Refluxo

Eu tinha certeza que aquele não seria um sábado comum. Era véspera de feriado e eu estava ansioso para terminar logo aquele dia para poder cair na estrada novamente no domingo. Odeio finais de semana em casa, e aquela viagem havia sido programada desde o meio do mês, e tinha sido alterada no meio da semana. Para variar eu havia dormido pouco trabalhando por toda a madrugada e sabia que trabalharia ainda mais no sábado. Doze horas sem parar e ainda tinha trabalho extra no meio da noite. Será que eu não estava apenas correndo atrás de dinheiro? Mas eu não me importava, eu já estava acostumado com aquele volume de trabalho e de certa forma aquilo me fazia bem. Era bom saber que eu estava produzindo, um peão de volta ao chiqueirinho fazendo girar a roda a todo o vapor. Naquele sábado eu não tive que ficar olhando a cara de lua cheia da minha ex. Mas além de só pensar na viagem, naquele rapel maravilhoso e no vôo de asa delta que eu faria no dia seguinte eu pensava mesmo era como seria a minha noite. Ela com certeza seria utópica. Eu teria que ir trabalhar na casa de uma pessoa que havia feito parte da minha vida durante dois anos e que eu pensava que jamais poderia esquecer. Eu não precisava ir até lá, afinal, tantos outros podiam fazer aquilo no meu lugar, mas havia aquela inexplicável necessidade de provar alguma coisa para mim mesmo e então eu fui. Passei por todas aquelas ruas que eu conhecia de cor, tantas vezes eu havia ido até aquele bairro, mas em circunstâncias completamente diferentes. Apertei o botão do interfone e o porteiro do prédio me olhou com aquele mesmo olhar de um ano atrás, como quem diz: “eu sei quem você é, lembro de você aqui”. Ignorei o olhar porque jamais gostei daquele porteiro, sempre o achei um idiota. Eu precisava ver qual seria minha reação. Uma amiga havia me dito no meio daquela tarde que eu teria uma recaída e que não conseguiria me sair bem. Bato na porta mesmo aberta e sou recebido por um homem que aparenta alguns anos mais novo do que eu. Ele me olha de cima abaixo e parece saber quem eu sou, ou quem eu fui. Parece saber que já estive ali no lugar dele, e que já estive dentro da mulher dele na mesma cama que hoje é dele, mas a tempos atrás. Eu não estava ali como amigo e sim como profissional. Pego meu dinheiro, assino o recibo e ele me conduz a uma sala, me apresentando o local que eu conheço como a palma da minha mão. Então, ela vem, usando a mesma roupa de anos atrás quando eu passava as noites ali, mas tem algo muito, muito diferente. Ela está diferente. Eu estou diferente. E numa curta fração de segundo, me pego pensando o que farei quando a ver. E me assusto com a minha reação. Minha reação foi: nenhuma. Não senti raiva, não lembrei das desilusões, não senti aquele tesão incontrolável que eu sentia e quando ela vem e me abraça como um amigo que não vê a muito tempo, eu retribuo e apenas digo: “oi sumida, tudo bem?”. Nada mais, nada menos. Meu coração não acelerou, minhas mãos não tremeram, meu suor frio não veio. O que veio foi um monte de perguntas, que eu não me desdobro hoje para encontrar respostas. Era mesmo isso que eu queria a apenas um ano atrás? Valeu a pena tudo que eu havia passado tentando por dois anos e meio o que seu marido conseguiu em meros três meses? Será que eu senti uma pontinha de ciúmes por não ser eu quem estava ali naquela noite e em todas as outras anteriores? Não. Ciúmes não. Definitivamente não. O que veio foi uma leve sensação de alívio. De saber que não era eu quem estava ali. Como minha vida havia mudado tanto naquele curto período de tempo? A apenas um ano atrás era eu quem estava ali, sentado naquela cadeira onde fizemos amor tantas vezes, e naquela mesa onde tantas vezes amassamos documentos importantes com nossos corpos apenas sendo levados pelo desejo. E enquanto ela fala e aproveita para me contar como vão as coisas agora que o marido não está por perto eu me lembro do ditado que diz que o amor é cego. Tento me lembrar o que me fazia prender àquela mulher, mas eu não me lembro mais. E as conversas fluem de forma estranha, tanto eu quanto ela querendo fazer de conta que o passado não aconteceu, e que tudo não havia passado de um sonho, ou um pesadelo. Então, como homem bem educado e diplomático que tento ser, me sento na mesa da cozinha com aquela família que um dia eu imaginei que seria minha e escuto seu marido contar histórias e mais histórias, coisas que não quero nem preciso saber, mas penso que as vezes temos que fazer um cerimonial, incorporar um personagem, ou talvez nos travestir de algo que não queremos ser. O que eu estava realmente querendo ali? Nada mais importa, só quero sair logo daquele lugar. Não terei recaídas, porque eu não tenho mais coração. Não tenho mais sentimentos desse tipo a muito tempo e estou melhor assim. Nada de romantismo, nada de amores eternos, porque eu não acredito em amor. Não acredito em pessoas que nasceram umas para as outras e não acredito em um monte de coisas. Aperto o botão do elevador e solto um suspiro. Um suspiro que não sei bem explicar o que é, só sei que é bom. É bom porque eu não estou mais ali. É bom porque agora sei que tudo está superado, bem morto e enterrado no concreto denso do meu passado, junto com o meu coração. Saio para a escuridão da noite, paro numa esquina e fico olhando a fumaça do meu cigarro desenhando formas indistintas sob a luz da rua. Eu não me conheço mais. Eu não moro mais em mim.

1 comentários:

Como eu Adoro as suas histórias, como sempre, uma melhor q a outra.

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