O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

O afogado

Marginal Pinheiros, Morumbi, São Paulo. Seis e treze da noite. Hora do rush. De dentro do trem na estação Morumbi, dona Sônia olha para a monumental construção daquela ponte que está por terminar já a algum tempo. Poucos trabalhadores por ali. A obra será continuada a todo vapor no ano que vem. Afinal é ano de eleição.
O pescoço chega a doer, de tanto se esforçar para olhar pelo vidro pequeno, mas daí ela desiste de continuar olhando porque é simplesmente impossível enxergar o topo. Mas quando olha em direção ao rio, vê algo que a surpreende.
Uma mão na borda do rio, perto dos pequenos arbustos e da vegetação que ninguém sabe como consegue sobreviver no meio à tanta sujeira e mal cheiro daquela água que agora já não é mais água, e sim uma gosma barrenta e fedida. Uma mão. Ali. Solitária. Os dedos esticados para cima como alguém pedindo ajuda porque está se afogando ou já se afogou e partiu desta para uma melhor.
Dona Sônia se apavora. Grita. “Tem um homem morto ali”, ela berra a plenos pulmões. Todos no vagão se esforçam para olhar. E todos então vêem. Um burburinho de “Oh meu Deus” toma conta do vagão onde não cabe mais ninguém. Todos se assustam com aquela cena. Precisam avisar alguém. A polícia? Mas será que foi assassinato? Não, não parecia ser. O mais provável na opinião de todos ali, era que algum trabalhador tivesse caído das obras de construção da ponte e se afogado. Mas ninguém viu essa criatura caindo?
É nesse momento que vários descem. Ficam ali na plataforma olhando, outros já ligando para a polícia ou para só Deus sabe onde. Mas aquela mão não pode ficar ali. Alguém tem que fazer alguma coisa, mas quem meu pai eterno? Quem é que vai pular naquela água correndo o risco de não voltar mais, ou se voltar, chegar sem os cabelos? Os minutos vão passando. Finalmente uma sirene. Corpo de bombeiros. Não dá para chegar mais perto por causa da grade, por isso os bombeiros usam uma escada.
Se esticam, se esforçam e conseguem chegar perto. Preso a uma corda, um dos bombeiros, um homem bastante forte é abaixado, para pegar o suposto afogado pela mão e içar o corpo para o alto.
Então ele puxa. E qual não é a surpresa de todos ao ver que não existe corpo nenhum. É apenas uma luva de algum dos trabalhadores que caiu lá de cima. Esta hora alguém pode estar procurando por ela. O bombeiro xinga. A platéia ansiosa, gargalha. A estação volta ao seu ritmo normal. O palavrão é ouvido e repetido pelo Francinaldo lá do alto da construção, que já está a mais de uma hora procurando pela sua outra luva que desapareceu.

Namoros eletrônicos - por Handerson Pessoa

Kayra diz:
Acho que já está na hora de nos conhecermos pessoalmente.
Victor diz:
Também acho, afinal, já se fazem quatro meses que só nos falamos pelo MSN
Kayra diz:
Você contou? rs..rs..rs..
Victor diz:
Claro que contei. A primeira vez que nos falamos foi no dia 5 de abril.
Kayra diz:
nossa, legal vc ter contado
Victor diz:
Sabe o q é mais engraçado nisso td? Nunca nos vimos. Só sei como vc eh por causa da descrição
que vc me fez. Vc não tem uma foto mesmo? Nem umazinha?
Kayra diz:
nenhumazinha. Mas vc tb não tem fotos.
Victor diz:
eh verdade
Kayra diz:
está tarde, tenho que dormir, tenho aula amanha cedo.
Victor diz:
Tudo bem. Amanha então eh o grande dia. Não importa se vc eh loira ou morena, baixa ou alta, magra ou gorda, eu te quero do mesmo jeito.
Kayra diz:
eu tb
Victor diz:
Não se esqueça, estarei de jeans azul e uma camisa amarela, no banquinho do lado do pipoqueiro, na frente do cinema do segundo piso do shopping ok?
Kayra diz:
ok. e eu de jeans azul e blusa rosa
Victor diz:
combinado. tenha bons sonhos. bjs
Kayra diz:
bjx

Lentamente eles tiraram seus dedos do teclado. Uma onda de um tipo de medo legal e ansiedade pairava no ar. A noite não passava. Ele não conseguiu dormir. Ela tampouco.
Mal o dia raiou e ele já queria ligar para ela, mas conteve-se. Ela, a mesma coisa. Passaram o dia todo sem se falar. Ela passou a tarde no cabeleireiro. Ia conhecer o homem da sua vida. Ele passou o dia todo escolhendo a melhor roupa para conhecer a mulher da sua vida. Ambos já não conseguiam mais se controlar de tanta apreensão.
A noite chegou. Olharam os relógios ao mesmo tempo, os dois, Victor e Kayra separados por cinco bairros. Cinqüenta e três quilômetros, vinte e dois metros e oito passos. De repente eles estavam lá.
Ela no terceiro piso. Ele no segundo. Ela lá de cima analisando ele. Ele nem sequer sabendo se ela tinha mesmo ido até lá.
Ela vê o homem da sua vida. Um príncipe montado num cavalo. Mas onde estava o príncipe? Ela só via o cavalo. Um pangaré.
Ele sentado, impaciente. Batia os pés ligeiramente no chão demonstrando todo o seu desconforto por estar ali, esperando uma pessoa que ele jamais tinha visto.
Sete horas. Sete e quinze. Sete e meia. Nenhum sinal dela.
Ela ali, sentada numa bancada, a decepção visível, plenamente estampada no seu rosto. A embalagem naquela noite talvez fosse mais importante do que o seu conteúdo. Levantou-se.
Caminhou até a saída do enorme shopping.
Ele também desistiu de esperar depois que o relógio marcou sete e cinqüenta e dois. Diversas tentativas de ligar para ela. Em nenhuma delas ela atendeu. O celular dela mostrava: 11 chamadas perdidas. Ela vai rumo à escada rolante. Vai passar pelo segundo andar e depois vai direto para o térreo. De lá para o seu carro. Para a solidão do seu quarto. Para a segurança do seu teclado.
Ele vai rumo à escada rolante, em direção ao terceiro andar. Está com fome. Precisa comer alguma coisa. Enquanto anda, uma idéia vem à sua mente. Abre a carteira, retira um chip, e troca pelo chip atual do seu telefone. Liga novamente o aparelho. Telefone para ela. Ele está no primeiro degrau da escada rolante. Subindo. Ela, descendo. Lá de baixo ele ouve um celular tocar. Ela se vira, abre a bolsa para pegar o aparelho. Atende. Levanta o rosto e quando olha à sua esquerda, vê o que até ontem era o homem da sua vida cruzando com ela na escada rolante. Não consegue disfarçar a vergonha por ter feito o que fez.
Ninguém precisa dizer nada. Tudo o que havia para se dito estava ali, escrito na testa de cada um dos dois. Foi neste momento que Victor sente os olhos marejarem. Perdeu a fome. Termina de chegar ao terceiro piso, faz a volta e vai para casa. Lá fora, a noite está tão fria, tão gelada como o coração do diabo. Mas ele não liga para o frio. Chega em casa, bate a porta do quarto e liga o computador.
Do outro lado da cidade Kayra vê seu computador ligar. Os dois ao mesmo tempo bloqueiam um ao outro. Pronto. Tudo está acabado. Lentamente eles tiram os dedos do teclado, enquanto um maremoto de perguntas não respondidas solapam a mente dos dois.
As luzes se apagam. É tarde. Amanhã ela tem aula. Uma prova importante. Ele? Bem ele vai ficar por ali mais algum tempo no escuro do seu quarto, até a hora que o tédio chegar e ele se levantar e ligar seu computador de novo. Um site de relacionamentos é o seu próximo alvo. É a era dos namoros eletrônicos.

Ousadia - por Handerson Pessoa

Exatamente quarenta e sete minutos depois de entrar no restaurante, ela fez um aceno para o garçom pedindo a conta. Estava uma pilha de nervos. Seus relatórios na empresa ainda não haviam sido concluídos naquela manhã, e ela estava já imaginando o tamanho da bronca que iria levar quando voltasse. E toda vez que ficava nervosa, ansiosa, ou sequer inquieta, lá vinha a fome. Avassaladora. Então ela cedeu à tentação, deixou o trabalho por terminar e foi em direção ao restaurante. Comeu com bastante pressa para poder voltar logo. Na pressa, duas enormes gotas solitárias de caldo de feijão desprenderam-se do seu garfo e foram se repousar sobre aquela imaculada blusa branca dela. Foi a gota d’água. Ela quase teve um rompante de fúria naquele momento. E onde é que estava esse garçom que não chegava nunca com a conta dela?
Ah lá estava ele. Vinha com um passo de quem tem todo o tempo do mundo para gastar, e não está dando a mínima importância para quem está com pressa. Chegou, mas não parou. Ia passando diretamente por ela, como se nunca a tivesse visto na vida antes. Imediatamente ela esticou o braço e o tocou. Ele parou.
- Meu senhor, eu já pedi a conta já fazem mais de cinco minutos e o senhor ainda não trouxe. Quer fazer o favor de me atender logo por que eu estou com pressa?
- Desculpe, madame...
- Por favor não me chame de madame. Apenas traga a conta.

O garçom enrubesceu. Vários pares de olhos nas mesas ao redor voltaram os olhos para aquela conversa. O garçom não se abalou:
- A sua conta já está paga madame
- Não me chame de madame! – ela disse rilhando os dentes, e apontando o dedo indicador para cima. – Como assim está paga?
- Assim dona. Está paga. A senhora não deve nada.
- Paga? Mas paga por quem?
- Por aquele cavalheiro ali. – e apontou um rapaz bem vestido. Terno cáqui, camisa branca, e gravata amarela com detalhes em vermelho. Olhou para ela e fez um leve aceno com a mão. Um gentleman.
- Desculpe, mas não conheço esse sujeito. O senhor faça-me o favor de trazer a conta. Eu faço questão de pagar.
- Mas a senhor não precisa se...
- Apenas faça o que eu estou mandando – ela disse novamente fazendo a voz sair por entre os dentes, os olhos quase vermelhos de tanta raiva.

O garçom se afastou. Voltou um minuto depois, entregou a conta. Ela pagou. Ele ainda tentou insistir mais uma vez, mas depois que ela lhe lançou aquele olhar mais uma vez ele finalmente entregou os pontos. Não ia tentar convence-la a sair sem pagar. Bom, melhor para ele, afinal, iria ganhar duas vezes. Ela pagou. Saiu.
O cavalheiro levantou logo em seguida. Andou em direção à mulher. Já estavam a alguns metros da porta pivotante do restaurante, quando ele esticou o braço direito e colocou sobre o ombro dela, que imediatamente se voltou, tomando um susto.
- Oi – ele disse.
- Desculpe não conheço você.
- Claro que conhece, eu sou o...
- Senhor, eu estou com pressa, não estou a fim de ficar na rua batendo papo. Tenho mais o que fazer.
- Acho que não entendeu, eu sou o...
- Olha aqui, pare de me seguir está bem? Quem você pensa que é? Acha que só porque pagou a minha conta pode me parar e ficar conversando comigo a hora que bem entender? Está pensando que eu sou quem?
- A Gigi.

Gilda Oliveira Conde era o seu nome. Trinta e dois anos bem vividos, chefe de uma horda de funcionários, dezenas de contatos na sua lista telefônica, mas poucos, muito poucos tinham o privilégio de chamá-la pelo diminutivo. Gigi.
Foi aí que ela começou a se interessar.
- Desculpe, continuo não conhecendo o senhor.
- Nos conhecemos na semana anterior, naquele jantar que houve na casa da Dona Laura Cíntia.
- Oh meu Deus, estou me lembrando de você. É o...
- Otávio, namorado da Eugênia.
- Isso mesmo.
- Ai meu Deus, que vergonha.
- Não precisa ficar, afinal, só estou namorando a sua prima há um mês. E ainda não tivemos tempo suficiente para nos acostumar um com o outro não é?
- Ai Otávio, por favor me desculpe.
- Que isso. Não foi nada.
- Foi sim, eu fui muito grossa com você.
- Tudo bem. A culpa foi minha. Foi muita ousadia.

Ela aposentou a blusa porque as marcas do caldo de feijão nunca saíram completamente. Gigi e Otávio voltaram no outro dia para o restaurante. E no outro. E no outro. O namoro com Eugênia foi pro brejo. Gigi se apaixonou. Otávio também. Casaram-se dois meses depois. Mas a prima nunca mais foi prima.

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