Paparazzi - por Handerson Pessoa

Jornal A Voz do Povo. Três e meia da tarde. Silvia Linhares acaba de entrar na redação com sua teleobjetiva presa por uma fita ao pescoço. Seu traje é tradicional. Jeans azul já bem puído, camiseta básica e o colete cáqui, que já está mais para marrom. Nos bolsos do colete os filmes com as fotos que levará para casa, trabalho extra, cerão. Mas que vai render a primeira página na edição de domingo.
Coloca os pés sobre a mesa e relaxa tomando água gelada de uma garrafinha de plástico. Ela preferiria uma cerveja, mas sabe que não pode beber em horário de trabalho. "Mas eu já terminei meu trabalho", ela pensa. Mas não importa. Regras são regras.
Jornal A Voz do Povo. Sete da noite. Renato Cunha está a poucos minutos de fechar sua reportagem. Sua matéria vai lhe render a primeira página na edição de domingo. É um especial sobre o sequestro do filho daquele importante executivo, Marcos Schautz. Silvia lhe disse que conseguiu as fotos do local do cativeiro. Renato já preparou a matéria. Só espera o dia agora clarear para que a polícia lhe dê novas informações, mas ele já saba como tudo irá terminar. Ele acha.
O telefone ao lado so seu computador bonitinho (um iMac azul) toca. É Silvia:
- "Re, quando você vem para ver as fotos?" - ela pergunta com aquele tom de voz que ele sabe o que ela quer e onde irão terminar a noite.
- "Estou terminando a matéria, vou em poucos minutos" - ele responde, afrouxando o nó da gravata amarela e abrindo o colarinho da sua imaculada camisa branca.

Minutos depois o interfone do apartamento de Silvia chama. Renato entra. Sobe os quatorze andares e chega. Não precisa bater, a porta só está encostada. Dois drinques mais tarde e Silvia confessa o que quer: deixar a câmera no automático fotografando os dois quando estiverem... bem... ahnn... num momento mais íntimo. Ele nega veementemente. Não pode se expor dessa maneira. Ninguém no jornal sabe disso e, bem, vai que por um descuido uma dessas fotos acabar vazando e todo mundo fica sabendo. Não. Não e não.
Quatro drinques depois e Renato está ele mesmo preparando a câmera. Já derramou sua bebida na camisa e já não tem mais controle algum. Então a câmera trabalha. Um árduo trabalho de voyeur, registrando todos os movimentos lascivos daqueles dois.
Apartamento da Silvia. Cinco horas da manhã. Ela não consegue dormir. Ele... bem, ele já dormiu a muito tempo. Ronca alto e baba no travesseiro. Nas mãos de Silvia, as fotos. Ela ri e se diverte
relembrando os momentos de loucura a algumas horas atrás, antes da insônia e dos roncos dele arrombarem o silêncio da noite. Quer fazer uma surpresa, coloca todas as fotos em um envelope pardo. Na frente do envelope está escrito: "Fotos", como ela sempre faz.
Abre a pasta do seu namorado, amante, ficante, nem ela mesmo sabe o que é, e coloca lá dentro o envelope.
São seis horas e ela consegue dormir. Uma dor de cabeça excruciante toma conta dela quando ela ouve o barulho do despertador. Já é hora de acordar. Mas ela não vai. Hoje não. Precisa descansar.
- "Re, pega um envelope que está na mesa de centro da sala e entrega pro Tenório por favor?" -ela pede com aquela voz manhosa que sabe que só vai receber um sim de volta - "São as fotos para a sua matéria".
Ela não escuta mais nada, pega o travesseiro, coloca sobre a cabeça e dorme aquele sono de pedra. Renato pega o envelope e coloca dentro de um bolso lateral da sua pasta. Não percebe o outro. Ambos os envelopes estão colados. Renato está feliz e acha que este será um grande dia.
Jornal A Voz do Povo. Sete da manhã. Renato já deixou o envelope na mesa do editor chefe que todos chamam de Tenório mas que poucos sabem o nome real dele. Renato não sabe. São dez da manhã e o telefone ao lado do computador bonitinho toca:
- "Re, tudo bem? - ela pergunta - "gostou das fotos? Era uma surpresinha pra você"
- "Surpresa para mim? Do que voce está falando" - ele questiona, já começando a suar frio.
- "As fotos que tiramos ontem" - ela diz inocentemente - "revelei e coloquei na sua pasta, você já viu?"
- "Oh meu Deus!" - é tudo o que ele consegue falar - "te ligo mais tarde, tchau."
As fotos foram para a aprovação. Pelo vidro ele vê o editor-executivo olhar para as fotos e passar a mão espalmada no rosto. A mão direita de Tenório agora esfrega a testa e aperta os olhos. O editor-executivo parece surpreso. É nessa hora que Renato pega a pasta, as mãos trêmulas. Seu emprego e o de Silvia estão em cheque. Ele apanha o envelope, mas não pode abrir ali, na frente de todo mundo. Tenório pega o telefone. Aperta um botão. Renato se assusta. É o número do ramal do chefe. Seu corpo todo treme.
- "Renato, por favor, venha até a minha sala agora mesmo" - a voz fria e cortante de Tenório parece ribombar nos seus ouvidos.
Renato, Renato, Renato o que você aprontou dessa vez? Ele guarda o envelope pardo e pensa em um milhão de coisas para dizer, formas de se desculpar, de se lamentar e de prometer que jamais aquilo irá acontecer outra vez. Abre a porta.
- "Por favor, sente-se" - diz Tenório. - "Sabe Renato, você me surpreende a cada dia. Pensava que já te conhecia, mas depois disso, vi que não conheço nada".
- "Bem senhor Tenório, veja bem, há uma explicação para isso" - é tudo o que Renato consegue dizer. As mãos continuam tremendo.
- "Explicação? - Tenório diz, colocando a mão espalmada sobre a mesa, as fotos ainda na mão - "Isso fala por sí só, não precisa de nenhuma explicação".
- "Tudo bem senhor Tenório - ele diz, já se sentindo derrotado - "a culpa é toda minha. Fui eu. A idéia, as fotos, tudo. Sei que o senhor tem motivos de sobra para me demitir mas só quero que saiba que eu fiz tudo sozinho, não foi nada forçado o senhor sabe, mas a idéia foi minha e ela acabou concordando, então..."
- Demitir? - Tenório diz arregalando os olhos e tirando da boca o enorme charuto Magnun. - "Você está louco? Foi a melhor reportagem sobre sequestro que eu já li em toda a minha vida. E estas fotos? Que perfeição! Vai me dizer que você mesmo as tirou? Que não tem o dedinho da Silvia nesse meio?
Renato não consegue entender nada. Quem sabe ele tenha entregado o envelope certo, e tudo não passou de um grande susto.
- "Sabe Renato, a vaga de editor-chefe está disponível. Gostaria que você assumisse esse papel.
Precisamos de uma pessoa dinâmica, inteligente e acho que você se enquadra perfeitamente nesse perfil."
Renato sai da sala uns dez quilos mais leve. Já está quase na hora do almoço. Coloca a pasta no carro e vai para o seu estúdio preferido.
Apartamento da Silvia, meio dia. Ele sobe os quatorze andares. A porta está trancada. Ele bate. Ela abre só de roupão, aquele branco de cetim que ele adora. Renato gostou da idéia das fotos.
- "Tem filme na sua câmera?" - ele pergunta depois de um beijo
- "Claro" - Silvia diz.
Daqui a uma hora e meia ele estará no jornal de novo. Mas está pronto para uma nova seção de fotos e de... bem... melhor deixar para lá. Dessa vez não tem drinque, só suco de abacaxi com côco, mas por via das dúvidas, dessa vez ele deixa a camisa bem longe dali.

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