Magnólia - Cap. 3

O reverendo Mauro Augusto, da congregação Luz Azul havia terminado o seu sermão, mostrando os malefícios causados pelo consumo de álcool, malefícios para o corpo, para o espírito e para a família. Assim que saiu da sua tão amada igreja, deixou a mulher e os filhos em casa, tirou o blazer cinza e a gravata, colocou a camisa para fora das calças e pegou novamente a chave do carro. Disse para a mulher que iria “ali comprar uma coisa”, mas não revelou o seu paradeiro.
Parou num supermercado, dois bairros depois do seu, para não correr o risco de ser avistado por alguma de suas “ovelhas”, pegou uma sacola preta e dentro dela colocou duas garrafas de bebida barata, foi ao caixa, pagou em dinheiro, e abriu ali mesmo dentro do carro. O reverendo Mauro, era havia quase dez anos, um devorador contumaz de bebidas fortes, nunca tentando largar o vício mas ao mesmo tempo lutando para nunca ficar viciado. Tinha por hábito manter um estoque de chicletes e balas que consumia com voracidade fosse para um disfarce rápido caso uma blitz o parasse ou para disfarçar o cheiro ardido quando conversava com alguma pessoa, fosse em casa, fosse não.
Assim que chegou em casa, a mulher o surpreendeu. Queria ver o que tinha na sacola e o reverendo Mauro não ia deixar de jeito nenhum. O álcool já começava a fazer efeito. Empurrou a mulher que caiu sentada sobre um dos braços do sofá mas deu um mal jeito nas costas, o que causou dor por diversos dias. Ela não iria desistir tão fácil, por isso foi atrás do marido, e esse foi o seu erro. O reverendo não gostava de ser acuado, de estar nas cordas ou na lona, muito menos de ouvir uma descompostura da mulher. Os filhos estavam no andar de baixo, assistindo à televisão quando o primeiro soco aconteceu. E depois o segundo e mais outro. Sempre em lugares onde poderiam ser escondidos por algumas camadas de roupas. Arrastou a mulher para fora do quarto e trancou a porta. E ali na paz de seu quarto, o reverendo Mauro se sentou na cama. A vergonha e o remorso o haviam deixado fazia anos, e ele já não mais se importava com isso. Estava sendo consumido pelos seus demônios.
A primeira garrafa acabou por volta de três e meia da manhã. Ele sabia que a essa hora todos estavam dormindo, por isso desceu as escadas às cegas, tateando pelas paredes, e tendo a quase imperceptível consciência de que deveria dar um passo de cada vez na escada. Tomou meio litro de água e voltou para a sua cama. Olhou a garrafa vazia no chão e mais uma vez se perguntou por que fazia aquilo. Uma garrafa inteira! Ele jamais havia bebido tanto assim. Uma garrafa pode matar um homem, mesmo um bebedor inveterado. E num momento de rara lucidez, se lembrou que era madrugada de segunda, e em poucas horas ele deveria estar de pé novamente. Sentou-se outra vez na cama, e seu corpo não resistiu. Apagou.
O despertador apitava furioso às sete horas da manhã, mas o reverendo Mauro, em seu estado comatoso não ouvia. Seu cérebro estava muito longe dali, mergulhado em algum lugar que ele jamais iria saber. De repente, voltou a si, e percebeu que já era o momento de levantar. Abriu o chuveiro, e tomou seu banho matinal, quente, longo e sem sentimento de culpa. Não se lembrava da surra que havia dado na mulher na noite anterior, e não sabia por que ela não estava na cama quando ele acordou. Na verdade, ele não sabia de nada.
Abriu a porta da garagem após colocar sua roupa de forma desajeitada, as cores fora de sintonia e voou em seu carro rumo ao centro. Estava atrasado, seu cérebro estava lento, os reflexos pouco existiam, mas a pista estava livre. “Estranho a esta hora da manhã”, ele pensou, e o pé afundou um pouco mais no acelerador. Ah! Como era bom sentir aquele vento matinal batendo em seu rosto e fazendo seu corpo voltar novamente à Terra.
A Rua Pinheiro Machado é uma importante rota de ligação entre as zonas sul e norte na cidade do Rio de Janeiro, e, cercada por belas árvores, é um bonito lugar para se visitar no bairro das Laranjeiras.  A árvore era um grosso ipê-amarelo, com mais de cem anos de idade, que tombou, arrancando a fiação da rua, e congestionando o tráfego da região. Do lado de dentro do veículo completamente retorcido e destruído, estava o corpo inerte do reverendo Mauro Augusto, cinqüenta e um anos, casado, pai de cinco filhos, dos quais três casados.  Deixou para trás, família, uma congregação devota e uma garrafa de vodca nacional.
Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Dona Edite ouve a campainha tocar e vai em direção à porta, levando as duas mãos às costas, para tentar conter um pouco da dor dos socos recebidos na noite anterior. Do lado de fora, dois policiais cabisbaixos, e com uma carteira nas mãos. Era a carteira que ela havia dado de presente para o marido. Duas semanas antes.

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