Inferno

Era domingo de manhã. E nenhum plano para o resto do dia. Pior do que não ter nada para fazer, é ficar em casa sem ter o que fazer. Resolvo sair e dar uma volta, sem ter a menor noção de para onde ia. Já sei. Plim! Pisca a luzinha da idéia. Já faz tempo que ando querendo fazer um city tour, para conhecer esses lugares que eu só vejo na internet e que ficam aqui mesmo na capital. E lá fui eu para a Pinacoteca, tomar uma dose de cultura. Sol forte, calor horroroso (detesto calor) e lá no fundo daquele ônibus está um senhor atrás de mim e começa a passar o dedo na minha tatuagem do pulso. Olho para ele com cara de poucos amigos e ele parece cair na real. De repente começa a conversar comigo. Eu não quero conversa, e aumento o volume da música. Aquele mau hálito me deixa nauseado e logo dou um jeito de mudar de lugar. Quando mudo de condução, entro naquele ônibus 5154 que vai até a Estação da Luz. Quem quiser conhecer São Paulo sem muito esforço, pegue essa linha. De tudo acontece nela. Na minha vez foi uma série de fatos utópicos e tão surreais que nem eu mesmo acreditei. Primeiro foi o motorista absolutamente perdido, passamos três vezes pelo mesmo lugar ali nas proximidades da Avenida Prestes Maia, no centro, até ele descobrir para onde iria. Ele faz uma curva muito fechada e rápida e não consegue dominar o veículo que raspa a frente do lado direito em um muro e estoura o pára-brisa. Minutos depois, olho para fora e tem um rapaz forte sem camisa fumando. Quando o motorista resolve partir, ele pede para esperar e entra no carro. Não sei explicar como isso ocorre comigo, mas às vezes consigo ver coisas que não aconteceram ainda, e quase sempre acontece. É como se fosse uma premonição, um sexto sentido. Farejo confusão, e é dito e feito. A cobradora invocada não quer deixar o cara passar sem camisa, e ele começa a gritar e a socar a caixinha onde ela guarda o dinheiro. Ela não se abala nem um pouco e o que resta é ele pegar a camisa e vestir. Senta e fica encarando a mulher. Alguns pontos depois entra uma mulher e uma moça. Feia, mas ô mulher feia que eu nunca vi igual. Passa por mim e fecha a cara. Olho para trás e as duas estão dois bancos atrás de mim. Olho de novo, as duas estão de mãos dadas. Olho outra vez e as duas estão num beijo tão apaixonado, daqueles de fazer barulho e incomodar todo mundo ali perto. Eu já vi esse tipo de coisas, em revista, em televisão e filme, mas quando é na vida real, mesmo as mentes mais liberais como a minha ainda se sentem incomodadas. Finalmente as duas descem e saem abraçadas e um cara grita da janela: “vai ser feia assim lá na puta que o pariu”. Me bate uma crise de riso. Finalmente chego à Estação da Luz. Algumas dúzias de passos depois uma mulher ainda mais feia do que a do ônibus passeia com um shortinho jeans e uma blusa branca e me chama para a casa de meretrício. Eu sigo em frente e um cara, visivelmente embriagado, segura o meu braço e eu o empurro. Tem um grupo de uns dez policiais, desses da guarda metropolitana, e eu pergunto a um deles onde fica a Pinacoteca. Ele apenas diz: “segue essa rua aí”. Quando entro na rua, sinto que não quero mais prosseguir. Tudo que consigo pronunciar é: “mas que diabrura é essa?”. À minha frente, pessoas enroladas em cobertores puídos e muito sujos sentados nas calçadas, fumando crack, e uma briga entre dois caras. Aquele tipo de cena que a gente que não passa por ali só vê no Fantástico ou em jornal. Literalmente uma visão do inferno. Drogados circulam catatônicos, gesticulando para o nada, conversando apenas com suas próprias fantasias. Zumbis com as cabeças cobertas pelos cobertores, com os rostos rapidamente iluminados pelos fachos dos isqueiros acendendo seus cachimbos. Outros perambulam sem destino pela calçada parecendo personagens do filme Resident Evil, alguns atravessam a rua para o lado onde eu estou, e se recostam num muro com marcas de fogueira. As fachadas das casas estão completamente degradadas. Aquele lugar parece um lugar abandonado, uma pequena cidade fantasma, habitada por seres do sub-mundo e legiões de demônios. E demônios de péssimo gosto para decoração. Dou uns passos para frente analisando se vale a pena correr o risco. Adrenalina sobe, pulsação acelera, e aquele instinto: “lutar ou correr” vem à tona. Olho para trás e dois caras estão vindo. Eu tento não me preocupar tanto porque afinal a polícia está ali, a uns cinqüenta metros de distancia. Mas agora já não sei se a policia está ali para me proteger ou para deixar eu me foder, já que foi o policial que me deu essa direção. Os caras chegam e o fio do fone de ouvido está pelo lado de fora da minha camiseta branca. Subitamente dou um giro de 180 graus e começo a voltar na direção dos caras que me olham e para a minha surpresa, abrem passagem. Desisto de continuar a seguir por aquelas ruas que minutos depois fico sabendo que é a Cracolândia. A pulsação demora a voltar ao normal e me sinto feliz por não ter continuado. Com certeza eu faria a alegria de alguns daqueles viciados quando tivessem levado minha câmera fotográfica e meu iPhone. E eu estaria ainda feliz por não ter levado uns belos socos, isso para não falar no pior. Entro no mesmo ônibus que eu havia chegado, e cai um temporal daqueles, depois um sol daqueles e mais outro temporal daqueles. E assim se foi minha tarde de domingo dentro do ônibus 5154 que te leva para tudo quanto é lugar, menos para onde você precisa ir. Pelo menos no plano imaginário eu fiz o meu city tour.

1 comentários:

Hahaha desculpa, mas eu ri muito da sua situação, imaginando sua cara de assustado.
Você apenas viu a realidade que não se vê todos os dias.
As vezes é bom vermos isso para agradecermos todos os dias, por tudo que temos. Por isso, agradeço por você ser meu amigo e ser assim sempre tão querido.
Beijocas da sua amiga
Jack F.B.

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