Magnólia - Cap. 1

Edifício Magnólia. Gávea. Rio de Janeiro. Terceiro andar. Cristina vê a porta do elevador se abrir, e sabe que do outro lado da porta, o pânico e a insegurança a esperam. São oito da noite e o namorado ainda não chegou em casa, mas isso não irá demorar para acontecer. Ela aperta a bolsa contra o peito, procura avidamente pelas chaves, que agora já não tem certeza se servem para deixá-la segura e protegida das atrocidades do mundo, dos latrocínios, homicídios e infanticídios que rondam o Rio de Janeiro, ou se servem apenas para deixá-la presa com o inimigo, causando assim o inverso dos sentidos.
Oito e quarenta e cinco. Há alguém abrindo a porta, e Cristina sente o coração disparar. Não de emoção como era naquele tempo em que Miguel era outra pessoa. Naquele tempo em que os dois se davam bem e faziam planos, naquele tempo em que ele dizia que só a morte os iria separar. Cristina fecha os olhos, enquanto junta as duas pernas e se encolhe em posição quase fetal, os olhos miúdos e o queixo apoiado sobre os joelhos. Miguel entra, beija sua testa e diz coisas que ela sabe que jamais irá esquecer, porque aquela será a última noite.
Ela tenta sorrir, aquele sorriso forçado, típico de quem não quer fazer aquilo. As lembranças vem com força: “Se você me deixar eu mato você, e me mato em seguida”, ela ainda consegue ouvir, não porque foram ditas recentemente, mas porque marcaram na alma. Uma marca muito mais profunda do que todas as declarações de amor que ela já ouviu na vida. Está enclausurada, acompanhada pelo medo e pela vergonha. Não consegue entender como fora parar ali, logo ela que tem dois doutorados, um bom emprego e uma legião de homens aos seus pés.  Também não consegue entender como tudo chegou a esse ponto. E a todo tempo tenta se lembrar daquele homem que antes era, como ela mesma gostava de repetir, “o sonho de qualquer mulher”, se transformar num pesadelo e num show de horrores, como está agora.
Miguel está na sala, organizando uma pilha de DVD’s. Parece feliz, distraído, senhor da situação. Ela chega, pergunta se precisa de ajuda, ele declina. “Miguel eu preciso de um tempo”, ela diz tentando prever os rompantes do homem que ela um dia amou, um dia que já ficou amontoado entre os milhares no passado. “Cristina você precisa de mim e eu de você. Somos felizes aqui. Deixe de bobagem e fique aqui comigo”.  Ela balança a cabeça negativamente, mas de modo sutil, e ele percebe que seu mundo, antes perfeito, explodiu e queimou, ruiu, e basta uma leve brisa para transformar tudo em cinzas.
Dois meses antes, Cristina estava no hospital da Casa Verde. Eram três da manhã e os médicos, lutavam para manter o coração de Miguel funcionando, culpa de uma ingestão de barbitúricos e álcool, uma cena em que ela jamais conseguiu entender como Miguel conseguiu sair vivo desta.  Ele dizia que era simplesmente insuportável viver sem ela, e sem ela, seu mundo não existia mais. Seu amor era grande demais para ser jogado fora, e ele não iria aguentar. E não aguentou. Cristina se pergunta onde está aquela pessoa doce, carinhosa e tão segura que ela havia conhecido. Onde estaria agora aquele homem que a havia impressionado com sua convicção, com sua certeza e a bravura de quem quer ganhar o mundo, dominá-lo e colocá-lo a seus pés e que agora não passa de um moribundo, estirado em uma maca fria, tentando impressioná-la do jeito mais ridículo que uma pessoa pode impressionar? Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas. Miguel se entregou. Deixou que seus demônios tomassem o controle. Mas talvez ainda resta uma nesga de esperança. Dez dias de coma profundo se passaram. Miguel está vivo outra vez. Resta saber por mais quanto tempo.
Cristina se vira e sabe que aquilo foi a cena de despedida que ela jamais havia imaginado. Está decidida, e nada irá mudar aquela noite. Miguel pode chorar, ameaçar se jogar do terceiro andar, que ela não vai voltar atrás. Duvida que ele tente se jogar do terceiro andar, um lugar em que ao se jogar, a morte ainda não é uma certeza, e estar vivo mais uma vez depois de tanta humilhação seria ainda pior. Mas sabe que ele sempre pode subir alguns andares a mais e cumprir sua promessa de que não poderá viver sem ela. Uma pessoa que se joga de tão alto busca alívio, não o salvamento.
Ela está eufórica, não com o término da relação conturbada, mas com a reação do namorado. Quem tenta o suicídio por amor, é capaz de matar também por amor, e essa ameaça ela já ouviu. É preciso ter cuidado com as pessoas que não tem nada a perder.  O telefone mostra no visor o número 190 e basta pressionar a tecla verde, caso ela escute alguma batida mais agressiva na porta ou algum impropério dito por ele. Alguns minutos antes, fez uma ronda pela casa, em busca de tudo que poderia servir de muleta para um homicídio ou um suicídio. Deu fim em todas as garrafas de bebida, jogou fora todos os remédios, que havia no apartamento. Felizmente Miguel não tem uma arma. Cristina está um pouco mais tranquila, mas seu coração pulsa acelerado a cento e vinte batimentos por minuto.
A batida na porta vem, mas não é agressiva, é suave, e a voz carinhosa, quase angelical de Miguel a chama do outro lado. “Por favor não vá embora”, ele diz calmamente e ela sabe que restam apenas mais alguns segundos para que as lágrimas cheguem de forma raivosa, um dique prestes a explodir. “Eu sei que você não me ama mais, me deixe apenas te dar um abraço antes de ir”, ele implora, de maneira serena.  Cristina tem medo, ele pode usar sua psicologia para alterar seu modo de pensar, e usar sua engenharia social para tentar mantê-la ali para sempre. Está consciente do jeito de Miguel. Psicopata, sociopata, desprovido de senso prático, e morador da zona erma, que é o lugar onde moram os marginais mentais. Condutopático. Ela pede que ele espere um minuto. Ele concorda.
Cinco minutos se passaram. Cristina sai do quarto, as malas estão prontas e o táxi a espera lá em baixo. Vai passar alguns dias com a irmã em São Paulo, afim de colocar a cabeça no lugar outra vez. Abre a porta e sabe que aquele será o momento mais difícil, o que irá alterar toda a história, mas está preparada para o que vier. Ela pensa que está. Miguel está sentado no carpete da sala, encostado no sofá. “Eu já vou”, ela diz, com medo de que ele esteja com alguma arma, ou que demonstre alguma reação violenta, agora que sabe que perdeu. Ele não responde. Ela volta ao quarto, pega as malas e sai fazendo barulho com as rodinhas. E assim terminou a relação que ela achava ter sido o pote de ouro no final do arco-íris: sem um adeus, sem um beijo, sem nada. Os dois simplesmente se afastaram.
Cristina abre a porta, enquanto espera alguma reação, reação esta que não viria. Ela coloca as malas no corredor e olha pela última para dentro do apartamento. Miguel está ainda sentado. Mas começa a se mexer. Cristina sente o coração disparar outra vez, prevendo que ele vá até a porta e faça algo, mas não é isto que acontece. O corpo de Miguel tomba para o lado e ela sabe que algo de errado aconteceu.  Os pulsos foram cortados com lâminas de barbear, também há marcas de corte na garganta. Ambas as mãos estão sujas de sangue, e Miguel começa a tremer e a se debater. Cristina sabe que é hora de tomar uma decisão. Mas não pode se render novamente às chantagens e bizarrices do namorado sociopata. Respira fundo. Já passou por aquela situação outras vezes. Apanha o telefone, e liga para o serviço de emergências do hospital da Casa Verde. Não tranca a porta, apenas fecha, puxa suas malas ouvindo o barulho abafado das rodinhas no carpete do corredor. Enquanto espera o elevador chegar ao terceiro andar, arruma os cabelos usando como espelho, o metal prateado da porta do elevador. Entra no táxi que ainda a está esperando e desaparece no escuro da noite. Olha pela última vez a entrada do edifício Magnólia, e sabe finalmente, que ali, ela jamais irá voltar.

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