O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Vinho Amargo - parte I - por Handerson Pessoa


Semana passada eu tinha combinado com o Beto de assistirmos o jogo do São Paulo na casa dele. Eu sempre tive uma pontinha de inveja moderada do meu amigo. Beto é meu amigo imaginário a dez anos. Liguei para o meu amigo confirmando, mas as ligações só caiam na caixa postal. Ele trabalha num banco. É o gerente. Deixei um recado mas o Beto não me retornou. O Beto se separou da mulher, e os filhos ficaram com ela. Já não se viam a anos.
Tenho certeza que meu amigo passou momentos um bocado ruins, mas logo ele se apaixonou pela Flavinha e estava muito feliz, só não estava feliz completamente, porque ela ainda teimava em viver naquele casamento fracassado que já se arrastava por muitos anos.Tentei alertar o Beto mas ele não me ouvia.
Eu então achei que uma boa rodada de cerveja enquanto assistíamos o jogo fosse deixar o meu amigo mais contente, afinal, já fazíamos isso a anos. Éramos tão amigos que eu até tinha a chave do apartamento dele. Cheguei no edifício Golden Garden, no Leblon, subi os dezoito andares e bati na porta. Ninguém abriu e eu resolvi entrar.
Entrei e encontrei uma carta escrita por ele debaixo de um cinzeiro completamente cheio de tocos de cigarros a algum tempo fumados. A carta dizia:

"Flavinha:
Já fazem trinta minutos que você disse que me ligaria em cinco minutos e nenhum sinal seu. Deve estar muito ocupada aí na sua empresa, eu entendo. Sentei na minnha sacada e no rádio tocava aquela música que você tanto gosta. Então o céu começou a clarear e eu tive uma revelação que não gostei: que por mais que você diga que me ama e quer ficar comigo (o que eu acredito de verdade), jamais seremos uma família, porque a cada dia que passa você aperta mais o nó que te prende à sua firma e ao mesmo tempo ao seu marido, que quis o destino assim, é seu sócio.
"Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome..."
Sei do seu amor, e espero que você saiba que para mim você foi, é, e sempre será a mulher da minha vida. Esperei trinta e dois anos por você e você veio.
"Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo cores..."
Depois de tanto esperar por você e você nao conseguir largar do que te prende, eu finalmente tomei a decisão de ir embora. De uma vez por todas, sem te dar ao menos um tchau, porque eu sei que não conseguiria.
"Passeio pelo escuro eu presto muita atenção no que meu irmão ouve..."
Sei que será muito difícil, mas sei que seria mais difícil ainda viver perto de você sabendo que você é minha, mas não posso ter você. Então me lembro das nossas tardes onde fazíamos juras de amor eterno e dizíamos que nada iria nos separar, e que era só uma questão de tempo para ficarmos juntos.
"E como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora..."
Iríamos contra tudo e todos mas ficaríamos juntos para sempre. Queria envelhecer ao seu lado, cuidar de você, te dar todo amor que você sempre mereceu e não teve (ou será que teve?).
"Ah eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa filtrar seus graus..."
Por isso resolvi ir embora, porque não consigo viver mais com a idéia de te dividir com outra pessoa e ainda não ter você porque você está cada vez mais mergulhada no trabalho e nos últimos tempos tem me dado cada vez menos tempo.
"Eu ando pelo mundo divertindo gente chorando ao telefone..."
E tempo era a única coisa que eu te pedia em troca, mas com o tempo, o tempo foi acabando e eu estava ficando doente com isso. Emagreci quase dez quilos e num dia que deixei o carro em casa, desci duas vezes no ponto errado porque eu simplesmente não parava de pensar em você. Foi naquele dia que mais uma vez você me pediu para te esperar porque tinha encontrado uma amiga e não podia continuar falando comigo no telefone. Primeiro eu ficava irado, mas como tempo foi virando tristeza por ver tanta coisa, tantos planos irem abaixo. Eu até tinha parado de fumar para te agradar.
"E vendo doer a fome, nos meninos que tem fome..."
Escrevi tantas cartas que não mandei, tantos emails que viraram rascunho naquela nossa conta no Gmail que criamos só para nos correspondermos secretamente e que um dia seu marido quase descobriu.
"Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela, quem é ela, quem é ela, eu vejo tudo enquadrado, remoto controle..."
Marido. Seu marido sou eu. Quero dizer, era eu. Mas infelizmente não posso ser mais porque você insiste em não ser a minha mulher.
"Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê? Minha alegria meu cansaço..."
Então, depois que a música acabou, eu liguei para a companhia aérea e comprei uma passagem para Londres, de lá pego outro avião e vou para Reykjavik, para aquela casa onde uma vez passamos uma semana brincando de lua-de-mel e que comprei para criamos nossos filhos cheios de amor.
"Meu amor, cadê você, eu acordei, não tem ninguém ao lado..."
Desculpe mas eu tinha que fazer isso. Você sabe o endereço. Sabe que estarei te esperando. Te amo. Adeus. "

Eu não sabia se publicava ou não a carta do Beto. Mas sei que ele queria ser ouvido. No começo fiquei chateado por ele não ter se despedido, daí logo entendi meu amigo. Seu lugar não era aqui. Nem nesta época. Meu amigo imaginário pertencia a um mundo muito diferente deste. Espero que a Flavinha caia na real um dia e veja que o amor é maior do que um casamento de aparências só para calar a boca das pessoas e fazer feliz a filha que não aceita a separação. Existem outras maneiras de fazer uma filha feliz. Espero que ela veja que ela é tudo para o meu amigo, que ela é a vida dele. E espero que ela pegue aquele maldito passaporte e vá ao encontro do seu grande amor, porque ele está lá esperando. Espero mesmo.
Fui embora, deixei a caixa de cerveja na mesa, a carta debaixo do cinzeiro e liguei para a Flavinha para contar. Não sei se ela foi lá no apartamento, nem se leu a carta de despedida.
O São Paulo ganhou de 3x0. Será que lá de Reykjavik o Beto assistiu? Tenho saudades do meu amigo Beto. Só quero que você seja feliz my friend.

No final... - por Handerson Pessoa

Zelmar era o nome dele. Morreu aos setenta e três anos. 1934-2007. Estava escrito na placa sobre o seu túmulo. Zelmar e suas duas irmãs gêmeas nasceram quatro dias depois da previsão médica. Além de terem que esperar nove meses para nascer, ainda tiveram que esperar mais alguns dias.

Zelmar foi o último a ser parido. Todas as outras irmãs nasceram primeiro, e ele teve ainda de agonizar mais longos minutos na fila de espera. Foi o último a ser limpo, e o último a receber o primeiro leite da mãe. O pai de Zelmar, o seu Juarez não consultou a esposa na hora do registro, e deu ao filho logo esse nome, que começava com a última letra do alfabeto. Na escola era um terror. Era o último na lista de chamada.
No quartel, quando foi se apresentar, depois de ter ficado quase três horas na fila, esperando para se alistar (a fila era por ordem alfabética), teve que ficar naquele calor, com o sol a pino, escaldante, torrando seus miolos, até ser chamado. Ordem alfabética de novo. Parecia
que não tinha mais jeito para o Zelmar. Foi o último a receber a liberação do exército para poder ir para casa e o último a perder a virgindade entre os amigos.
Todos já tinham se casado, menos o Zelmar. A fila parece que não andava para ele. Um dia se casou, dia trinta e um de outubro, um sábado, o último dia da semana, o último do mês, e sua cerimônia de casamento teve que esperar um pouco porque já havia dois casais na frente, foi o último a se casar. Para ter a atenção da mulher, tinha que pegar fila, porque a agenda dela sempre estava preenchida, tinha que atender clientes, cuidar dos filhos e da casa, e depois vinha ele.
Onde chegava tinha que esperar. Sempre tinha a malfadada fila, e quase sempre lá vinha a tal da ordem alfabética de novo. Mas ele foi levando mesmo assim. Foi o último a receber o aumento de salário, o último a ser promovido para um cargo novo, onde agora ele teria uma mesinha só para ele no fundo da sala, perto do banheiro, no último andar do último prédio daquele conjunto empresarial que ficava no final da cidadezinha que morava, que por uma ironia era a última do seu estado.
Zelmar não aguentou à parada cardíaca que sofreu na semana passada. Morreu na maca de um hospital público, numa fila que nunca andava, e os pacientes tinham que aguardar no último corredor. Foi enterrado no cemitério Último Sonho, e sua cova ficou lá no fundo, no cantinho, onde sempre houvera sido o lugar do Zelmar. Sua placa com seu nome e sua data de nascimento e óbito está lá, mas teve um defeito nas últimas letras, porque o dono da máquina estava com pressa para ir para casa, e na correria, já que era o seu último trabalho do dia, acabou errando na forma que talhava e fez aquela barberagem. Mas era a última. Acho que o Zelmar não iria se importar.

Dona Irene e a sacola - por Handerson Pessoa

Quando a lotação chegou ali perto da Avenida Paulo França, já não cabia mais ninguém no seu interior. Todos os espaços daquele reduto estavam completamente preenchidos, mas o cobrador insistia em dizer: "Só mais um passinho pessoal, só mais um passinho". Dava raiva ouvir todo santo dia aquela mesma ladainha. "Se não der um passinho para trás não dá para o carro sair pessoal". Onde já se viu? Um microônibus daquele tamanho que deveriam caber quinze ou vinte pessoas em pé acomodadas adequadamente, tinha sessenta e três. Uma para cada ano de idade dela.
Dona Irene do lado de fora do veiculo, estudou as possibilidades de entrar, quero dizer entrar não, ficar pendurada do lado de fora, agarrada a um balaustre preso à porta. Três sacolas do Extra em cada uma das mãos. Resolveu. Tomou coragem e entrou. Depois de muito empurra-empurra, conseguiu um lugarzinho do lado do motor, onde deveria existir um banco para o carona, mas apenas existia um espaço vago e foi ali mesmo que ela foi se instalar.
Aquele veículo cada vez mais lotado e a pressão de dona Irene cada vez mais baixa. Colocou a sacola no assoalho e se sentou na tampa do motor. Abaixou a cabeça, esperando um desmaio um vômito ou algo assim, e de repente tudo ficou escuro. Ninguém percebeu que dona Irene estava desmaiada. Era tão comum as pessoas dormirem em qualquer canto de um ônibus ou uma lotação que ninguém deu maior atenção.
Enquanto dona Irene dormia, ops quero dizer, estava desacordada, a atenção de todos ali dentro foi desviada para outro acontecimento. Uma blitz policial fazia o trânsito fluir em passos de formiga naquela pista de uma mão apenas. Do lado de dona Irene estava o bandido, tentando se esconder. A lotação chegou perto e os policiais brandindo seus revólveres como armas do todo-poderoso fizerem todo mundo descer. Foi nessa hora que viram que dona Irene estava desacordada. É claro que ela não desceu para a revista. Mas o bandido foi capturado. Minutos depois todos foram liberados e a lotação seguiu seu curso normal.
Lá dentro do veículo estava uma vizinha, que apanhou as sacolas e com a ajuda de alguns passageiros ajudaram dona Irene a chegar em casa. No momento que a lotação parou, dona Irene começou a acordar. Chegou em casa, agradeceu a todos pela ajuda, fechou o portão e foi guardar as suas compras. Mas havia algo errado. Dona Irene contou oito sacolas. Mas ela só tinha entrado na lotação com seis. Que sacolas pretas enormes eram aquelas?
Dona Irene abriu e quase teve um enfarto do miocárdio. Grossos maços de notas de cinqüenta e de dez reais estavam nas duas sacolas. Ela não contou o dinheiro na hora porque lhe faltou o ar, as palpitações chegaram e ela só teve a consciência de colocar as duas mãos na boca e dizer: Oh meu Deus! Tirou todos os maços da sacola.
O dinheiro estava embrulhado em um saco preto, que estava dentro de uma sacola preta, que estava numa sacola preta maior. No fundo, alguns tabletes enrolados em papel pardo e lacrados com fita adesiva marrom. Dona Irene abriu. Nunca havia visto cocaína em toda a sua vida, e na sua inocência, achou que era polvilho. Mas aquele polvilho estava estragado, não tinha um cheiro muito bom, por isso ela jogou no lixo.
Tudo aconteceu muito rápido. Quando dona Irene estava desacordada, o bandido queria se desfazer daquela prova incriminadora, por isso colocou suas duas sacolas junto dela. Ninguém jamais iria desconfiar de uma senhora de sessenta anos. E assim, dona Irene levou para casa, quase cinqüenta mil reais sem saber, uma rapadura de maconha e dois quilos de cocaína. O dinheiro literalmente caiu no seu colo. E ela não achou isso uma droga.
Dona Irene comprou um carro com aquele dinheiro e nunca mais andou de ônibus. Tampouco contou sobre isso com outra pessoa. O bandido continua preso, só fazendo planos para quando sair, e o gato da dona Irene, pobre gatinho, lambeu grande parte da cocaína jogada no lixo, ficou doidão, saiu numa correria desabalada pela rua e morreu atropelado pelos pneus de uma lotação.

O bilhete do Juraci - por Handerson Pessoa

Quem tudo quer, tudo perde. Assim estava escrito numa daquelas enciclopédias que meu pai tinha empilhado numa estante no quartinho de bagunças quando eu tinha dez anos de idade. Eu li esta frase pela primeira vez a dezessete anos atrás e a apenas algumas horas, cruzei com ela de novo num blog na internet. E confesso que quando me vi diante daquela frase célebre que por muito tempo me acompanhou nas idas e vindas do meu caminho quase sempre incerto, eu me lembrei do Juraci. O Juraci é outro de uma série de amigos meus, todos imaginários. Ele tinha mais ou menos uns trinta e seis ou trinta e sete anos quando aconteceu.
Então lá estava de novo o meu amigo na mesinha do jogo do bicho. Ele e o apontador já tinham se tornado amigos há muito tempo quando o Juraci começou a freqüentar a banca. Cliente assíduo, meu amigo tinha a terrível mania de apostar quase tudo que via pela frente. Dinheiro nenhum parava no seu bolso, porque voltava a apostar o dinheiro que tinha ganhado e quase sempre perdia. E ele tinha poucos bens. Os bem poucos que tinha só eram comprados depois de muita insistência da mãe, que falava para o filho tomar juízo e investir pelo menos um pouco daquele dinheiro que ele raramente ganhava nas apostas. Solteiro, quero dizer separado. Já havia passado por três casamentos, e não queria saber do quarto.
O Juraci estava eufórico. Apostou dez reais na combinação nove-cinco-zero-quatro e outros quinze reais nos mesmos números nove-cinco-zero-quatro e ganhou. Os dois bilhetes no primeiro prêmio de mesas diferentes. Ele iria levar para casa dali a pouco, nada menos do que sessenta e oito mil reais somando os dois prêmios. Mas o Juraci não tinha coragem para ir ao banco e voltar com tanto dinheiro assim (na verdade, jamais ele tinha visto tanto dinheiro junto), por isso pediu para o apontador, o seu Arlindo, para que lhe buscasse o prêmio que em troca o ele ganharia mil reais do amigo e cliente. E o seu Arlindo foi lá receber.
O problema era que o Juraci não tinha conta em banco e teve que confiar em deixar que o seu Arlindo depositasse tudo na conta dele e no dia seguinte iria ao banco abrir a própria conta e resgatar o dinheiro. Conforme pedido pelo Juraci, o seu Arlindo trouxe em dinheiro dois mil reais, em notas de cinqüenta, vinte e dez reais e entregou na mão do seu mais querido amigo.
Depois de guardar o maço com todas aquelas notas no bolso do paletó, o Juraci e o seu Arlindo saíram para comemorar com uma boa cervejada, tudo por conta do Juraci, é claro. Lá pelas tantas, o seu Arlindo foi para casa, porque tinha mulher e filhos. Os filhos já eram crescidos, todos casados e a mulher já não era tão mulher mais assim. Só estavam ainda ali juntos porque era cômodo para os dois. O Juraci também foi. Ambos para lados opostos.
As ruas pareciam dançar e mudar de lugar através dos olhos do Juraci. Só quando estava dentro do ônibus é que percebeu que tinha perdido o paletó. Perdido não, esquecido na cadeira amarela do boteco. Apertou o botão pedindo sinal e desceu correndo, feito um risco na noite. O bar estava fechado. Mas como poderia estar fechado? Ele tinha saído dali a menos de dez minutos. Eu Handerson Pessoa acho que foi o dono do boteco que pegou. Acho que ele viu o paletó, mexeu nos bolsos para ver se encontrava os documentos do dono e quando viu aquele dinheiro todo, resolveu fechar logo o bar para o caso do dono do dinheiro aparecer para reclamar. Mas o Juraci não conseguia pensar em nada. Dois mil reais tinham saído do seu bolso e estava perdido. Pelo menos ele ainda tinha sessenta e cinco mil e quinhentos.
Agora estava completamente sem dinheiro. Teve que ir embora à pé. Nove quilômetros de caminhada. Chegou tarde, e nem tirou os sapatos, deitou-se e apagou. No outro dia iria atrás do seu Arlindo para irem ao banco e transferirem o dinheiro para a nova conta.
O Juraci era torneiro mecânico e com esse dinheiro iria comprar uma pequena van e montar um negócio de venda de cachorro-quente e ser dono do próprio nariz e do próprio dinheiro. Nada de ficar pedindo mais vales, adiantamentos, empréstimos, nada.
Chegou à porta da casa do seu Arlindo e bateu. A mulher, dona Zica como era conhecida pelos vizinhos atendeu, os olhos vermelhos, e um cheiro ardido de cigarro e cachaça.
- Onde está aquele desgraçado? – ela bufou, descarregando nele um jato de saliva e um mau hálito dos diabos.
- Estou aqui para falar com ele – respondeu o Juraci.
- Ele saiu ontem a noite para fazer farra com você e não voltou mais – ela disse – mas aquele pilantra me paga quando aparecer por aqui.
- Mas...mas

As palavras queriam sair da boca amarga do Juraci mas ele não conseguiu dizer nada. Só disse que voltaria mais tarde. Quando faltavam duas horas para o fechamento do banco, lá se ia de novo o Juraci importunar a pobre senhora movida a álcool. Ela olhou para ele e resmungou com aquela cara mais rabugenta que só mesmo ela sabia fazer:
- Ele não chegou.
Meu amigo começou a ficar preocupado. Será que o seu Arlindo havia sido seqüestrado? Mas ninguém mais sabia do dinheiro. Será que tinha sido capturado por seres de outros planetas? Ele não acreditava em E.Ts. E ficou por lá mesmo matutando. Sentou-se no banquinho caiado da praça e pensou. E pensou. E pensou. Horas depois voltou desolado para casa.
Estranhamente naquele dia o boteco não abriu. Ele chamou o dono no portãozinho de grade preta que tinha do lado do bar que era onde o dono morava. Ninguém veio atender. Olhou pela escada. Ninguém. Tava na cara que o dono do bar tinha pegado o dinheiro depois de ter encontrado o paletó puído. Depois pegou seu carro e foi atrás do seu Arlindo que naquela idade não deveria andar tão rápido assim e seqüestrou o velho. A essa hora ele já deveria estar em alguma cidadezinha do interior torrando aquela grana.
Dias se passaram, junto com a esperança do Juraci. Meu amigo, desolado comprou um jornal para finalmente procurar um emprego. Tinha sido deserdado de casa. Abriu e em letras bem miudinhas viu o obituário do dono do bar. Tinha morrido de derrame. Seu nome era Pedro Gil, mas era conhecido por Pedrinho.
Agora estava mesmo tudo perdido. Olhou ao longe e viu um vermelhão ofuscante, reluzindo à luz forte do sol. Uma beleza de carro. O Juraci ali no banco da pracinha pensando na morte da bezerra não teve como não conter um uivo de susto ao ver o seu Arlindo dentro daquela beleza de carro, com aquela morena, quase trinta anos mais jovem do que ele. O velho caloteiro ergueu o polegar e um risinho traquino apareceu no seu lábio. O seu Arlindo e todo aquele miserável dinheiro naquela sacola preta no banco de trás iam pacientemente pelas ruas daquele bairro insano, rumo ao desconhecido, sem data para voltar.

Furia - por Handerson Pessoa

Das vinte e quatro horas que tem o dia, pelo menos cinco ou seis o Alvarenga (um dos meus amigos fictícios) perdia todos os dias no trânsito. Gastava pelo menos duas horas para sair de casa e chegar ao trabalho e mais três para voltar, lá pelas cinco horas da tarde. Raras eram as vezes que ele conseguia gastar menos de duas horas para chegar no trabalho. Mas não era essa a pior parte. Era o retorno. Ele até preferia voltar bem mais tarde para casa para não ter que se acabar naquele trânsito infernal. O que nem sempre funcionava.
O Alvarenga e eu tínhamos a mesma mania: ler dentro do ônibus. Depois de algumas conversas eu pude observar que ele pensava mais ou menos assim como eu. Ficávamos completamente alheios à tudo que acontecia à nossa volta e nos concentrávamos no que estávamos lendo, assim, o tempo parecia passar mais rápido dentro daquela lata de sardinha.
Numa dessas viagens (isso o Alvarenga contando) ele teve a oportunidade de pegar um ônibus mais ou menos vazio. Sentou-se na última fila, lá no alto. Ele pensa que de lá de cima pode ver tudo o que acontece. Pois bem, alguns minutos e vários pontos depois, uma mulher na casa dos quarenta anos (quarenta e oito ele imaginou) sobe um degrau e se senta ao lado dele.
Com um canto do olho ele olha para o livro dela: um dia de fúria. Não consegue ler o nome do autor. Volta a sua atenção para o seu livro, um pouco mais alegre por saber que outra pessoa está lendo ali do lado dele e por isso não vai ficar importunando sua viagem.
O Alvarenga já está acostumado a ficar lendo em lugares onde as pessoas falam alto e não respeitam o momento dos outros. Foi por isso que ele nem olhou para o lado quando a conversa daqueles três marmanjos começou. Todos se sentiram incomodados, mas ninguém falava nada. O problema não era o conteúdo da conversa. Era o volume.
- Rapaz, na minha terra só dá o Náutico, estádio enche todo jogo, isso que é time – disse o de camisa amarela.
- Eu também torcia para o Náutico, mas depois que eu vim pra São Paulo, meu negócio é só Corinthians. – disse o mais magro - O problema do Corinthians ta no técnico.
- Que nada cara, esse time já tá ruim a muito tempo, agora o Palmeiras joga certinho, só não ta dando sorte – completou o de camisa amarela.
- Cês tem que entender que futebol se joga não é com sorte não, é com raça – falou o de camisa xadrez.

E por aí ia a tal conversa.Como todo mundo sabe, mulher, religião e futebol não são assuntos que se discutem. A mulher que estava do lado do Alvarenga começou a ficar impaciente, olhava para ele querendo ele se juntasse a ela e fizesse um protesto silencioso contra os três elementos que falavam tão alto. O olhar dela era mais ou menos de quem dizia: “assim não dá. Você também está lendo, me ajude a controlar as línguas desses caras porque senão não vamos conseguir terminar nossa leitura. Vamos olhar de cara feia para eles para ver se desconfiam”. Mas o Alvarenga nem se mexeu. Fez de conta que não viu.

A mulher também tentou disfarçar, mas pelo mesmo canto de olho, meu amigo percebeu que ela já estava a poucos milímetros de descer do salto e causar um barraco ali dentro. Não deu outra. Minutos depois de tentativas frustradas, ela fechou o livro com força e murmurou: “que inferno, asjsolwe nrifi, assim não tem como ler, esses caras safhasi feuren que só ficam noiun iuerno noiru parar de falar de futebol não? Entenderam? Poisé, o Alvarenga também disse que não entendeu nada do que ela falou, até porque ela estava ali mais falando para ela mesma. Mas o de camisa xadrez escutou.
Olhou para ela com a feição bem fechada, como quem queria intimidar:
- A senhora está incomodada com alguma coisa? – ele falou naquele volume que fez quase todas as cabeças virarem para trás.
- Humm... é...como é que é? – ela respondeu. Tinha sido pega de surpresa e não sabia o que iria dizer. As palavras se engasgaram e ela não conseguia falar.
- Estou perguntando se a senhora está incomodada com alguma coisa, to ouvindo a senhora fazendo piadinha aí senhora fazendo piadinha aa, t ests.idar:
futebol nao?echou o livro com força e murmurou: "que sei l[a cá gente. Se tiver alguma problema pode dizer dona, mas não fica aí com conversinha fiada não que eu não gosto.

A mulher ficou completamente deslocada ali dentro. Todos olhavam para ela esperando que ela dissesse alguma coisa mas ela ficou completamente sem ação. Tudo o que conseguiu dizer foi:
- Olha moço, cuida da sua vida aí tá bom, me deixe em paz
E os três patetas continuaram sua conversa, mas agora num tom um pouco mais baixo. O que não estimulou aquela senhora a continuar a sua leitura. Um dia de fúria. Uma lágrima, solitária, mas daquelas bem pesadonas pingou sobre o livro dela. Ela disfarçou. Todos estavam olhando para ela que a todo instante olhava para trás para ver se outro ônibus viria, e ela então pudesse se refugiar em outro lugar onde nenhum dos passageiros saberia o que tinha acontecido.
- Agora fica aí disfarçando. Mulher imbecil - os caras disseram baixinho mas ela ouviu. O autor da frase, o de camisa xadrez, que já tinha implicado com ela soltou um risinho abafado.

A mulher fechou a bolsa, guardou tudo o que conseguiu dentro dela e levou a mão direita à cabeça. Soltou os cabelos. Puxou o palito que prendia suas madeixas louras acinzentadas pela idade, e num movimento rápido e único, cravou o palito na perna do cara de camisa xadrez. Era um desses palitos que na verdade se parecem com um espeto, daqueles espetinhos de carne. O palito passou pela sarja da calça do homem e atravessou a perna, perfurando o tecido do assento. Ela aplicou tanta força que o palito pareceu estar atravessando uma camada de iogurte.
O grito do homem foi tão alto que o motorista freou o ônibus no mesmo instante. Os gritos de "Meu Deus" e "que mulher louca" tomaram conta de todos ali no ônibus. O Alvarenga só olhava. A mulher se levantou num salto.A porta foi aberta. Ela empurrava tudo e todos, e no meio da confusão, todos só queriam saber da perna do cara e daquela enxurrada de sangue que se espalhava pelo banco e pelo assoalho do ônibus. Naquela balbúrdia, ninguém sequer observou a mulher sair. Ela desceu, ergueu o dedo médio para o homem que mesmo naquele momento de intensa dor conseguiu olhar para ela lá fora do ônibus. Ele ainda conseguiu ouvi-la gritar: "Seu palhaço, agora vê se aprende". A mulher andou alguns passos, entrou o próximo ônibus que vinha logo atrás. Foi lá para o fundo, pegou o seu livro, abriu um sorriso e começou a ler. Uma noite de fúria.

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