Já fazia duas semanas que eu não ia até a Missão Redentor e estava começando a me preocupar. Naquela tarde de sábado eu havia trabalhado bastante e havia trabalhado ainda mais no final da tarde. Estava longe de casa, e de onde eu estava no bairro do Cambuci até a minha casa era uma hora de distância. Ainda por cima eu havia prometido a mim mesmo ir à igreja naquela noite.
Tudo que eu queria depois que a reunião na igreja acabou era uma sopa quente e minha cama. Minha namorada estava longe e não fazia sentido sair sem ela e ainda por cima eu estava exausto.
Eram 22h30min quando meu telefone tocou. Animei-me com a possibilidade de ser a minha linda Janie. Era o Amauri. Senti minha consciência doer. Finalmente ele me convenceu. Levantei-me da cama, vesti os meus tênis de corrida e saí. Meus amigos já estavam na Sé distribuindo alimentos. Aquela cena me era peculiar.
Eu nem me animava mais em encontrar aquela jovem mãe de um mês atrás. Mas a noite estava apenas começando e algo iria acontecer. Eu podia sentir. Depois que nossos suprimentos terminaram, vieram os cumprimentos do restante dos meus amigos. Os sorrisos eram genuínos e efusivos, afinal, deveria ser bom ter mais ajuda outra vez.
O sono começava a me rondar e eu já começava a querer voltar para casa quando olhei os grupos sentados no chão, recostados na amurada, comendo seus sanduíches com suco de pêra em copinhos descartáveis de plástico. Um pouco mais afastado estava um homem sentado com um dos sanduíches. Um branco, não muito mal vestido, os cabelos muito curtos. Perguntei ao Amauri se já havia visto ele por ali alguma vez, ele negou. Comentei sobre seu estado. Nem de longe ele parecia um sem-teto, muito menos um mendigo.
“Por que não fala com ele?”, o Amauri me perguntou. Para ele é fácil, afinal, ele é psicólogo e já fazia aquilo a um milhão de anos, mas mesmo assim eu fui. Um recém chegado às ruas.
Respirei fundo e me aproximei. Cumprimentei e perguntei como estava a comida, sem a menor idéia do que fazer depois. “Boa”, ele disse, sem olhar para mim. Ele parecia ter uns cinqüenta anos e provavelmente não iria querer muita conversa com alguém quase a metade de sua idade.
“Você não parece um desabrigado”, eu disse e recebi como resposta apenas um “hum” sussurrado, mas audível. “Por que não me conta a sua história?”, perguntei sem saber direito o que estava fazendo. Após alguns instantes de um silêncio inquietante, ele falou: “Arnaldo Fachi”, e estendeu a mão para mim. Terminou de comer e finalmente olhou para mim, os olhos muito verdes.
A seguir contou-me sua história. Arnaldo era médico, e levara uma vida muito desregrada nos últimos tempos. A esposa havia se envolvido com drogas e havia vendido tudo que o casal tinha em casa para pagar as dívidas com o traficante. Quando já não havia quase nada a mais para vender, ele a mandou embora e ela foi morar com um cafetão cujo ponto ficava próximo à Rua Augusta.
A partir daí sua vida se desmoronou. Primeiro foi a bebida. Gastou uma pequena fortuna com prostitutas e cocaína. A seguir veio o crack. Depois as drogas mais pesadas. Ninguém no Hospital São Luiz pareceu notar. Logo depois ele deu um tempo com as drogas, sempre falando o que todos os viciados dizem: que podem controlar o vício. Mas depois de alguns meses veio o Valiun. Tomava sempre à noite, nunca largando o vício, mas sempre tomando cuidado para não ficar viciado.
Até que um dia, ainda grogue com os remédios ele deixou um bebê cair. A criança morreu na hora. Arnaldo foi processado e sua licença cassada. Sem saber o que fazer, ficou em casa vários dias, encharcado de bebidas e é claro, Valiun.
As contas não pararam de chegar. Sem emprego, ele teve que vender a casa e gastou o que sobrou em drogas. Meses depois soubera que a ex-mulher fora estuprada e morta por traficantes.
Indo de clínica em clínica de recuperação, ele consegui se manter sóbrio por muitos meses e até estava procurando um emprego, mas ainda era orgulhoso demais para pedir ajuda à família em Barueri. Estava agora morando em um albergue, mas tinha uma entrevista de emprego na quinta-feira, e ele estava confiante que iria conseguir. Com o emprego iria alugar uma pequena casa e reconstruir sua vida.
Mesmo diante daquela história triste eu estava feliz em poder ajudar de alguma forma. Eu estava lidando com pessoas reais, fatos reais, que poderiam ter acontecido a qualquer pessoa, inclusive eu mesmo.
Cumprimentei-o, apertando sua mão e desejei boa sorte. Estava na hora de voltar para casa. Minhas aulas recomeçariam na segunda-feira. Os dias se passaram. Era terça-feira agora e eu estava num intervalo de uma aula para outra. Na internet abri um portal de notícias. Há tempos perdi o interesse por jornais e televisão, apenas acompanho alguma coisa pela internet. Eu não costumo acompanhar as notícias em São Paulo. Já tenho problemas demais para me preocupar, e não sei porque cliquei nas notícias da cidade. Finalmente uma delas me chamou a atenção.
Na segunda-feira, a noite anterior, às 23h40min a polícia foi mandada para uma loja de bebidas na rua Maria Paula no centro. O dono do lugar, que mora na sobreloja tinha ouvido tiros e disse que na frente de seu estabelecimento havia um homem caído. Na calçada, a polícia encontrou o corpo de um homem. Branco. O sangue recente vinha de dois orifícios de bala na cabeça.
Mais tarde ele foi identificado como Arnaldo Fachi.
2 comentários:
poxa anderson este fico maneiro espero q vc sempre tenha está força de espirito parabens
abraço brother
gostei muito é bem a realidade da vida
IVONETE< Goiania .
Abraços.
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