Aurora Boreal - parte II

Sentada sobre a tampa da privada ela lentamente começa o ritual de se despir. Tudo ainda gira ao seu redor e por isso ela fecha os olhos com cuidado para não sofrer ainda mais com a dor de cabeça que a assola. Quando está completamente nua, leva as mãos à parede negra de porcelanato e liga o chuveiro sentindo as gotas pesadas e quentes invadirem cada centímetro de seu corpo. Ainda há tempo de mudar de idéia e optar pela banheira, mas agora que recobrou os sentidos, tem medo de se afogar, o chuveiro é mais seguro. E lá mesmo ela fica por quase vinte e cinco minutos sentindo sua mente ser trasladada para um balneário onde há uma fonte inesgotável de energia e vida.

O cair da noite tornou o ambiente mais frio. Há um aquecedor de ar em algum lugar, mas o frio ao sair do banheiro não a deixa pensar direito. Precisa se aquecer. Caminha sobre o carpete branco do corredor se sentindo pouco melhor e apanha suas roupas na gaveta de um móvel. Agora as diversas camadas de roupa a fazem se sentir melhor.

Ana Paula volta à sua sala onde paira a baderna e olhando para todo aquele espetáculo, as mãos vão ao queixo, depois à boca. Já é hora de se livrar de tudo aquilo. Vai até o aparelho de som e em meio à torre de CD’s, ela escolhe seu preferido, que está no topo da lista. Suas mãos ainda tremem e após algumas tentativas malfadadas de abrir a caixa, uma pequena ponta rasga a pele fina de um de seus dedos. Um xingamento abafado. No armário do banheiro há uma pequena caixa de primeiros socorros e ela se sutura.

Um som toma conta da casa quando Lisa Stansfield começa a cantar Never Never Gonna Give You Up. Ana Paula fecha os olhos e lembra-se do sem número de vezes que viu o clipe quando a cantora sai nua da banheira cheia de água e sai andando por uma rua onde todos os olhos a observam. A música já virou seu mantra.

A música que está quase no fim agora disputa o som com o telefone que volta a tocar. Ela se lamenta por não ter desligado o aparelho, agora não sabe ao certo se deve atender àquela ligação, mas sabe que a essa hora da noite de sábado, nada poderá ser tão importante. Mas como o telefone não parasse de tocar, ela finalmente atende.

“Hello”, ela atende em inglês.

“Ana Paula Mendes Saviolli é você?” a voz do outro lado da linha pergunta, com uma leve sugestão de nervosismo.

“Quem está falando?”

“Meu nome é Amir, não nos conhecemos direito, mas é que eu quase te atropelei na noite passada e quando você correu, sua carteira caiu, então eu..”

“Seu desgraçado, quase me matou de susto e medo”, ela esbraveja, “não se pode simplesmente sair desse jeito por aí colocando a vida dos outros em risco, você é louco?”

“Por favor me desculpe, é que você surgiu assim de repente e eu não pude fazer muita coisa. Olha, me desculpe ter olhado em sua carteira mas eu precisava saber quem você era para poder devolvê-la para você”, Amir explica, na defensiva.

“Afinal quem o senhor pensa que é?”, ela fala de novo elevando a voz, “espera aí, o que está fazendo em Oslo?”.

“Eu sou fotógrafo, estou numa turnê expondo meu trabalho por toda a Europa. O Vernissage tem início na noite de amanhã, porque você não vem? Assim pode pegar sua carteira de volta e podemos nos conhecer numa circunstância melhor, o que acha?”

“Não quero te conhecer, só quero meu documento de volta, se não se importa. Não gosto de vocês e não dou a mínima para o que você faz, agora eu tenho que desligar”, ela diz num rompante de ironia e ignorância, tudo junto, todas as más características que se tornaram parte de seu comportamento hostil.

“Tudo bem Ana Paula, desculpe ter tomado tanto tempo seu. Estarei na galeria nacional de arte moderna a partir de amanhã às sete da noite. Não será difícil me encontrar, eu levo seus documentos para você. Eu estarei aguardando próximo ao quadro que se chama “A Lágrima”. É um quadro onde há uma mulher que tem um manto sobre a cabeça e atrás tem...”

O som de final de ligação deixa Amir confuso. Do outro lado da linha, Ana Paula agride o telefone, está agora tomada pela irritação e pelo ódio, mas no fundo sabe que precisa pegar de volta os seus documentos. Não vê outra alternativa a não ser ir até a galeria.

Respira fundo e decide que irá até lá no domingo à noite. “Entrar e sair”, ela pensa. Tudo poderá ser simples e rápido. Ela só precisa estar viva.

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