O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Quem matou Rita Maria?

De acordo com a previsão meteorológica para a noite de domingo, três de maio, a mínima deveria ficar entre doze e a máxima em dezoito graus. O outono havia chegado e com ele, as frentes frias. Eu havia passado o dia com meus filhos, combinando a festa de aniversário do mais velho, que seria na quarta-feira próxima. Já passava das dez da noite, e eu queria desesperadamente ir para casa. Meu joelho doía horrores e meu pé direito lancinava com um machucado feio.
Eu estava a caminho de casa, lendo “The bone collector” completamente alheio a tudo e a todos ao meu redor. Paramos em um farol vermelho e assim que ergui os olhos para me situar eu vi. Ela estava sentada à porta de uma igreja católica, com um bebê no colo e outra criança que a julgar pelo tamanho, não devia ter mais que três ou quarto anos. A mãe usava uma jaqueta jeans muito suja, de uma cor que outrora fora branca.
Apertei o botão pedindo parada. Aproximei-me da mulher que aparentemente estava dormindo. Como os sem teto conseguem dormir em meio a tanto barulho e ao relento? Antes que eu dissesse qualquer coisa ela abriu os olhos. Os que vivem nas ruas não têm sono tranqüilo.
Quando falei a ela quem eu era, o rosto dela se iluminou. Ela agradeceu pelo meu ato alguns meses atrás enquanto eu apenas a fitava envolvido em quase completa desesperança. Observei a quantidade de coisas que ela carregava. Não era a primeira vez que eu via aquela cena. Na verdade as cenas de tanta pobreza nunca me saíram da cabeça desde que eu deixara a Missão Redentor, poucos meses antes.
Pedi para que ela não saísse dali. Eu tinha que fazer alguma coisa. Ignorando a dor, fui até um supermercado Extra que havia a uns trezentos metros dali. Eu tinha vontade de comprar muita coisa, mas pensei em como eles poderiam carregar tanto.
Numa cantina no interior do supermercado comprei leite com chocolate e a atendente o colocou num recipiente grande para viagem e no Mc Donald’s comprei quatro lanches grandes com refrigerante, tudo para viagem.
Quando voltei, a criança mais velha havia acordado e quando me viu, desviou o olhar logo para o saco pardo com seu jantar. Eu havia comprado também um pacote de fraldas que daria para agüentar até o dia seguinte quando eu iria digitar ferozmente no teclado de algum computador em busca de uma solução para aquela família ter um mínimo de dignidade.
A jovem mãe olhou para mim com lágrimas nos olhos. Aquela cena já havia acontecido outras tantas vezes e mais uma vez me cortava o coração. A criança mais velha se chamava Lorena e depois de algumas perguntas, ela seria minha amiga pelo resto da vida. A mãe se chamava Rita Maria, ela me disse já abocanhando outro pedaço grande do sanduíche. “Para onde você irá amanhã?”, eu quis saber. Mas ela não tinha a resposta.
Combinei com Rita de encontrá-la no mesmo lugar, no mesmo horário na noite seguinte e ela aceitou. Eu era agora um homem com mais uma missão. O frio estava ficando pior principalmente ali às margens do Rio Pinheiros e eu não hesitei em deixar com elas meu agasalho acolchoado, que amenizaria o frio pelo menos um pouco.
Era tarde da noite e eu precisava voltar para casa. Meu joelho doía muito e eu queria acordar cedo, faltar à faculdade a fim de encontrar uma solução para Rita, Lorena e Luana, uma solução, por menor que fosse.
A maior parte dos meus cobertores, lençóis e edredons eu havia enviado para Santa Catarina quando a última enchente assolou a cidade, mas eu ainda tinha um cobertor reserva e um travesseiro que iria substituir os de Rita. Enrolei e coloquei numa sacola grande.
Dormi pensando naquela pequena família e em como estariam naquela madrugada. Assim que o dia amanheceu fui mais cedo para o trabalho fazer pesquisa. A manhã estava congelante e no noticiário, o repórter falava sobre a madrugada mais fria do ano. 5,1º C. Fechei os olhos e respirei fundo outra vez.
O trânsito estava caótico às sete e meia da manhã, nenhuma novidade àquela hora para quem mora em São Paulo. O céu cinza escuro fazia parecer noite, por isso as luzes dos carros de polícia eram visíveis de longe. Minha paciência com transito é bem curta, por isso desci e resolvi terminar o caminho à pé, o vento entrando pelo meu nariz como pequenas lascas de vidro.
Meu coração quase parou quando eu vi as lonas pretas a cobrir os corpos ao lado dos sacos e cobertores velhos perto de um pacote de fraldas e alguns sacos pardos do Mc Donald’s. Eu não conseguia andar, falar ou pensar. Não sei como, mas me aproximei e perguntei o que havia acontecido. Um policial me informou que não havia sinais de violência, tinham sido vítimas do frio.
Eu queria ver aqueles rostos mais uma vez, mas não conseguiria. Sentei num degrau e com as duas mãos na cabeça me desesperei. Vazio, insosso, etéreo. As cenas da noite anterior voltavam como fantasmas a me atormentar e elevar minha culpa.
Levantei-me e voltei para casa. Minha vida havia mudado drasticamente nos últimos meses e estava indo rápido demais. Há apenas dois meses eu havia encontrado Rita Maria no centro, perdido-a de vista e a reencontrado outra vez. Estava completamente perdido em pensamentos. Eu não podia pensar no futuro, o passado ainda estava acontecendo.

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