O que a gente não disse - por Lya Luft

Eu não estava preparada. Nem quando parava para pensar na vida tinha imaginado aquilo. E não era muito de pensar na vida. Apenas cumpri minhas tarefas, e sei que fui uma boa mulher para meu marido.
Quando me virei, esperava vê-lo andando em direção ao carro para mais um dia de rotina. Nem sei por que me virei. Ele era a criatura mais próxima e mais comum na minha vida comum, e eu não esperava nenhuma surpresa. Tínhamos feito isso milhares de vezes, a despedida trivial, cada um seguindo para as suas atividades – também triviais. Mas dessa vez ele continuava parado, ombros caídos, parecendo particularmente cansado. Nos olhos uma expressão que só mais tarde entendi: era o seu último olhar – e ele não me disse nada. Eu, que toda noite dormia a seu lado, nada percebi. Ou vinha notando de um jeito difuso uma tristeza, quem sabe um desejo de falar, ele que era tão contido. E não éramos muito de falar. Quase voltei, quase perguntei o que havia. Mas desisti e fui em frente, com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varri minha breve inquietação para debaixo do tapete.
E se eu tivesse perguntado?
E se ele tivesse me dito?
Se eu tivesse merecido saber?
Isso me atormentou por longo tempo. Eu me sentia muito culpada. Hoje, acredito que não saber é o que torna a vida possível.
Escolheu o seu lugar preferido, e fui eu que o encontrei duas horas depois: ele sabia que eu o encontraria, nesse jogo de conhecer e desconhecer de qualquer relacionamento. Despediu-se de mim, foi ao laboratório onde trabalhava, pegou a poção que tinha preparado, a seringa, a agulha, e foi de carro até a árvore que amara tanto, logo fora da cidade. Sentou-se na sombra ampla e maternal que lhe faltara toda a vida, isso ele dizia, eu nunca tive mãe de verdade. Mas falava sem raiva, aparentemente sem sofrimento.
Eu teria de passar por ali, voltando de uma floricultura onde ia apanhar coisas para o nosso jardim, isso ele sabia. Muita gente deve ter passado por lá antes de mim, sem dar importância a um carro no acostamento, ao homem descansando embaixo da árvore. De longe reconheci o carro dele, e antes mesmo de começar a frear vi meu marido, sentado, encostado no tronco, como se olhando o movimento na estrada, tivesse tirado uns minutos para refletir em alguma coisa importante demais para ser pensada na agitação do superficial cotidiano.
Saí do carro e fui andando até ele, com cuidado porque parecia cochilar e eu quis lhe pregar um susto. Mas uma ansiedade louca começou a se revolver em mim, e quando cheguei junto dele quase vomitei. Estava morto.
O rosto um pouco voltado para cima, corpo encaixado numa concavidade do tronco, como um berço preparado só para ele. Por isso não tinha escorregado para o capim.
A seu lado brilhavam, no sol filtrado entre as ramagens, a agulha e a seringa. Não precisei de mais nada para entender.
Então o parceiro de minha vida havia me abandonado por vontade própria, da forma mais definitiva, embora, eu sabia, me amasse também. Mas não o suficiente para querer ficar. Depois me disseram que foi instantâneo. Instantâneo não diminuía minha dor. Nem dizerem durante o velório que ele estava bem, estava bonito, estava tão sereno, sempre fora um homem tranqüilo. Odiei cada um daqueles comentários, eu entrava num longo período de incerteza e culpa. Como eu não tinha percebido, em que eu havia falhado, eu e meus filhos já homens feitos, em que o havíamos abandonado com tamanha crueldade, se o amávamos tanto?
Embora parecesse satisfeito com sua vida simples, dentro dele uma força o consumia. A única estranheza dele, que eu lembre, era aquele sonho que de vem em quando relatava. Estava sendo chupado por um funil, estreito e vertiginoso, que girava e girava, e no fundo via-se um buraquinho minúsculo, a morte. Só com grande esforço, às vezes com um grito, ele conseguia resistir. Nesse momento acordava e me acordava também. E cada vez que a gente falava, tomava café na mesma mesa, comentava notícias da televisão, trocava brincadeiras no computador ou até se abraçava na cama, mesmo que ele não comentasse, aquela sedução continuava. Aquele apelo. Nem o deixou esperar o curso natural das coisas, envelhecer a meu lado, ter alguma doença fatal, sofrer um acidente: ele se entregou voluntariamente, jogou-se no seu abraço escuro e me deixou.
Deve ter sido imediato: a picada, o alivio da morte: oblivion, onde li essa palavra? Esquecimento. Silêncio para sempre.
Palavras podiam ter salvado a sua vida? Teriam poupado a minha dor, recomposto os nossos laços deteriorados e a gente fingia que não? Mas porque a gente se conhecia tanto, nem procuramos por elas. Palavras são máscaras de tragédia ou nariz de palhaço, abrem campos queimados até a raiz da última plantinha, como os que se estendiam entre nós. Eu achava que estava tudo bem, a vida era assim, casamentos eram assim, com sua dose de silêncio e desencanto.
Era o que eu pensava. Para mim, o que tínhamos era tudo. Para ele, não bastava. Como tantos homens bons rompem com sua vida bem enquadrada, e numa paixão iluminante, largam tudo e só querem aquele novo amor, aquela nova vida, arrancando tudo pela raiz, ele seguiu o seu desejo.
Sem que eu soubesse, as coisas não ditas haviam crescido como cogumelos venenosos nas paredes do silêncio, enquanto ele ficava acordado na cama, fitando o teto com o branco dos olhos reluzindo na penumbra. Se eu interrogava, o que você tem, amor? Ele respondia que não era nada, estava pensando no trabalho. A gente sabia que era mentira, ele sabia que eu sabia, mas nem um de nós rompeu aquele acordo sem palavras. Nunca imaginei o mal que o roia. Era impossível qualquer coisa tornar a morte algo melhor do que tudo que tínhamos. Isso era o que eu achava. Ele também falava pouco no passado, a infância numa cidadezinha do interior, o monte de irmãos, os pais morrendo cedo, ele responsável pelos menores. Haveria ali, com uma raiz venenosa, alguma coisa tão triste que o levava a querer morrer?
Antes nunca pensei nisso. A gente não comentava nada que nos perturbasse. Eu era uma pessoa muito prática, para mim importava o presente. Vivia ocupada sendo feliz, tentando fazê-lo feliz, organizando família, parindo filhos, levando as crianças para a escola, indo às reuniões de pais. Estava distraída sendo fútil, sendo alegre, sendo realizada com meu marido amado e meus filhos saudáveis, gastando pouco em roupas minhas, botando termômetro quando um deles estava com febre, fazendo bolo nas tardes de sábado.
Ele pensava em morrer. Preparava-se para isso. Deve ter levado anos premeditando a morte e criando coragem. Qual a substância mais rápida, indolor e eficaz que iria escolher no laboratório. Que agulha, que seringa, que lugar, que hora, que dia. Teria pensado em mim? Teria pensado nos filhos e na perplexidade deles? Teria imaginado meus tormentos, por ter sido tão superficial e limitada enquanto ele se dilacerava?
Morrer devia ser como parir a si mesmo. Eu em cada parto me senti um bicho acuado, mas pensava: vai chegar ao mundo através de mim uma nova pessoa, que coisa maravilhosa. E isso me dava força. Na morte, o que estará nascendo? Quando o velamos, e quando estava enterrado, nossos filhos solteiros, e o filho casado com sua mulher e crianças, ficaram por perto tentando entender e descobrir algo em mim, pedindo uma palavra, uma explicação.
- Mas como, mamãe, como você nunca percebeu nada, nosso pai era tão infeliz que se matou, e a senhora não viu nada?
- Não, meus filhos. Nunca percebi. Para mim ele era meu homem, pai de vocês. Deitava comigo na cama, ia para o trabalho, me dava um beijo de despedida todas as manhãs e um beijo de chegada todas as noites, e pagava as contas. Nunca reclamava de nada em especial. Parecia um homem contente com sua vida. Não era. E eu não percebi.
Com o tempo deixamos de falar no assunto e cada um resolveu essa dor do seu jeito. Mas em mim, essa agonia ainda mexe como um grande verme inquieto. Não sei se teria adiantado a gente saber. Não sei se conversas ou psiquiatra ou médico ou padre teriam ajudado. Sei que ele escolheu o caminho, o fim. Eu ficaria de fora. E se a árvore não estivesse ali, aquela que ele sempre mencionava e admirava, se eu tivesse sido mais atenta, se ele tivesse confiado mais em mim, se a agulha tivesse se quebrado, se eu tivesse chegado uma hora mais cedo, se ele fosse mais feliz? Mas nada disso aconteceu, e assim matou-se quem eu amava.
Apesar de todos os pratos que lavei, das camisas que passei, da casa que limpei, dos lençóis que dobrei, das flores que botei na sala, do muito que economizei, dos filhos que pari, cuidei e encaminhei, do carinho bom que partilhei – não tive grande valor para ele. Valor tinha essa que o aguardava e o acolheu debaixo da árvore que ele apontou milhares de vezes passando por ela de carro, e repetia sem notar que se repetia:
- Olha só, parece uma grande mãe. Como deve ser bom dormir ali em baixo.
Foi o que fez.
Depois da despedida e do olhar que era o último, mas eu não sabia, voltei para a nossa vida, enquanto ele, caminhando até seu carro, o mesmo velho carro de sempre, apalpava no bolso do paletó o frasquinho, a seringa, a agulha, pensando que logo estaria para sempre com a sua poderosa amante, que afinal venceu.
Porque em tantos anos, tantos acomodamentos, tantas pequenas brigas e tantas descobertas em comum, os filhos, as férias, as doenças e as alegrias, e as contas a pagar, a gente nunca falou no mais importante – que eu agora não tenho mais como saber.

1 comentários:

Esse texto me tocou profundamente...

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