Ousadia - por Handerson Pessoa

Exatamente quarenta e sete minutos depois de entrar no restaurante, ela fez um aceno para o garçom pedindo a conta. Estava uma pilha de nervos. Seus relatórios na empresa ainda não haviam sido concluídos naquela manhã, e ela estava já imaginando o tamanho da bronca que iria levar quando voltasse. E toda vez que ficava nervosa, ansiosa, ou sequer inquieta, lá vinha a fome. Avassaladora. Então ela cedeu à tentação, deixou o trabalho por terminar e foi em direção ao restaurante. Comeu com bastante pressa para poder voltar logo. Na pressa, duas enormes gotas solitárias de caldo de feijão desprenderam-se do seu garfo e foram se repousar sobre aquela imaculada blusa branca dela. Foi a gota d’água. Ela quase teve um rompante de fúria naquele momento. E onde é que estava esse garçom que não chegava nunca com a conta dela?
Ah lá estava ele. Vinha com um passo de quem tem todo o tempo do mundo para gastar, e não está dando a mínima importância para quem está com pressa. Chegou, mas não parou. Ia passando diretamente por ela, como se nunca a tivesse visto na vida antes. Imediatamente ela esticou o braço e o tocou. Ele parou.
- Meu senhor, eu já pedi a conta já fazem mais de cinco minutos e o senhor ainda não trouxe. Quer fazer o favor de me atender logo por que eu estou com pressa?
- Desculpe, madame...
- Por favor não me chame de madame. Apenas traga a conta.

O garçom enrubesceu. Vários pares de olhos nas mesas ao redor voltaram os olhos para aquela conversa. O garçom não se abalou:
- A sua conta já está paga madame
- Não me chame de madame! – ela disse rilhando os dentes, e apontando o dedo indicador para cima. – Como assim está paga?
- Assim dona. Está paga. A senhora não deve nada.
- Paga? Mas paga por quem?
- Por aquele cavalheiro ali. – e apontou um rapaz bem vestido. Terno cáqui, camisa branca, e gravata amarela com detalhes em vermelho. Olhou para ela e fez um leve aceno com a mão. Um gentleman.
- Desculpe, mas não conheço esse sujeito. O senhor faça-me o favor de trazer a conta. Eu faço questão de pagar.
- Mas a senhor não precisa se...
- Apenas faça o que eu estou mandando – ela disse novamente fazendo a voz sair por entre os dentes, os olhos quase vermelhos de tanta raiva.

O garçom se afastou. Voltou um minuto depois, entregou a conta. Ela pagou. Ele ainda tentou insistir mais uma vez, mas depois que ela lhe lançou aquele olhar mais uma vez ele finalmente entregou os pontos. Não ia tentar convence-la a sair sem pagar. Bom, melhor para ele, afinal, iria ganhar duas vezes. Ela pagou. Saiu.
O cavalheiro levantou logo em seguida. Andou em direção à mulher. Já estavam a alguns metros da porta pivotante do restaurante, quando ele esticou o braço direito e colocou sobre o ombro dela, que imediatamente se voltou, tomando um susto.
- Oi – ele disse.
- Desculpe não conheço você.
- Claro que conhece, eu sou o...
- Senhor, eu estou com pressa, não estou a fim de ficar na rua batendo papo. Tenho mais o que fazer.
- Acho que não entendeu, eu sou o...
- Olha aqui, pare de me seguir está bem? Quem você pensa que é? Acha que só porque pagou a minha conta pode me parar e ficar conversando comigo a hora que bem entender? Está pensando que eu sou quem?
- A Gigi.

Gilda Oliveira Conde era o seu nome. Trinta e dois anos bem vividos, chefe de uma horda de funcionários, dezenas de contatos na sua lista telefônica, mas poucos, muito poucos tinham o privilégio de chamá-la pelo diminutivo. Gigi.
Foi aí que ela começou a se interessar.
- Desculpe, continuo não conhecendo o senhor.
- Nos conhecemos na semana anterior, naquele jantar que houve na casa da Dona Laura Cíntia.
- Oh meu Deus, estou me lembrando de você. É o...
- Otávio, namorado da Eugênia.
- Isso mesmo.
- Ai meu Deus, que vergonha.
- Não precisa ficar, afinal, só estou namorando a sua prima há um mês. E ainda não tivemos tempo suficiente para nos acostumar um com o outro não é?
- Ai Otávio, por favor me desculpe.
- Que isso. Não foi nada.
- Foi sim, eu fui muito grossa com você.
- Tudo bem. A culpa foi minha. Foi muita ousadia.

Ela aposentou a blusa porque as marcas do caldo de feijão nunca saíram completamente. Gigi e Otávio voltaram no outro dia para o restaurante. E no outro. E no outro. O namoro com Eugênia foi pro brejo. Gigi se apaixonou. Otávio também. Casaram-se dois meses depois. Mas a prima nunca mais foi prima.

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