Esquizofrenia - Cap. 1

Um copo se espatifa na cozinha. Acordo. Há alguém dentro de casa. Acho que não. O barulho estava dentro do sonho. Eu estava sonhando com a vizinha gostosa da casa ao lado. No sonho ela batia na minha porta com a famosa desculpa da xícara de açúcar. Minha mulher não estava. Perguntei se ela queria entrar, mas ela disse apenas que esperaria na porta. Viro. Caminho quatro passos em direção à cozinha quando percebo o susto. Olho para trás e lá estava a vizinha, faca na mão cravando nas minhas costas. Detesto esse sonho recorrente. Olho para o canto do quarto e a luz fraca que vejo vem lá de baixo. Meu quarto fica no andar de cima, e embaixo fica a sala e a cozinha que dá acesso ao banheiro. Sempre odiei essa casa que tem a porta de entrada pela cozinha e não pela sala. Procuro meu relógio. Droga. Esqueci o relógio no banheiro. Meu relógio nunca saía do meu braço, até começar as reclamações inusitadas da minha mulher: “Por que você toma banho de relógio? Relógio não tem sede nem precisa de banho”, ela dizia. A partir daí comecei a tirar. Que horas são? A Silvinha já deveria ter chegado. Desço a escada de ferro em caracol. Pés descalços. A luz vem do banheiro, a porta não está bem fechada. Mas eu tenho certeza que fechei e apaguei a luz. Olho para o lado e a porta da cozinha está aberta. Preciso parar com isso, apesar de agora estar em plena carga horária de trabalho dos bandidos. Penso em voltar para o quarto e pegar minha arma. Não existe arma. A porta do banheiro se abre. Há uma mulher, que sorri para mim com os dentes estragados, cabelo esvoaçado e bagunçado. Sorri para mim com dentes pretos dilacerantes. Me joga um beijo e aponta o revólver. Dispara. Uma. Duas. Três vezes. Tudo irá acabar e o mundo será o mesmo sem mim. Olho para o meu peito. Minha camiseta começa a se manchar. Caio.

Eu havia dormido assistindo um filme antigo, desses que vivem em promoção de catálogo nas locadoras. Minha mulher trabalha num hospital, havia sido transferida de ala recentemente, e começou a chegar às dez da noite. Depois foi às onze. E depois mais tarde. Comecei a dormir mais cedo, porque ela se atrasava demais. Virei um freqüentador assíduo da locadora mais próxima e era comum eu voltar com duas ou mais fitas para assistir. O marido paciente. O operário padrão do lar. Minha mulher chegava sem fazer barulho, olhava toda a casa primeiro, só depois subia as escadas, já completamente sem roupa. “Boa noite meu amor”, ela me dizia sacudindo duas trufas enormes com recheio de licor. E sem dizer mais nada, se jogava na cama mordendo uma das trufas e nos envolvendo numa mistura de chocolate, licor, suor e líquidos. Sexo artesanal. Três. Quatro vezes sexo. E só depois descia dançando as escadas para o banho. Volta e dorme. Olho o relógio na cabeceira da cama. São duas horas. Mexo em seu cabelo, “querida, sua mãe ligou” e ela vira para o lado: “Puta merda, deixa eu dormir, caralho”. No começo eu achava normal. Ela estava cansada. E meu sono já era. Pego o controle da televisão e ligo. Estava passando um seriado que não recordava o nome, e cada vez que voltava do comercial eu esperava passar o título que não passava. Quatro horas. Ela dorme um sono profundo. Levanto e faço um café sabendo que aquele vai ser outro dia daqueles, fruto de uma noite não dormida. Saio para o trabalho e quando vou dar o beijo de despedida ela murmura um “que inferno” e cobre a cabeça. Caminhei silenciosamente rumo à porta, olhei para trás e comecei a cuidar do meu dia.

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