Parceiros da Vida – Parte 2

São Paulo. Sete de dezembro de 2008. Meia noite e cinco. Enquanto parte da cidade dorme, e outra se diverte estamos de novo em nossa missão. Mari teve gripe e não pôde vir nesta noite. Mas nosso trabalho tem que continuar. É meu segundo final de semana como voluntário na Missão Redentor.
De tudo que vejo e sinto, só há uma coisa que acho que não consigo suportar: os cheiros. Cheiro de cobertor velho, molhado e seboso. Cheiro de roupa suja, impermeável que há anos não sente o toque de água com sabão. Os cheiros peculiares das ruas.
Saímos outra vez da ponte Condessa de São Joaquim, no bairro da Liberdade rumo à Praça da Sé. Enquanto esperamos o farol abrir olho para o lado, para a minha direita, enquanto um homem come um pão seco com mortadela deitado no último ponto de ônibus da Av. Liberdade. Ele devora o mais rápido que pode como se aquela fosse a última refeição de sua vida.
Quando chegamos à Praça da Sé e abrimos a van, a fila começa. Os que moram nas ruas não resistem a uma fila. Nomes para mim são importantes. Sou professor e sempre tive que memorizar nomes, agora virou um hábito. Sempre que posso pergunto os nomes das pessoas que estendem o braço para pegar o pão com mortadela que eu ofereço. Nem todos respondem. Muitos estão cansados demais, bêbados demais, drogados demais.
De repente meu celular vibra, chegou outra mensagem. Uma amiga perguntando o que um professor está fazendo a essa hora com a ralé das ruas. Digo a ela que sou primeiro um ser humano, só depois sou professor. Envio um SMS para alguém que um dia fez parte da minha vida, alguém que eu não pronuncio mais o nome. Apesar de tudo, gostaria que ela estivesse lá fazendo alguma coisa realmente útil em sua vida sombria. Mas minha cabeça não estava para lembranças tristes. Não sou mais do tipo que se importa com coisas que não posso mudar. Meu caminho está cheio de batalhas que eu posso vencer. Como esta agora.
Uma jovem mulher está sentada encostada num mural com uma criança nos braços. A criança chora, mas ela parece estar em outro mundo. Os olhos injetados, o pensamento longe. Ela está imóvel. Visivelmente drogada. Meus novos amigos estão ocupados servindo a fila que nunca termina. Deixo meu posto e vou até a mulher. Aquele choro já está me irritando. Aproximo-me, e só então a mulher abre os olhos, ao menos tenta abrir. Pergunto se posso ficar com o bebê um pouco, ela não responde, apenas estende os braços e me entrega.
A criança está completamente encharcada. Está com fome. E nós não temos leite hoje. Minha jaqueta agora tem uma mancha de xixi de bebê. Tenho que fazer aquele bebê parar de chorar então penso em uma alternativa. Devolvo a criança para a mãe e peço para que ela me espere ali, “não saia daqui”, eu disse. Marta não gosta de saber que eu vou sair e deixá-los lá. Mas eu digo que é rápido, cinco minutos.
Corro desabalado em direção à Praça João Mendes, sei que há uma farmácia 24 horas lá. Tenho algum dinheiro na carteira e compro um pacote de fraldas, uma mamadeira e uma lata de leite em pó. Corro de volta para a van. A jovem mãe ainda está lá e a criança não parou de chorar. Pego a criança e retiro sua roupinha molhada. É uma menininha. Sou pai de dois meninos, trocar fralda é minha especialidade. Amauri prepara a mamadeira. A fila diminuiu bastante. A menininha finalmente pára de chorar ao tomar seu leite. Em poucos minutos dorme. Não deve ter mais que oito ou nove meses. Enrolo a bebê na minha jaqueta jeans e devolvo pra mãe.
Sou mole para sentimentos, e é inevitável segurar aquela lágrima, primeiro uma, duas, depois vem um monte delas. Numa prece silenciosa agradeço a Deus por não ser um dos meus filhos, que agora devem estar quentinhos na cama. Marta se aproxima e coloca a mão na minha cabeça fazendo um carinho. Marta tem cinqüenta e oito anos e me faz carinho como que de mãe pra filho. Pergunto a ela se um dia meu coração vai parar de se partir todo sábado a noite quando eu vejo tanta desgraça. “Se você se acostumar, é porque está na hora de fazer outra coisa”, ela diz.
Não sei qual será o destino dessas pessoas, dessas mães, desses filhos das ruas e do crack. Sabemos apenas que não podemos salvar o mundo, porque o mundo não pode ser salvo. Mas isso não nos desanima. Continuamos em nossa missão, nos sentindo menos humanos e mais divinos. Felizes por podermos ajudar alguém. Diz nas escrituras: Se um irmão ou uma irmã estiverem em nudez e lhes faltar alimento suficiente para o dia, contudo, alguém de vós lhes disser: “Ide em paz, mantende-vos aquecidos e bem alimentados”, mas não lhes derdes o necessário para os [seus] corpos, de que proveito é? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma.
Voltamos para as nossas casas exaustos às duas da manhã outra vez. Começo a comer um pão que sobrou. Raramente sobra alguma coisa. Volto para casa outra vez feliz e triste ao mesmo tempo. Apenas gostaria de saber por onde andará agora aquela mãe com uma criança enrolada na minha jaqueta, carregando uma sacola com fraldas e leite em pó. Acho que jamais encontrarei a resposta.

4 comentários:

cara isso e impressionante eu adimiro demais quem tem um coração forte o suficiente para realizar estas ações e realmente acho muito louvavel esta sua atitude e espero que você continue enquanto seu coração permitir meu amigo meus parabens

abraço

Há algumas pessoas que acham que ajudando a quem precisa estão sendo caridosas apenas com essas pessoas que foram ajudadas, mas não a satisfação de alimentar a quem tem fome, vestir quem tem frio ou apenas dar um pouco de atenção e carinho a quem precisa é de um prazer indescritível ,atitudes como essa enche nos de orgulho de nós mesmos , de saber que por pequena que seja nossa ação estamos ajudando alguem ou até mesmo salvando uma vida.
Por um motivo ou por outro as vezes deixamos as pessoas de lado esquecemos de ajudar e pensamos só em nós mesmos que foi o q aconteceu comigo mas lendo esse texto me acendeu novamente a vontade ser um pouco util e fazer minha parte.

(PS:adorei o texto)
Bjos

Este comentário foi removido pelo autor.

Estou sem palavras...
Enquanto lia, parecia estar vendo cada segundo descrito.
Tenho,em mim, a sensação de angústia por imaginar que isto é realidade e a alegria por saber que ainda existem pessoas raras que se preocupam com esta realidade.
Parabéns!!!
É assim que se faz a diferença!

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