Super Choque - por Handerson Pessoa


Já fazia quatro anos que o Tulio corria todos os dias pela manhã. Disposto no início a perder alguns quilinhos acabou gostando da idéia e pontualmente às seis e quinze da manhã lá ia-se ele a correr pelas ruazinhas de pedra do parque Guarapiranga. Numa dessas manhãs, depois de uma noite com uma das tradicionais tempestades paulistanas, Tulio não viu o fio que estava caído, resultado de uma árvore derrubada pelo vento. Quando viu já era tarde. Tentou se desviar mas acabou enfiando o pé numa poça d'água onde estava a ponta do fio. O choque alastrou-se pelo seu corpo em um segundo que pareceu durar uma vida inteira. Ele caiu, arremessado pela corrente elétrica e teve sorte de não ter ficado grudado ali.
Levantou-se ainda zonzo, os cabelos meio arrepiados, não tinha mais pique para continuar a corrida. O jeito era ir para casa e se preparar para outro dia de trabalho. Chegou em frente à porta e ao esticar o braço em direção à maçaneta a porta se abriu sozinha. Estranho. Entrou e fechou a porta com o calcanhar.
Na cozinha pensou em fazer um sanduíche, foi até a geladeira e antes que fizesse alguma coisa a porta também se abriu sozinha. Que estaria acontecendo? Preparou o sanduíche, chegou em frente ao microondas e desta vez não fez nada. Apenas piscou os olhos. A porta se abriu. Colocou o prato lá dentro. Assoprou. O microondas ligou sozinho. Estava começando a ficar divertido.
Comeu. Foi ao banheiro. Bancou o Super Man com olhar de raio X e o chuveiro também ligou sozinho. Mas como se houvesse uma pedra de Cryptonita ali dentro, sua cabeça começou a latejar infernalmente ao chegar perto da água. A dor era tanta que ele não conseguia enxergar nada. Com uma toalha enrolada nas mãos fechou o registro e a água parou de cair. A dor parou na hora.
Repetiu os passos em direção ao chuveiro. Mesma coisa. Mesma dor. E ele ali todo suado precisando de um banho mas era impossível. Parece que seu presente elétrico lhe havia imposto algumas restrições. O jeito foi improvisar. Lavou-se com álcool e uma flanelinha. Não tinha outro jeito. Dois dias se passaram assim.
Foi aí então que a Dóris, a namorada do Tulio, resolveu chamar todo mundo para um happy hour na casa dela. Depois que todo mundo tinha bebido todas, ela levou o Tulio lá para o andar de cima. Parece que o Tulio só tinha problema mesmo era com água para banho, porque bebia normalmente a água que passarinho não bebe.
Resolveu fazer uma surpresa. Aproveitou o Tulio já meio tonto, vendou seus olhos e lascou-lhe um beijo na boca. A coisa foi ficando quente, quente, mais quente, e de repente, quando ele caiu em si estava mesmo caindo, dentro da banheira cheia d'água do banheiro dela. A dor quase o levou ao delírio, mas só durou um segundo. Ele se projetou para fora da banheira assustado. Não sentia mais nada. A cabeça não doía mais. Estranho. A Dóris só olhava para ele. Agora quem não estava entendendo nada era ela. Fim de clima.
O Tulio precisava ver se ainda tinha seu super poder. Foi até o quarto dela onde sempre tinha roupas dele e se concentrou. "Guarda-roupas, abre a porta!", ele quase disse depois de muita concentração. O guarda-roupas nem se mexeu. Tentou de novo. Nada. Mais uma vez. Menos ainda. Ficou chateado, mas talvez fosse melhor assim.
Voltou para o banheiro onde a Dóris ainda estava se trocando. Abriu a porta. "Não chegue perto de mim!" ela gritou. Por sorte os convidados não ouviram. "O que foi Dóris? O que aconteceu?" ele perguntou. "Tem alguma coisa errada comigo" foi tudo o que ela disse, e estalou dois dedos. A lâmpada desligou no mesmo instante. Estalou de novo. Ligou. Ela começou a chorar.
O Tulio explicou para ela tudo o que havia acontecido desde que ele pisara na poça d'água que tinha a ponta do fio, e tudo o que acontecera até ali. Daí a idéia. E se entrassem ao mesmo tempo na banheira, um de cada lado, será que o super poder, ignoraria-os e os deixaria em paz? O jeito era tentar. E assim foi. Contagem regressiva. "Três, dois, um, já!".
O choque passou pelos dois num segundo que pareceu ser uma hora e depois se foi. Levantaram-se. As coisas pareciam ter voltado ao normal. Ela estalou os dedos e nada aconteceu. Ele se concentrou mas nada se abriu ao seu redor. Ufa. Finalmente tinha acabado. Nada de choques, nada de eletricidade, nada de mover as coisas com a força do pensamento. Eram normais de novo. Pelo menos aparentemente, pois agora seus corpos desmaterializados podiam atravessar qualquer porta e parede. O susto? Bem, já não se assustaram tanto assim, no que mais poderia dar tudo aquilo? Apenas olharam um para o outro, aquele olhar cúmplice e ao mesmo tempo disseram: "Banheira!".


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