O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Convivendo com as diferenças

O que constrói o caráter de uma pessoa? As diferenças que ela tem em relação aos demais? Ou será que são as semelhanças? A todo instante somos bombardeados por comentários, insinuações e comportamentos sobre nossas diferenças em relação aos outros e outras tantas vezes pelas semelhanças. Sejam elas diferenças culturais, étnicas, religiosas ou sócio-econômicas.
Em pleno século vinte e um, algumas pessoas ainda não aprenderam a lidar com essas diferenças e isso nos remonta a idades mais primitivas quando se seguia um padrão e tudo o mais era considerado abominável, estapafúrdio. Viver em sociedade implica em aprendermos a respeitar opiniões e comportamentos que por vezes podem nos parecer medíocres, anacrônicos aos nossos próprios princípios.
Deixar fluir as diferenças, com respeito e sem imposições é o que nos torna cidadãos aptos a viver em grupo e não marginais sociopatas, incapazes de aceitar padrões diferentes dos seus.
Essa não aceitação é que cria o recheio do nosso cotidiano. O filho que matou o pai porque o pai não aceitou a sexualidade do filho. O jovem que se suicida porque os pais não aceitaram que ele fosse ator e tinha que ser um médico ou advogado, porque essa é a tradição da família e acima de tudo, onde já se viu falar que ser ator é profissão? Isso é coisa pra gay ou vagabundo. A filha que agora aparece nas páginas de desaparecidos já que fugiu com o namorado porque nem seus pais e amigos aceitaram o fato de ele ser negro.
O desrespeito pelas mudanças de paradigmas é o que provoca ainda mais desrespeito. E tudo vira uma bola de neve, quando idéias novas batem às testas de ferro dos não maleáveis, dos intolerantes e intoleráveis, os chamados senhores da razão. E acaba por afogar conceitos bons e atitudes mais superlativas, que agora ficam enterradas debaixo do cimento frio da ignorância, do ódio, do desrespeito e das diferenças, ou da falta delas. O mundo será um lugar muito ruim de viver se for baseado em desrespeito às diferenças, a não adaptação às mudanças de ideologias, comportamentos e preconceitos.

Os velhos caminhos

As ondas trovejantes estao me chamando para casa a você
O mar batendo esta me chamando para casa a você
Sobre um novo ano escuro esta noite
Sobre a costa Oeste do mundo
Eu ouvi sua voz cantando
Seus olhos dançaram a canção
Suas mãos tocaram a melodia
Foi uma visão diante de mim

Nós sentimos a musica anterior e a dança conduzir adiante
Assim como roubamos para longe a margem do mar
Nós cheiramos a agua tão salgada, sentimos o vento em nossos cabelos
E com tristeza você hesitou

Repentinamente soube que você teria de ir
Meu mundo nao foi seu, seus olhos assim me disseram
Ainda agora isto estava aqui eu senti as encruzilhadas do tempo
E eu só quis saber por quê

Assim como lançamos nosso olhar fixo nas cambalhotas do mar
Uma visão chegou diante de mim
Das causas trovejantes e asas batendo
Nas nuvens acima
Assim como virou-se para ir ouvi você chamar meu nome
Você foi igual a um pássaro numa gaiola batendo asas a voar

"Os velhos caminhos estão perdidos" você cantou assim
como voou
E eu só quis saber por quê

O preço do desejo

O telefone celular de Augusto Pena tocou exatamente as quinze para as quatro de uma tarde de sábado. Era o marido dela. Mas Augusto não sabia. Como também não sabia que na relação de amantes que Francine possuía, ele era o número dezessete. E essa lista iria aumentar a cada final de semana.
Atendeu. E por vários minutos ouvindo a voz do outro lado daquele fatídico e malfadado sinal, Augusto soube da verdade, e muito mais que ele não queria saber. A voz contava detalhes dos encontros amorosos entre ele e Francine. Desde a época em que ela jurava pelo próprio filho que Augusto era o único homem da vida dela e nada mais importava. Tudo não havia passado de uma grande rede de mentiras.
Uma hora e doze minutos depois, Augusto desligou o aparelho. As lágrimas não cessavam. Pareciam ter vida própria, simplesmente não paravam de verter. Aquilo não iria ficar assim.
No dia seguinte, abandonando emprego, tudo e todos, ele cruzou o país a bordo de um Boeing e sua próxima parada foi em Buenos Aires onde passou a morar. Mas no fundo de sua alma sabia que um dia iria voltar e resolver aquele assunto inacabado ao seu próprio modo. “Uma vendeta”, ele dizia em alto e bom som para quem quisesse ouvir.
A vingança começou numa tarde de domingo, mais precisamente às cinco e meia da tarde quando o vôo JG3046 partiu de Buenos Aires em direção à Guarulhos-SP. Já fazia doze anos que Augusto havia saído de seu país com o coração ferido e partido, e até aquele momento, não cicatrizado. A aeronave taxiou na pista e ele desceu. Tinha uma missão pela frente.
Durante uma semana a seguiu. Tudo ali era vagamente familiar. Os horários, as saídas, os lugares. Estava do mesmo jeito como havia sido a doze anos atrás.
Com uma identidade falsa, Augusto alugou um veículo, pagou à vista e estacionou a alguns metros da casa do marido de Francine. A noite caía rapidamente e a chuva fazia a escuridão chegar bem mais rápido do que o esperado. De dentro do carro ele viu os três saírem. Primeiro ela, depois o filho e em seguida, o marido. Ligou o carro e a caçada havia começado.
Duzentos e trinta quilômetros depois, os carros estavam em uma auto-estrada, um lugar deserto. Augusto ultrapassou o veículo e a menos de dez metros e a cento e sessenta quilômetros por hora, ele sabia que o momento havia chegado. Passou a mão no cinto de segurança e em seguida assegurou que o encosto para a cabeça estava seguro. Respirou fundo e sem pensar, pisou com força no freio e puxou o freio de mão ao mesmo tempo.
Com a inevitável batida, Francine e o marido foram arremessados para a frente mas o cinto de segurança evitou o impacto das cabeças contra o painel. A fumaça saía sem parar.
Augusto, afastando o air-bag de sua frente, ajeitou a arma por debaixo do blazer preto que estava usando, abriu a porta do carro e saiu. Olhou no interior do veículo e após checar que todos estavam desacordados, cortou o cinto de segurança das suas vítimas. Carregou os três até o porta-malas do carro que havia dirigido.
Olhou ao seu redor e nem uma viv’alma passava por aquela estrada àquela hora da madrugada. Entrou novamente em seu carro alugado e dirigiu mata adentro. Quatrocentos metros depois parou, voltou correndo até o outro carro, onde antes estavam as vítimas e empurrando com a pouca força que restava em Augusto, conseguiu levar o carro amassado mata adentro.
Abriu o porta-malas e os três estavam ainda desacordados. Retirou um a um, amarrou todos e com uma pá, cavou muito e profundamente o solo afofado pela chuva e não parou até chegar à nove metros de profundidade.
Francine estava acordando. Sua cabeça latejava. Em seguida seu filho acordou e por último o marido. Francine tentou gritar, mas não conseguiu. Sua boca e a de todos os outros havia sido tapada com uma espessa fita adesiva. Quando seus olhos cruzaram com os de Augusto, o terror brilhou em seus olhos vermelhos e inchados. O momento do acerto de contas havia chegado. Tudo que conseguiu fazer foi chorar.
Naquele momento lamentou tudo que fizera com aquele ser que estava agora em sua frente. Mas não havia mais nada que ela pudesse fazer agora que mudasse seu destino.
Todos estavam acordados agora e o relógio marcava duas e quarenta da manhã. O primeiro tiro acertou a coxa do marido. Augusto sabia que ele ficaria ali naquela posição sangrando até o último suspiro. Morreu com os olhos abertos, esbugalhados olhando para a mulher.
O corpo foi jogado na vala e em seguida, incinerado. A seguir, o segundo tirou perfurou a coxa do filho e igual ao pai, o menino tombou e com os olhos arregalados suspirou pela última vez olhando para a mãe. “Eles morreram por sua causa”, Augusto dizia a Francine a cada momento. Mais um corpo jogado na vala.
Mas ele havia reservado o pior para ela. Com um cinto, deu uma surra em Francine. A seguir, com um pedaço de ferro quente, fez marcas em todo aquele corpo que ele havia penetrado tantas vezes.
O dia já estava quase a nascer e a tortura ficava cada vez pior, mas Augusto não deixava que ela morresse. Ia fazer com que ela sentisse ainda mais dor. Quando viu que seu objetivo havia chegado ao fim, chutou o corpo da mulher até a cova que havia cavado. Derramou ainda mais gasolina e o fogo crepitou e a absorveu.
Francine sentiu o cheiro de carne queimando e sabia que era a sua. Morreu olhando o vazio. Augusto, sem remorso algum iniciou o fechamento da cova. Afundou o carro num rio, acendeu um cigarro e sorriu sentindo as gotas de chuva tomarem conta de seu corpo.
Sabendo que sua justiça havia sido feita com suas próprias mãos, entrou no carro, sorriu mais uma vez e partiu.

La Solitudine

Para Igor, a hora mais fria e profunda começa as vinte e três e trinta quando ele entra em casa. A ausência dos barulhos, o escuro da casa e tudo que nela existe, agora servem apenas como ingredientes para aumentar a nostalgia.
Os retratos na parede que tanto dizem, agora estão adormecidos, dormindo e descansando em silêncio. Ele olha para a bagunça da casa e não se importa. As visitas se foram há muito e ninguém restou para reparar naquela pequena confusão. O edredom está revirado na cama, os livros estão espalhados pelo sofá, os tênis e sapatos fora do lugar.
É nessa pequena babel que ele insiste em ficar. Afasta alguns livros, senta-se no sofá após o banho frio e agora as interrogações e as vozes em sua cabeça voltam com força. O silêncio gritante que ribomba em seus tímpanos agora quer falar.
Na penumbra ele pensa e repensa, procurando respostas que nunca chegam e que o colocaram naquela situação. Sente falta de companhia, às vezes não sente. Às vezes lamenta estar ali quando não precisaria estar, e às vezes se alegra por estar ali naquele estado: sozinho. Sozinho ele pode chorar, rir, cantar alto, dançar seus passos mal ensaiados. Pode dormir e sonhar com o que bem quiser.
Igor quer sair dali, ir para outro lugar, mas está perdido, está dividido entre se deve ir ou voltar. Ou se deve fazer o que vem fazendo há tanto tempo: nada. Simples e absolutamente nada. É um coadjuvante de sua própria vida, não o ator principal. E ali, na penumbra ele vê os dias irem e virem, aleatórios, automáticos e fora de controle.
E enquanto as horas passam e os minutos insistem em não mais voltar, ele olha o escuro da noite pela janela do quarto querendo ponderar o imponderável, prometer a si mesmo o que talvez não possa cumprir: ficar sozinho, não mais. Adiós Solitudine.

The Landing


As poltronas dos números dezesseis a dezoito em um avião modelo Air Bus 737-400 são as piores. Ficam localizadas em cima das asas, e da janela, independente se é A ou F, a visão fica encoberta, mas é possível ver o aerofólio das asas, os flaps e parte da turbina.
Eu estava na poltrona 17F, do lado direito da aeronave, sentindo as delícias de ver o céu se unir à terra a dez mil e trezentos metros de altitude. O comandante, pelo sistema de auto-falantes dizendo que a temperatura interna era de vinte e três graus centígrados e a externa de menos quarenta graus me despertaram da leitura.
Estava lendo “O Testamento”, de John Grisham, justamente naquela parte onde o avião que ele estava foi obrigado a fazer um pouso de emergência em uma fazenda. No incidente, apenas uma baixa: uma vaca.
Em muitas vezes na minha vida eu havia observado as placas de sinalização e de avisos serem lidas e ignoradas. “Não fume”, ao redor dos fumantes, “Proibido ultrapassar”, quando há ultrapassagem, “Piso escorregadio”, visto por pessoas já no chão, “Desligue o celular”, nos postos de gasolina. Jamais ouvi ou li algo sobre algum posto de gasolina em qualquer lugar do mundo ter explodido porque alguém estava falando ao celular.
Mas ali, no vôo OR 3341 da Ocean Air, o comandando havia dito que os celulares, laptops, câmeras e tudo de eletrônico fossem desligados, pois poderia influenciar e interferir nos instrumentos do avião. A poltrona 17E estava vazia e a 17D era ocupada por uma mulher com aspecto austero e a todo momento fazia anotações e apontamentos em uma agenda. Furtivamente, ela conectou um fone de ouvido a um celular, teclou um número e quase que sussurrando, avisou a alguém que chegaria fora do horário. Nosso vôo havia atrasado quase duas horas.
A chamada ainda estava em curso quando a luz vermelha localizada acima da porta de acesso à cabine do comandante piscou e um alarme baixo, mas assustador soou. A seguir o frio na barriga quando sentimos despencar céu abaixo, perdendo altitude rapidamente segundo a segundo. As máscaras de oxigênio se soltaram do teto e assim que as pusemos, inalamos o oxigênio como se fosse o último ar do mundo.
O pânico tomou conta de todos nós e por mais que os comissários de bordo nos dissessem para ficarmos calmos, o aviso sendo efusivamente confirmado pelo comandante, tudo que queríamos era estar fora dali, com os pés firmemente plantados no chão. Ninguém queria apertar os cintos e abraçar as próprias pernas. Os estômagos de todos estavam de cabeça para baixo.
Tudo estava tremendo e tudo que eu esperava era o choque contra o chão, e depois daquilo... bem, eu não havia pensado nisso, não havia tido tempo pra pensar nisso. Pela janela, o chão ficava mais próximo a cada segundo. Não sabia o que pensar, havia um turbilhão de pensamentos na minha cabeça. E nada mais eu vi.
A aeronave, num pouso forçado, desceu em um campo limpo, sem uma árvore sequer por perto. Era um campo de trigo e no choque contra o chão, a parte de trás bateu primeiro e o avião se partiu em dois. Por um incrível milagre não explodiu.
Acordei com um corte feio na cabeça e o primeiro cheiro que pude sentir foi o de éter. As luzes brancas, muito difusas para mim, faziam médicos e enfermeiros parecerem anjos ao meu redor. Adormeci outra vez. Dois dias depois, quando minha consciência voltou, eu acordei e vi um televisor ligado num canto do quarto.
Um repórter dizia que leitura da caixa preta (que na verdade é laranja) do vôo OR 3341 havia sido feita. De acordo com a reportagem, a falha nos controles do avião foi causada por um sinal externo, muito provavelmente um celular, usado durante o vôo. A seguir, mais detalhes sobre o acidente aéreo que ceifou três vidas. Uma vez que eu sabia mais que o repórter, respirei fundo, virei para o lado e dormi mais uma vez.

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