Vinho Amargo - parte I - por Handerson Pessoa


Semana passada eu tinha combinado com o Beto de assistirmos o jogo do São Paulo na casa dele. Eu sempre tive uma pontinha de inveja moderada do meu amigo. Beto é meu amigo imaginário a dez anos. Liguei para o meu amigo confirmando, mas as ligações só caiam na caixa postal. Ele trabalha num banco. É o gerente. Deixei um recado mas o Beto não me retornou. O Beto se separou da mulher, e os filhos ficaram com ela. Já não se viam a anos.
Tenho certeza que meu amigo passou momentos um bocado ruins, mas logo ele se apaixonou pela Flavinha e estava muito feliz, só não estava feliz completamente, porque ela ainda teimava em viver naquele casamento fracassado que já se arrastava por muitos anos.Tentei alertar o Beto mas ele não me ouvia.
Eu então achei que uma boa rodada de cerveja enquanto assistíamos o jogo fosse deixar o meu amigo mais contente, afinal, já fazíamos isso a anos. Éramos tão amigos que eu até tinha a chave do apartamento dele. Cheguei no edifício Golden Garden, no Leblon, subi os dezoito andares e bati na porta. Ninguém abriu e eu resolvi entrar.
Entrei e encontrei uma carta escrita por ele debaixo de um cinzeiro completamente cheio de tocos de cigarros a algum tempo fumados. A carta dizia:

"Flavinha:
Já fazem trinta minutos que você disse que me ligaria em cinco minutos e nenhum sinal seu. Deve estar muito ocupada aí na sua empresa, eu entendo. Sentei na minnha sacada e no rádio tocava aquela música que você tanto gosta. Então o céu começou a clarear e eu tive uma revelação que não gostei: que por mais que você diga que me ama e quer ficar comigo (o que eu acredito de verdade), jamais seremos uma família, porque a cada dia que passa você aperta mais o nó que te prende à sua firma e ao mesmo tempo ao seu marido, que quis o destino assim, é seu sócio.
"Eu ando pelo mundo prestando atenção em cores que eu não sei o nome..."
Sei do seu amor, e espero que você saiba que para mim você foi, é, e sempre será a mulher da minha vida. Esperei trinta e dois anos por você e você veio.
"Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo cores..."
Depois de tanto esperar por você e você nao conseguir largar do que te prende, eu finalmente tomei a decisão de ir embora. De uma vez por todas, sem te dar ao menos um tchau, porque eu sei que não conseguiria.
"Passeio pelo escuro eu presto muita atenção no que meu irmão ouve..."
Sei que será muito difícil, mas sei que seria mais difícil ainda viver perto de você sabendo que você é minha, mas não posso ter você. Então me lembro das nossas tardes onde fazíamos juras de amor eterno e dizíamos que nada iria nos separar, e que era só uma questão de tempo para ficarmos juntos.
"E como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora..."
Iríamos contra tudo e todos mas ficaríamos juntos para sempre. Queria envelhecer ao seu lado, cuidar de você, te dar todo amor que você sempre mereceu e não teve (ou será que teve?).
"Ah eu quero chegar antes, pra sinalizar o estar de cada coisa filtrar seus graus..."
Por isso resolvi ir embora, porque não consigo viver mais com a idéia de te dividir com outra pessoa e ainda não ter você porque você está cada vez mais mergulhada no trabalho e nos últimos tempos tem me dado cada vez menos tempo.
"Eu ando pelo mundo divertindo gente chorando ao telefone..."
E tempo era a única coisa que eu te pedia em troca, mas com o tempo, o tempo foi acabando e eu estava ficando doente com isso. Emagreci quase dez quilos e num dia que deixei o carro em casa, desci duas vezes no ponto errado porque eu simplesmente não parava de pensar em você. Foi naquele dia que mais uma vez você me pediu para te esperar porque tinha encontrado uma amiga e não podia continuar falando comigo no telefone. Primeiro eu ficava irado, mas como tempo foi virando tristeza por ver tanta coisa, tantos planos irem abaixo. Eu até tinha parado de fumar para te agradar.
"E vendo doer a fome, nos meninos que tem fome..."
Escrevi tantas cartas que não mandei, tantos emails que viraram rascunho naquela nossa conta no Gmail que criamos só para nos correspondermos secretamente e que um dia seu marido quase descobriu.
"Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela, quem é ela, quem é ela, eu vejo tudo enquadrado, remoto controle..."
Marido. Seu marido sou eu. Quero dizer, era eu. Mas infelizmente não posso ser mais porque você insiste em não ser a minha mulher.
"Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê? Minha alegria meu cansaço..."
Então, depois que a música acabou, eu liguei para a companhia aérea e comprei uma passagem para Londres, de lá pego outro avião e vou para Reykjavik, para aquela casa onde uma vez passamos uma semana brincando de lua-de-mel e que comprei para criamos nossos filhos cheios de amor.
"Meu amor, cadê você, eu acordei, não tem ninguém ao lado..."
Desculpe mas eu tinha que fazer isso. Você sabe o endereço. Sabe que estarei te esperando. Te amo. Adeus. "

Eu não sabia se publicava ou não a carta do Beto. Mas sei que ele queria ser ouvido. No começo fiquei chateado por ele não ter se despedido, daí logo entendi meu amigo. Seu lugar não era aqui. Nem nesta época. Meu amigo imaginário pertencia a um mundo muito diferente deste. Espero que a Flavinha caia na real um dia e veja que o amor é maior do que um casamento de aparências só para calar a boca das pessoas e fazer feliz a filha que não aceita a separação. Existem outras maneiras de fazer uma filha feliz. Espero que ela veja que ela é tudo para o meu amigo, que ela é a vida dele. E espero que ela pegue aquele maldito passaporte e vá ao encontro do seu grande amor, porque ele está lá esperando. Espero mesmo.
Fui embora, deixei a caixa de cerveja na mesa, a carta debaixo do cinzeiro e liguei para a Flavinha para contar. Não sei se ela foi lá no apartamento, nem se leu a carta de despedida.
O São Paulo ganhou de 3x0. Será que lá de Reykjavik o Beto assistiu? Tenho saudades do meu amigo Beto. Só quero que você seja feliz my friend.

2 comentários:

Essa ficou nota 10!!!!!
Parabéns, você está escrevendo cada dia melhor. Tem pessoas que não dão valor às pessoas que tem, e tem outras que amam sem ser correspondidas, mas nunca devemos perder o nosso valor. Trabalho e aparências nunca devem ser desculpas para não se viver um grande amor.
Não esquece do churras lá em casa sábado que vem. Espero você. Beijos

?????????
Hummmmm...churras??? Sei...

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