O caso Burke

Tudo começou quando ela foi encontrada numa rodovia, morta. Ou será que foi aí que as coisas começaram a acontecer? O que é pior? Lamentar-se por uma coisa que fez? Ou por uma que deixou de fazer?
Eu jamais havia faldo com alguém de fora do país. Até aquela manhã de segunda-feira. Eram oito e quarenta e quando meu celular indicou aquele número estranho, composto apenas de zeros, eu atendi no mesmo instante. Já havíamos nos falado algumas vezes, mas sempre eram conversas via internet, apenas texto. Nenhuma voz até então.
Meu inglês estava completamente enferrujado, e sua velocidade me deixava sem saber o que entender. Muito menos o que responder. Eu entendia muito pouco, mas dava para perceber sua excitação, sua vontade de vir para o Brasil e reconstruir sua vida aqui. Chegamos a conversar por diversas vezes e me deixava muito feliz o fato de ela sempre dizer que adorava falar comigo porque eu parecia ser o único que realmente a ouvia. Não apenas escutava, ouvia.
Era complicado atender suas ligações, especialmente naqueles momentos que eu estava dentro de um dos infernais ônibus lotados e tinha que encarar os olhares curiosos das pessoas vendo um cara atender e falar a um telefone em inglês. Acho que no fundo, tudo que ela precisava era ser ouvida, e se ela quisesse despejar sua vida seus problemas, seus sonhos e desejos em cima de mim, eu estava completamente disposto a ouvir.
Mas houve uma noite que as coisas começaram a mudar. Eu estava saindo de uma aula importante, quando meu telefone tocou. Na verdade já havia tocado antes, mas eu não pude atender. Era meados de março, quase abril. Sua voz em pânico me deixou assustado. Devo ter dito algo estranho ou feito algum som porque muitos olhos se voltaram para mim no interior daquela lotação.
Seu inglês estava cada vez mais rápido, a voz ofegante, típico das pessoas que estão em apuros. Apesar da velocidade, a mensagem era clara e simples: “a polícia está aqui, e eles vão me matar, preciso sair daqui, tenho que estar aí na sua casa em São Paulo amanhã”. Eu estava perplexo e não sabia muito bem o que dizer. Tudo que eu conseguia falar era: “calma, tente ficar calma, e me explique o que aconteceu”.
Depois de muitos pedidos ela se acalmou e começou a explicar. O “amigo” que havia vindo com ela para o Brasil era procurado pela polícia, tanto brasileira quanto a polícia londrina. Alguém deveria ter comunicado o regresso dele, e agora os tiras tinham uma missão. O velho ditado: “diga-me com quem andas e eu direi quem és”, deve valer internacionalmente. É extremamente complicado provar que você não é um deles quando se está com um deles. Ela agora sabia disso e precisava da minha ajuda. Precisava de uma passagem, ou como ela dizia: “a ticket”.
Quando o dia amanheceu e eu estava outra vez ao trabalho, soube a história dela. Ela mesma me contou. Havia passado por uma instituição correcional, havia ficado lá por um ano, ordens da Scottland Yard. Tinha que usar uma pulseira digital para ser localizada facilmente. Eu sempre fui uma pessoa predisposta a entender os problemas dos outros. Não aceitar, mas entender. Por isso pedi que ela contasse tudo que ela havia feito. Tudo que eu precisava saber. Se era em mim que ela confiava, eu deveria saber toda a verdade para saber como ajudar.
Li com total atenção tudo que ela me contou. Todas as acusações. A lista era interminável. E eu não sabia muito bem o que dizer. Mas como bom advogado de defesa que serei, comecei a ver o lado humano da situação. Nada acontece por acaso. Quando a prostituta estava para ser apedrejada, mesmo tendo confessado e arrependido de seus atos falhos, Jesus disse aos homens com as pedras nas mãos: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Eu sabia que ela havia pagado por seus delitos. Estava em crédito outra vez.
Perdi a conta de quantas vezes alertei para que tomasse cuidado com as pessoas que ela andava, mas ela parecia não me ouvir. Seu mundo fora de seu país, num lugar estranho se resumia a poucos contatos. Ela queria mudar, aprender uma profissão, ser alguém, queria ser um astro do futebol, queria o que todos querem: viver. Andar sem a preocupação de olhar para trás.
Em nossas conversas diárias eu sempre tentava fazer com que minha amiga enxergasse que o mundo era muito mais do que aquele submundo que ela vivia. Sempre irei me arrepender de não tê-la trazido para cá, onde ela pudesse estar limpa, segura e com uma vida inteira pela frente. Nunca desenvolvi qualquer outro sentimento que não fosse o amor de amigo, de irmão. De certa forma, me sentia útil, responsável pelo destino de alguém. Hoje vejo que deveria ter tentado mais, ter sido mais convincente talvez. As coisas talvez pudessem ser analisadas de outro prisma, de outro ponto de vista. Talvez não.
Era uma terça-feira e não devia ser mais de sete e meia da noite em São Paulo. Eu estava online no meu MSN quando um amigo me chamou. Respondi prontamente. Sua pergunta era simples e rápida: “ela está aí na sua casa?” respondi que não e farejei encrenca. Quis saber os motivos da pergunta. Como resposta recebi apenas um “ela está desaparecida desde domingo, e como sei que você se importa muito com ela, pensei que ela pudesse estar aí”.
Não estava. Jamais esteve. Foi então que li uma das frases mais duras, mais dolorosas da minha vida: “encontraram ela numa mala”. Jamais irei esquecer aquela noite. Minha reação foi automática: “Não!”, digitei mas minhas mãos tremiam tanto que eu não conseguia controlar. A seguir vieram os detalhes, os requintes de crueldade.
Eu não sabia o que fazer. Meu instinto, e foi puramente por instinto, me levou ao jornal da minha cidade. A reportagem estava lá, mas não havia nome algum. Poderia ser um terrível engano. Voltei para casa completamente perdido nos meus pensamentos. Meu rendimento no trabalho na quarta-feira foi péssimo. Então na quinta-feira de manhã, quando entrei no trabalho, a revelação.
Cumprimentei a todos como sempre. E corri para o computador. Abri a página do jornal da minha cidade. A matéria da capa: “Homicídios crescem 33% em Goiás”. Abaixo, a foto da minha amiga. Não consegui ler a reportagem, corri para o banheiro. Ajoelhei diante da privada e vomitei. Joguei água fria no rosto e voltei para a sala.
A polícia de Goiânia encontrou nesta quarta-feira, embrulhado em sacos plásticos, dois braços que podem pertencer a Cara Marie Burke, inglesa, dezessete anos, cujo tronco foi encontrado numa mala numa rodovia...
Minha aula começava em dez minutos. Foi a pior da minha vida. Eu não conseguia me concentrar. Minha voz estava embargada. As palavras se recusavam a sair. Por dentro eu estava gritando. Eu não queria aceitar. Não podia.
Durante horas fiquei ali, sentado, olhando o nada, tentando entender o tamanho da minha culpa. Quando cheguei em casa, já muito tarde da noite, o Jornal da Globo mostrava o que eu não queria ver. A mesma foto que ela havia me mandado semanas atrás. Não resisti, chorei.
Poucas coisas são tão dolorosas quanto perder alguém que se tornou tão importante em nossas vidas. A sensação de perda, de impotência, o gosto amargo que fica na boca dos que permanecem, o buraco em nosso peito quando alguém se vai e lentamente começamos a perceber que não há mais volta. Talvez não exista dor maior.
Ontem, já passados alguns meses depois de tudo isso ter acontecido, quando ia dormir, eu estava mudando de canal aleatoriamente quando resolvi parar e ver o jogo de futebol feminino. Lembrei da minha amiga. Talvez um dia ela estivesse usando aquele uniforme verde e amarelo. Talvez estivesse escrito: Cara, ou Marie ou Burke nas costas. As lágrimas vieram espontaneamente.
Algum dia irei a Londres. E direi a Anne Marie, sua mãe, tudo que aconteceu, meu “point of view”. Espero que minha amiga descanse em paz. A paz que infelizmente não encontrou em vida. Só quero que a culpa por não tê-la tirado de lá enquanto havia tempo, desapareça dos meus ombros. Tudo que posso fazer agora é esperar e tentar parar de querer encontrar respostas para o que não há resposta.
Existem coisas que nem o tempo pode apagar. Feridas tão profundas que levamos para sempre em nossas vidas. Espero um dia poder reparar tudo que deixei de fazer pela minha amiga. Espero mesmo.
Rest in peace, my friend.
Lots of love.

2 comentários:

Ah Anderson, não fique com esse peso em seus ombros , pois tenha certeza de onde ela estiver , não gostaria de ver o amigo dela , triste com vms dizer esse "remorso", por não ter podido ajuda-la mais .
Com certeza , vc fez o maximo que estava em seu alcance.
Ore, reze, bastante pois com suas preces aos poucos ela encontrarar a paz que infelismente não teve em vida, com certeza agindo desse jeito , vc será o melhor amigo dela pela toda eternidade.

Beijos Anderson , estarei fazendo preces pelo seu bem estar tb.

Eu sei o que é perder alguem especial, eu sei o que é sentir impotência, fraqueza diante de uma situação onde não temos poder para mudar, não fique assim ela escolheu esse caminho pois sabia do risco que corria vc tentou alerta-la disso. Faço das palavras da nossa colega Ana Paula as minhas.


Bju pra vc....

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