Nimbus

Já que não estou mais nem aí pra esse celular, resolvo desligar de uma vez por todas. É nessa hora que ela liga, beirando às duas da manhã. Número desligado ou fora da área de cobertura. Não quero pensar em nada, não quero fazer nada, e que se dane a bagunça organizada da minha casa que eu não to a fim de arrumar. Só quero ficar aqui deitado no meu sofá enrolado no meu edredom azul nessa puta madrugada de sábado. Eu não me lembro de ter ido pra cama, nem sei como fui parar lá, mas abro um olho e acho que já são umas dez da manhã. Aperto as teclas do telefone, daí me lembro que desliguei. Puta merda, já é uma e meia da tarde e eu tenho compromisso as duas, com aquele velho amigo o Benedito. É ele ligando, remarcando pra outro dia porque ta chovendo. Ótimo, penso. Combino de ver o jogo do São Paulo na casa de uns amigos, assim eu me distraio, e volto a ser um pouco mais ser humano. Ela me liga outra vez dizendo que acabou de acordar. Talvez a gente saia mais tarde. O caminho é longo até a casa dos amigos, parece não chegar nunca. Mas chega. Festa. Festa. Festa. Resolvo abandonar o celular jogado numa mesa que agora não sei onde é. É um daqueles dias que não estou suportando o cricrilar do aparelho dizendo que chegou mensagem. Não tenho muito caráter com o celular. De dia quero que ele se foda, mas a noite quero que ele exista e me faça companhia. O telefone toca desesperado e alguém vem me entregar, já são oito da noite e eu tenho que voltar pra casa. Mas ela quer me encontrar. Eu a quero encontrar. Marcamos num ponto escuro da noite gelada e quando eu entro naquele carro, sei que algo vai acontecer. Não sei como, não sei quando, mas vai acontecer. Vagamos sem um rumo certo até pararmos lá no estacionamento superior do Shopping Ibirapuera, de onde podemos ver uma parte da cidade, e os aviões que passam raspando por sobre nossas cabeças. Ela está linda, eu penso, naquela roupa preta cheia de camadas, e anda desfilando um sem número de predicados. Bons predicados. O vento que sopra lá em cima é gelado, mas isso agora não importa. As nuvens, num estágio entre Nimbus e Stratocumulus fazem o céu ficar amarelado e cinzento ao mesmo tempo. À direita, a luz dos faróis de um avião atravessa o céu, junto com aquele barulho, como se o céu estivesse parindo aquela aeronave. Ela olha, eu olho. Ele se aproxima. Passa a poucos metros das nossas cabeças, e quando ela vira pra ver a rota que ele está, nossos olhos se cruzam, nossas mãos se tocam e nossas bocas se fundem numa só, deixando o resto do mundo ali, embaixo dos nossos pés, como se mais nada existisse. Saímos de órbita. Nimbus, Cumulus, Stratus. Mesosfera, Eletroesfera. E é isso que me deixa ainda mais na sua. A incerteza. O elemento surpresa. Se ela vai ligar amanhã? Não sei, não quero saber e não tenho raiva de quem sabe. Não tenho raiva de ninguém. Não tenho raiva das pessoas que já passaram pelo seu corpo, não quero degolar quem talvez ainda passe e tampouco me chatearia pensar que talvez muitas ainda passarão. Não me importa se você vai ficar meia hora ou uma hora inteira. Não me importa se você gosta mais ou menos de mim ou por inteiro. Nada me importa, a não ser o desejo de te empurrar naquela cama e experimentar de novo aquele movimento meio ponto e vírgula que você faz. Não sei explicar. Não sei o nome de ninguém da sua família, não sei se quero conhecer seus amigos, não preciso que você me abrace depois e não faço questão de ser o homem da sua vida. Não tenho medo de ficar com cara de idiota ou de gritar muito alto. Não tenho medo de nada, afinal, a gente só tem medo do que a gente ama. Se me der sono eu durmo, se me der vontade de falar um palavrão alto, falo. E o mais fantástico de tudo é que já que estou tão à vontade, já que meu cérebro louco não está vivendo nem no passado e nem no futuro e apenas no presente do seu corpo quentinho e cheiroso e já que nada em mim dói porque nada em mim sonha... Eu nunca senti tanto prazer em toda a minha vida. Prometi não tentar entender e apenas sentir, sentir mais uma vez.

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