Furia - por Handerson Pessoa

Das vinte e quatro horas que tem o dia, pelo menos cinco ou seis o Alvarenga (um dos meus amigos fictícios) perdia todos os dias no trânsito. Gastava pelo menos duas horas para sair de casa e chegar ao trabalho e mais três para voltar, lá pelas cinco horas da tarde. Raras eram as vezes que ele conseguia gastar menos de duas horas para chegar no trabalho. Mas não era essa a pior parte. Era o retorno. Ele até preferia voltar bem mais tarde para casa para não ter que se acabar naquele trânsito infernal. O que nem sempre funcionava.
O Alvarenga e eu tínhamos a mesma mania: ler dentro do ônibus. Depois de algumas conversas eu pude observar que ele pensava mais ou menos assim como eu. Ficávamos completamente alheios à tudo que acontecia à nossa volta e nos concentrávamos no que estávamos lendo, assim, o tempo parecia passar mais rápido dentro daquela lata de sardinha.
Numa dessas viagens (isso o Alvarenga contando) ele teve a oportunidade de pegar um ônibus mais ou menos vazio. Sentou-se na última fila, lá no alto. Ele pensa que de lá de cima pode ver tudo o que acontece. Pois bem, alguns minutos e vários pontos depois, uma mulher na casa dos quarenta anos (quarenta e oito ele imaginou) sobe um degrau e se senta ao lado dele.
Com um canto do olho ele olha para o livro dela: um dia de fúria. Não consegue ler o nome do autor. Volta a sua atenção para o seu livro, um pouco mais alegre por saber que outra pessoa está lendo ali do lado dele e por isso não vai ficar importunando sua viagem.
O Alvarenga já está acostumado a ficar lendo em lugares onde as pessoas falam alto e não respeitam o momento dos outros. Foi por isso que ele nem olhou para o lado quando a conversa daqueles três marmanjos começou. Todos se sentiram incomodados, mas ninguém falava nada. O problema não era o conteúdo da conversa. Era o volume.
- Rapaz, na minha terra só dá o Náutico, estádio enche todo jogo, isso que é time – disse o de camisa amarela.
- Eu também torcia para o Náutico, mas depois que eu vim pra São Paulo, meu negócio é só Corinthians. – disse o mais magro - O problema do Corinthians ta no técnico.
- Que nada cara, esse time já tá ruim a muito tempo, agora o Palmeiras joga certinho, só não ta dando sorte – completou o de camisa amarela.
- Cês tem que entender que futebol se joga não é com sorte não, é com raça – falou o de camisa xadrez.

E por aí ia a tal conversa.Como todo mundo sabe, mulher, religião e futebol não são assuntos que se discutem. A mulher que estava do lado do Alvarenga começou a ficar impaciente, olhava para ele querendo ele se juntasse a ela e fizesse um protesto silencioso contra os três elementos que falavam tão alto. O olhar dela era mais ou menos de quem dizia: “assim não dá. Você também está lendo, me ajude a controlar as línguas desses caras porque senão não vamos conseguir terminar nossa leitura. Vamos olhar de cara feia para eles para ver se desconfiam”. Mas o Alvarenga nem se mexeu. Fez de conta que não viu.

A mulher também tentou disfarçar, mas pelo mesmo canto de olho, meu amigo percebeu que ela já estava a poucos milímetros de descer do salto e causar um barraco ali dentro. Não deu outra. Minutos depois de tentativas frustradas, ela fechou o livro com força e murmurou: “que inferno, asjsolwe nrifi, assim não tem como ler, esses caras safhasi feuren que só ficam noiun iuerno noiru parar de falar de futebol não? Entenderam? Poisé, o Alvarenga também disse que não entendeu nada do que ela falou, até porque ela estava ali mais falando para ela mesma. Mas o de camisa xadrez escutou.
Olhou para ela com a feição bem fechada, como quem queria intimidar:
- A senhora está incomodada com alguma coisa? – ele falou naquele volume que fez quase todas as cabeças virarem para trás.
- Humm... é...como é que é? – ela respondeu. Tinha sido pega de surpresa e não sabia o que iria dizer. As palavras se engasgaram e ela não conseguia falar.
- Estou perguntando se a senhora está incomodada com alguma coisa, to ouvindo a senhora fazendo piadinha aí senhora fazendo piadinha aa, t ests.idar:
futebol nao?echou o livro com força e murmurou: "que sei l[a cá gente. Se tiver alguma problema pode dizer dona, mas não fica aí com conversinha fiada não que eu não gosto.

A mulher ficou completamente deslocada ali dentro. Todos olhavam para ela esperando que ela dissesse alguma coisa mas ela ficou completamente sem ação. Tudo o que conseguiu dizer foi:
- Olha moço, cuida da sua vida aí tá bom, me deixe em paz
E os três patetas continuaram sua conversa, mas agora num tom um pouco mais baixo. O que não estimulou aquela senhora a continuar a sua leitura. Um dia de fúria. Uma lágrima, solitária, mas daquelas bem pesadonas pingou sobre o livro dela. Ela disfarçou. Todos estavam olhando para ela que a todo instante olhava para trás para ver se outro ônibus viria, e ela então pudesse se refugiar em outro lugar onde nenhum dos passageiros saberia o que tinha acontecido.
- Agora fica aí disfarçando. Mulher imbecil - os caras disseram baixinho mas ela ouviu. O autor da frase, o de camisa xadrez, que já tinha implicado com ela soltou um risinho abafado.

A mulher fechou a bolsa, guardou tudo o que conseguiu dentro dela e levou a mão direita à cabeça. Soltou os cabelos. Puxou o palito que prendia suas madeixas louras acinzentadas pela idade, e num movimento rápido e único, cravou o palito na perna do cara de camisa xadrez. Era um desses palitos que na verdade se parecem com um espeto, daqueles espetinhos de carne. O palito passou pela sarja da calça do homem e atravessou a perna, perfurando o tecido do assento. Ela aplicou tanta força que o palito pareceu estar atravessando uma camada de iogurte.
O grito do homem foi tão alto que o motorista freou o ônibus no mesmo instante. Os gritos de "Meu Deus" e "que mulher louca" tomaram conta de todos ali no ônibus. O Alvarenga só olhava. A mulher se levantou num salto.A porta foi aberta. Ela empurrava tudo e todos, e no meio da confusão, todos só queriam saber da perna do cara e daquela enxurrada de sangue que se espalhava pelo banco e pelo assoalho do ônibus. Naquela balbúrdia, ninguém sequer observou a mulher sair. Ela desceu, ergueu o dedo médio para o homem que mesmo naquele momento de intensa dor conseguiu olhar para ela lá fora do ônibus. Ele ainda conseguiu ouvi-la gritar: "Seu palhaço, agora vê se aprende". A mulher andou alguns passos, entrou o próximo ônibus que vinha logo atrás. Foi lá para o fundo, pegou o seu livro, abriu um sorriso e começou a ler. Uma noite de fúria.

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