Dormindo com o inimigo

“Avenida Interlagos. Apartamento duzentos e três. Zona sul. São Paulo. Uma e vinte e cinco da manhã. Ele chega em casa cheirando a cerveja. É noite de quarta-feira. O futebol na televisão terminou a pouco tempo. A mulher já está dormindo, mas acorda com a barulhada do marido. Pergunta calmamente onde ele esteve e por que chegou assim tão tarde. Ele não responde. Ela se zanga. Chega perto e puxa-o pelo ombro. Ele não gosta. Não pode ser dominado assim pelo sexo oposto. Precisa mostrar quem é que manda ali. Quem é o dono da situação. Violentamente ele se vira e bate com o punho cerrado na cabeça da mulher que cai, atarantada e procura agora se defender em posição fetal dos golpes violentos do animal. Troglodita. Ele se cansa e vai dormir. Ela chora. Ninguém gosta de apanhar, e ela não é exceção. Então, furtivamente ela vai até o banheiro e observa as escoriações. Chora outra vez. Volta para a cama, olha o marido dormindo. Ele parece feliz, dorme tranquilo. Então ela se deita, ele a abraça. Diz que a ama. Beija sua fronte onde agora há uma marca que começa a ficar roxa. E dormem. “ Eu gostaria de ter inventado essa história, mas o detalhe nisso tudo é que foi me contado exatamente assim pela agredida. O que me fode não é o cara que bate em mulher e sim a mulher que aceita. As razões porque ela aceita? Talvez nem ela mesmo saiba. Medo de retaliação? Medo de não ter quem a sustente? Falta de inteligência? Amor? Ou tudo isso junto? Estamos vivendo uma época de retorno à era das cavernas, ao animalesco, ao putrefato. Uma época de retrocesso mental, e virando animais, sociopatas, desprovidos de senso prático e racionalidade, onde os agressores carregam em suas mãos sujas de sangue o peso da violência. E admitem depois nas rodinhas de amigos que eles é que são os senhores da razão, e os purificadores da honra. Para mim são bandidos, e eu não tenho pena de bandido. Para mim tinha que prender esses filhos da puta e deixá-los lá para serem fêmea de detentos figurões. E as mulheres de hoje precisam acordar, saber que tem direitos sim! Que podem mandar esses canalhas pra cadeia sim! E que podem muito bem se virar e se sustentar sem depender de gente assim sim! Minha ex-aluna que me contou a história do começo, uma das mulheres mais belas que eu já vi passar por aqui exibia uma mancha roxa na têmpora, que ela cobria com o cabelo e os enormes óculos escuros. Eu sabia o que tinha que fazer, mas fui tomado de assalto pelo chavão: “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. Escutei atentamente, rilhando os dentes sem que ela percebesse, enquanto ela se segurava sem muito sucesso as lágrimas que vertiam de forma copiosa. Caso parecido com o de outra pessoa conhecida no interior de Santa Catarina. E parecido com o da personagem vivida por Julia Roberts no filme Dormindo com o inimigo. A diferença? No filme, a personagem Laura tem coragem e culhão para arquitetar uma fuga e fazer seu corpo machucado descansar. É exatamente isso que falta para muitas mulheres agredidas. Coragem. Coragem para pegar um telefone e teclar 181 e colocar um fim nessa barbárie. A não ser que sejam como aquela personagem de um antigo programa do humorista Chico Anysio que ao ser questionada do por que ela continuava com o marido que a agredia tanto ela dizia: “Sabe o que é? Eu gosto!”. Aí já não há nada mais para se fazer. Caso encerrado. Sem mais argumentos meritíssimo.

2 comentários:

ótimo texto,concordo com cada palavra dita nele.

Me revolta saber que histórias assim são reais e acontecem a todo momento, o que mais me entristece é saber que é muito fácil virar o jogo e ainda assim muitas escolhem o ciclo vicioso da dor e humilhação....
Recomeçar é mais fácil do se supõe....
Ótimo texto Handerson!

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