Reticências e etecéteras

E então quando eu voltei para o trabalho na segunda-feira foi que eu comecei a procurar informações sobre o inferninho que eu havia ido no dia anterior. Vi fotos e li reportagens sobre a cidade fantasma da Cracolândia, também conhecida como Boca do Lixo. Eu fico prostituto da vida quando leio esse tipo de reportagem. É por essas e outras que evito assistir jornal. Só acompanho o que acontece por canais de RSS e podcasts e olha lá. Para quem não mora aqui em São Paulo e (por incrível que pareça) nunca ouviu falar nesse nicho de usuários de drogas e traficantes, eu explico. Este lugar fica no centro da cidade, pertinho da Estação da Luz. Policiais militares andam pelo local com o coldre aberto e a mão na arma, prontos para qualquer coisa. Nas ruas, drogados perambulam sem noção nenhuma, completamente dominados pelo efeito rápido do crack. Os muros pichados e com aquela fuligem preta, mostrando que recentemente ali houve uma fogueira e a decoração das casas caindo aos pedaços desvalorizam ainda mais o lugar. Adolescentes brigam feito demônios caprinos, por causa de uma pedra, ou por sei lá o que. Mas não é isso que me revolta. O que me revolta é a presença dos policiais ali, alheios ao que acontece. Há muito tempo a prefeitura declara que acabou com a boca do lixo, mas não é bem assim que é. A polícia afugenta os drogados que saem de uma rua e vão para outra, já que não tem lugar para ir. Projetos e mais projetos são feitos e que não passam disso: projetos. O sistema não trabalha para resolver os problemas da sociedade. O sistema trabalha para resolver os problemas do sistema. Antigamente quando eu ainda freqüentava a ONG que distribuía alimentos para os mais carentes na Praça da Sé nas noites de sábado, eu entendia a situação dos sem teto. Mas ali na boca do lixo, a situação é diferente. Eles são viciados. Com pouca ou nenhuma consciência de mundo social quando a droga faz efeito, e se tornam como os seres inconscientes e maléficos do filme Eu sou a lenda. A polícia não pode prender os usuários de drogas, porque consumir drogas não é um crime. Não pode matar, porque o trabalho da polícia é proteger e servir. Mas aquelas pessoas ali não podem ser salvas de si mesmos. Muitos não querem ajuda, não querem se tratar e preferem a incerteza do amanhã, e a curta expectativa de vida, que não passa de um ano para quem é viciado em crack. Meu coração se compadecia ao ver tanto sofrimento nas ruas quando estava servindo os alimentos para aqueles que não tinham condições de ter o mínimo de dignidade. Isso não acontece quando vejo cenas como aquelas da boca do lixo. E não adianta vir me dizer que eles estão naquela situação por falta de oportunidade, ou por causa da diferença social. Ou pelo fato de serem viciados. Existem pessoas que fazem programas de reabilitação e estão sempre por ali tentando ajudar. Mas a grande maioria dos usuários não querem essa ajuda, não querem se curar, não querem ser sociáveis, preferem o sub mundo, o breu, a ignorância e as delícias delirantes dos entorpecentes. É nesse momento que meu lado emocional pára de funcionar, e o racional trabalha a todo vapor. E enquanto eu penso e repenso sobre como aquelas pessoas foram parar ali naquele estado moribundo e decadente, aqueles meninos, de sete, oito anos continuam a correr pelas ruas da boca do lixo com suas roupas esfrangalhadas, narizes escorrendo, e a pele mais suja do que o chão onde dormem. Correm com suas pernas fininhas e olhinhos esbugalhados, em direção aos fornecedores: “tio, me dá dois conto de pedra aí”.

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