Parceiros da vida - Parte III

Tenho memória fotográfica. Se vejo uma vez, jamais esqueço um rosto. Foi assim que o reconheci. Mas preferiria jamais tê-lo visto.
Estávamos outra vez na Liberdade. Eu estava ansioso para chegar logo na Praça da Sé. Já havia se passado uma semana desde aquela noite insólita quando eu peguei aquele bebê nos braços. No fundo eu estava torcendo para que aquela mãe estivesse de novo por lá. Eu havia comprado um fardo grande com fraldas e havia conseguido alguns sacos de leite em pó, para o caso de encontrar aquela pequena família outra vez.
Olhava atento para todos os lados à procura delas pela praça. E nada. Eu estava exausto. Havia trabalhado a manhã toda e feito uma prova importante à tarde. A princípio eu não estava disposto a aparecer na Missão Redentor, mas eu tinha que encontrar aquela família de novo. Papai Noel estava esperando e elas não tinham a menor idéia.
Quando a fila terminou assim como nossos suprimentos, resolvi andar alguns passos para ver se localizava a jovem mãe por ali. De repente o susto. Uma mão segurou meu pescoço e eu o ouvi dizer: “Parado aí, pode passar o relógio para cá”. Meu coração batia tão forte que eu tremia todo. Tirei o relógio sentindo uma ponta de faca nas minhas costas, e estendi para ele que pegou imediatamente. “Suma daqui”, ele disse e foi exatamente o que eu fiz.
Olhei para trás, não resistindo ao impulso e o reconheci. Era um dos homens a quem havíamos acabado de alimentar. Quase não acreditei. Só depois foi que fui me dar conta que os que moram nas ruas fazem suas próprias leis. Principalmente quando é madrugada e eles se tornam os donos da noite.
Era uma forma de agradecimento que eu não queria receber. Definitivamente não era. Na minha vida aquela não era a primeira vez. Eu havia salvado a vida de minha ex-mulher uma vez e como agradecimento ganhei um divórcio. Quando salvei a vida da minha ex-namorada tirando-a do inferno que vivia, dando a ela uma vida nova, segura e fiel, ganhei como agradecimento a separação. E agora isso. Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas.

Mas todos estes episódios foram pequenos solavancos no meu caminho e essas balas não iriam me fazer parar. Nem me derrubar. Voltei para a van onde meus amigos me esperavam. Eu estava desesperançado e só pensava na minha prova na manhã seguinte, dali a algumas horas.
No caminho de volta falei pouco. Quando cheguei em casa e me deitei, fiquei pensando em tudo que havia acontecido até ali. Lembrei-me daquela passagem bíblica quando Jesus curou os dez leprosos e eles na euforia por terem sido curados, saíram correndo e nem se lembraram de voltar e dizer um simples obrigado. Exceto um.
Em minha missão, não espero agradecimentos por salvar vidas, apenas um pouco de reconhecimento, de gratidão. Mas isso não me faria desistir. Continuo salvando as vidas necessitadas que aparecerem pela frente. E faço isso de coração aberto. Mas sinto falta do meu relógio. Esta semana compro outro. Só não posso me esquecer de tirá-lo na próxima vez.

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