uma mancha de xixi de bebê. Tenho que fazer aquele bebê parar de chorar então penso em uma alternativa. Devolvo a criança para a mãe e peço para que ela me espere ali, “não saia daqui”, eu disse. Marta não gosta de saber que eu vou sair e deixá-los lá. Mas eu digo que é rápido, cinco minutos.
Corro desabalado em direção à Praça João Mendes, sei que há uma farmácia 24 horas lá. Tenho algum dinheiro na carteira e compro um pacote de fraldas, uma mamadeira e uma lata de leite em pó. Corro de volta para a van. A jovem mãe ainda está lá e a criança não parou de chorar. Pego a criança e retiro sua roupinha molhada. É uma menininha. Sou pai de dois meninos, trocar fralda é minha especialidade. Amauri prepara a mamadeira. A fila diminuiu bastante. A menininha finalmente pára de chorar ao tomar seu leite. Em poucos minutos dorme. Não deve ter mais que oito ou nove meses. Enrolo a bebê na minha jaqueta jeans e devolvo pra mãe.
Sou mole para sentimentos, e é inevitável segurar aquela lágrima, primeiro uma, duas, depois vem um monte delas. Numa prece silenciosa agradeço a Deus por não ser um dos meus filhos, que agora devem estar quentinhos na cama. Marta se aproxima e coloca a mão na minha cabeça fazendo um carinho. Marta tem cinqüenta e oito anos e me faz carinho como que de mãe pra filho. Pergunto a ela se um dia meu coração vai parar de se partir todo sábado a noite quando eu vejo tanta desgraça. “Se você se acostumar, é porque está na hora de fazer outra coisa”, ela diz.
Não sei qual será o destino dessas pessoas, dessas mães, desses filhos das ruas e do crack. Sabemos apenas que não podemos salvar o mundo, porque o mundo não pode ser salvo. Mas isso não nos desanima. Continuamos em nossa missão, nos sentindo menos humanos e mais divinos. Felizes por podermos ajudar alguém. Diz nas escrituras: Se um irmão ou uma irmã estiverem em nudez e lhes faltar alimento suficiente para o dia, contudo, alguém de vós lhes disser: “Ide em paz, mantende-vos aquecidos e bem alimentados”, mas não lhes derdes o necessário para os [seus] corpos, de que proveito é? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma.
Voltamos para as nossas casas exaustos às duas da manhã outra vez. Começo a comer um pão que sobrou. Raramente sobra alguma coisa. Volto para casa outra vez feliz e triste ao mesmo tempo. Apenas gostaria de saber por onde andará agora aquela mãe com uma criança enrolada na minha jaqueta, carregando uma sacola com fraldas e leite em pó. Acho que jamais encontrarei a resposta.

Parceiros da Vida

Somos cinco. Marta, Francisco, Mari, Amauri e eu. Nos finais de semana às nove da noite, enquanto a cidade se prepara para as baladas intermináveis, nós nos reunimos para uma curta oração. Depois saímos, agradecidos pela proteção divina.
Foi a minha primeira vez, meu primeiro sábado como voluntário. Nossa primeira parada foi na rua Condessa de São Joaquim, no bairro da Liberdade, onde uma fila nos esperava lá fora. Somos uma equipe. Somos os parceiros da vida. Alimentamos os pobres, aquecemos os sem-teto e ajudamos os deprimidos. Fazemos isso porque é o que manda nossos corações. Não é obrigação. É desejo genuíno. Já estivemos do outro lado dessa situação e nossa missão é evitar que o pior aconteça. Ao menos estamos tentando.
Enquanto Mari e eu servimos pão com molho de tomate, salsicha e milho verde com batata palha e suco de maçã, a fila cresce e parece não terminar nunca. Não estou acostumado àquela cena. Mães com crianças de colo, juntas aos seus numerosos filhos, idosos, bêbados e drogados. Em uma cidade como São Paulo onde todos os postos de saúde distribuem gratuitamente preservativos para quem quer que seja, como podem haver tantos filhos das ruas? Não procuramos respostas, estamos ali para ajudar, não repreender. “Feliz aquele que alimenta os pobres”, diz nas Escrituras.
Na parte debaixo da ponte onde nossa van com comida está estacionada, Marta e Francisco distribuem cobertores, doados por pessoas generosas que simpatizam e apóiam a nossa causa. Nosso estoque não é muito mas vamos continuar.
Amauri é psicólogo e conversa agora com aqueles que estão comendo, recostados à grade. Alguns mal falam, ocupados demais com a comida, outros são atenciosos e agradecem, depois contam um pouco de suas vidas. Às vezes o que querem é apenas um ouvido atento. E se os parceiros da vida estão por ali, por que não descarregar tudo em cima de nós?
Terminamos nossa tarefa ali naquela noite. Temos que voltar para a missão Redentor, nosso quartel-general e abastecermos de suprimentos. Temos que agir muito rápido porque há outros com fome. Mas nosso trajeto é interrompido. Na ponte da Liberdade ao lado do shopping SoGo há uma moça sentada na grade olhando lá para baixo, para a avenida Radial Leste. Demora mas conseguimos convencê-la a não saltar e finalmente ela vai embora.
Nosso programa agora é levar mais pão com manteiga e chá quente na Praça da Sé. Outra fila nos aguardando. Há uma briga. Dois homens completamente bêbados. Um tem uma faca. E lá vamos nós de novo. Amauri, Francisco e eu. Não conseguimos convencer o homem com a faca a nos entregar a arma, mas ele se vira e vai embora escondendo a faca nas camadas de cobertores que leva sobre o corpo.
Um homem chora nas escadarias da catedral. Depois que alimentamos todos os que pudemos e nossos suprimentos se acabaram, estamos exaustos. Mas resolvemos nos sentar ao lado do homem que ainda não parou de chorar. Ele conta que acabou de terminar o casamento, e que ela era a vida dele e toda aquela conversa que estamos carecas de ouvir. Ele se anima por ter desabafado com pessoas que não vão criticá-lo porque nós cinco somos iguais a ele. Já passamos por isso também. Vamos embora.
Com os corações apertados outra vez voltamos para casa. Estamos juntos, ajudamos juntos, resgatamos juntos e damos esperança aos que não tem. Sempre juntos. Essa é nossa (e minha mais nova) missão. Juntos somos uma força poderosa. Nós somos os parceiros da vida.

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