Perdendo dentes

Brooklyn. São Paulo. Cinco horas e quarenta e dois minutos. Fim de tarde de uma terça-feira pouco movimentada. Os clientes já foram quase todos atendidos (na verdade apenas um apareceu) e agora só resta mais uma alma para ser curada. O último. O derradeiro. O doutor Murilo o observa com atenção. O paciente está lá, tenso como o quê, refestelado na cadeira de dentista esperando pela temida e tremida anestesia quando o doutor irá lhe curar da dor de dente que a tanto tempo o aflige. Doutor Murilo prepara o composto que irá penetrar pela gengiva maltratada e deixará a região insensível. Vai fazer um canal. Primeiro passa um dose de uma pomada com gosto de laranja usando o próprio dedo indicador direito na gengiva do homem. A seguir o brilho da luz na extensão da agulha faz o homem ter um arrepio. Uma piscada mais forte, uma leve sugestão de dor, uma respiração profunda, e lá se foi a anestesia. Cinco minutos depois o homem mal consegue falar. Perdeu o poder de controle sobre a língua. Junto com a morte repentina do membro falador, vem também o cansaço seguido de um sono que ele não sabe de onde veio. Ainda ouve o doutor Murilo dizer: “relaxe, é um novo tipo de anestesia para deixar a pessoa ainda mais à vontade.” Doutor Murilo é ágil, enquanto o paciente vai se embalando naquele sono de recém nascido, ele já prepara outra injeção com um anestésico diferente. Pega um alicate do tipo binlão e deixa na bandeja próximo à cadeira. A lista de instrumentos está à sua disposição: abaixa-lingua, cureta, fórceps, espátula, brunidor e toda a parafernália típica dos dentistas. Então ele começa. Com a ajuda do fórceps e de uma cureta, doutor Murilo extrai um dente, e outro e mais outro. Logo o paciente já não possui dente algum na parte superior. Todos estão agora dentro de um vidro transparente de densidade média onde serão estocados e quem sabe até vendidos para a faculdade de odontologia a preços módicos. O doutor abre um armário onde agora é possível ver uma horda de frascos idênticos, todos com dentes de pacientes desavisados que caíram em sua lábia. Todos os dentes da arcada superior. O paciente irá acordar algum tempo depois e descobrir que o efeito do remédio foi completamente diferente, porque ele, o paciente possui um tipo de bacilo que faz com que um dos nervos que passa por dentro das gengivas pare de funcionar, deixando os dentes sem proteção na raiz e despencando do céu da boca como frutas maduras a se desprender de uma árvore. A todos os pacientes o doutor Murilo diz a mesma coisa, com algumas leves diferenças na mesma história. Na verdade o doutor Murilo não se chama Murilo, e sim Cezion Firmino de Paula e nunca foi doutor. Abandonou a faculdade de odontologia ainda no primeiro ano depois que foi pego traficando remédios no mercado negro. Agora em seu consultório é assim que as coisas funcionam. O doutor cobra cinqüenta reais por qualquer tipo de trabalho que precisa realizar. Arranca os dentes superiores dos seus pacientes e em seguida vende o tratamento completo de reposição dos mesmos dentes que o paciente acabou de perder por causa da ação do tal bacilo. Doutor Murilo sorri satisfeito. Mais um cliente que saiu depois de deixar três cheques assinados no valor de oitocentos reais cada um. O tratamento de reposição dos dentes será completo e irá começar na semana que vem. Como falta uma semana, doutor Murilo, para não esquecer nem se confundir mais tarde, anota o nome do cliente numa etiqueta e prega no frasco de vidro com os dentes agora polidos, limpos e tratados. Liga para uma companhia aérea e pede uma passagem para Florianópolis. Vai passar o final de semana na casa dos pais onde seu pai que também é dentista, lhe fará uma revisão nos dentes. Sem a misteriosa anestesia.

3 comentários:

Boa!!
Quando li até senti que estava presente na sala.
Também me fez lembrar uma "querida" conhecida.
Ela simplesmente tirou todos os dentes bons que tinha (só um pequeno detalhe: todos estavam bons) porque o marido da coitada teve que extrair devido a má conservação dos mesmos.

Só outro detalhe esta história é real!!

Andeeeeeeerson, meu muito bom...
Mais sabe, agora fiquei com medo de ir no dentista. :s

Preciso muiiito que me explique de onde veio tamanha imaginação, pois eu vou no dentista toda semana por causa do aparelho...

Nao vou confiar mais nela.

:s



Beeijo!

É isso que pode acontecer quando os filhos querem ser iguais aos pais mesmo não tendo nenhum talento para "a coisa" , fazem qualquer esforço para realizarem os pais e se sentirem realizados , mesmo que esse "esforço" seja apenas pura imaginação e picaretagem XD.

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