O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

A confusão pede carona - por Handerson Pessoa

O seu Gustavo Gomes é o taxista mais famoso do bairro. A dezoito anos se casou com a dona Simone, que é um poço de ciúmes do marido. Esses dias aconteceu uma coisa engraçada. O seu Gustavo tinha acabado de trocar as capas dos bancos do seu táxi. Tudo cinza claro e uma listra vermelha.
Todos os dias pontualmente às sete e trinta da noite, o carro do seu Gustavo apontava na esquina. Era um ritual. Durante quinze anos era assim. E aconteceu que naquele fim de tarde, estava ele voltando para casa quando de repente uma moça acena. Quer fazer uma corrida. O seu Gustavo pára.
A moça entra, a blusa listrada de vermelho combina com o estofado do carro e valoriza os seus seios, se é que isso fosse possível afinal. Seu Gustavo olha para o decote generoso pelo retrovisor. Já passou no farol amarelo duas vezes, pestanejando.
No banco de trás a moça está suando. "Quer que ligue o ar condicionado dona?" o seu Gustavo pergunta. A moça não responde, apenas pende o pescoço para a direita e desaba. O seu Gustavo ouve a batida da cabeça dela no vidro e pára o carro num acostamento. Ela não está respirando, o jeito será fazer uma respiração boca a boca.
Ele vai para o banco de trás e prende o nariz da moça com uma das mãos e com a outra aperta o maxilar, mantendo a boca dela aberta. Enquanto ele tenta salvar a vida da pobre moça que agora involuntariamente exibe suas pernocas através da saia, que mais parece uma amostra grátis de algum tipo de tecido, a dona Amélia, sua vizinha passa pelo táxi do seu Gustavo, e olha para dentro.
- Seu Gustavo! - ela berra. - Eu vou contar tudo para a sua mulher"
O seu Gustavo nem sabe quem falou e nem de onde veio o som, quando olhou so viu a traseira do Palio verde da vizinha. A moça acorda algum tempo depois.
Na volta para a casa, o seu Gustavo matuta o que vai dizer para a mulher. Sabe que por mais honesto que for ela jamais irá entender. Daí vem a mentira. Ele entra na casa. Pé-ante-pé, olhando para os lados, ressabiado. A mulher chora sentada na cadeira da cozinha, debruçada sobre a mesa. Noventa e oito quilos de puro ciúme.
- A Amélia me contou tudo - dona Simone balbucia - eu sei que você estava com outra.
- Simone - ele tenta dizer aparentando a maior calma do mundo - me desculpe, eu fui um cretino, só fiz isso para aquele avarento, safado, pilantra do Jorge aprender.
- Do que você está falando? - pergunta a dona Simone.
- Já tem mais de um ano que o Jorge não me paga aqueles três mil reais que eu emprestei para ele, daí sequestrei a filha dele e exigi os três mil como resgate. Como ele não tinha, eu falei que ia matar a moça, e ia matar mesmo, se não fosse a Amélia, eu tinha matado ela sufocada.
- Meu amor - diz a dona Simone - então a Amélia entendeu tudo errado. Eu, eu pensei que você...
- Eu sei, eu sei, está tudo bem. - o seu Gustavo diz olhando para o quadro na parede enquanto abraça a dona Simone.
- Me desculpe - ela diz.
- Imagina.
Enquanto dona Simone termina seu banho, o seu Gustavo conta o dinheiro que ganhou com o taxi naquele dia. Graças à moça, seu dia lhe rendeu mais cento e cinquenta reais, que ele vai comprar um sofá novo. Só espera que o pai da moça que ele tentou matar sufocada não registre queixa contra ele. Se registrar, o sofá terá que esperar.

Super Choque - por Handerson Pessoa


Já fazia quatro anos que o Tulio corria todos os dias pela manhã. Disposto no início a perder alguns quilinhos acabou gostando da idéia e pontualmente às seis e quinze da manhã lá ia-se ele a correr pelas ruazinhas de pedra do parque Guarapiranga. Numa dessas manhãs, depois de uma noite com uma das tradicionais tempestades paulistanas, Tulio não viu o fio que estava caído, resultado de uma árvore derrubada pelo vento. Quando viu já era tarde. Tentou se desviar mas acabou enfiando o pé numa poça d'água onde estava a ponta do fio. O choque alastrou-se pelo seu corpo em um segundo que pareceu durar uma vida inteira. Ele caiu, arremessado pela corrente elétrica e teve sorte de não ter ficado grudado ali.
Levantou-se ainda zonzo, os cabelos meio arrepiados, não tinha mais pique para continuar a corrida. O jeito era ir para casa e se preparar para outro dia de trabalho. Chegou em frente à porta e ao esticar o braço em direção à maçaneta a porta se abriu sozinha. Estranho. Entrou e fechou a porta com o calcanhar.
Na cozinha pensou em fazer um sanduíche, foi até a geladeira e antes que fizesse alguma coisa a porta também se abriu sozinha. Que estaria acontecendo? Preparou o sanduíche, chegou em frente ao microondas e desta vez não fez nada. Apenas piscou os olhos. A porta se abriu. Colocou o prato lá dentro. Assoprou. O microondas ligou sozinho. Estava começando a ficar divertido.
Comeu. Foi ao banheiro. Bancou o Super Man com olhar de raio X e o chuveiro também ligou sozinho. Mas como se houvesse uma pedra de Cryptonita ali dentro, sua cabeça começou a latejar infernalmente ao chegar perto da água. A dor era tanta que ele não conseguia enxergar nada. Com uma toalha enrolada nas mãos fechou o registro e a água parou de cair. A dor parou na hora.
Repetiu os passos em direção ao chuveiro. Mesma coisa. Mesma dor. E ele ali todo suado precisando de um banho mas era impossível. Parece que seu presente elétrico lhe havia imposto algumas restrições. O jeito foi improvisar. Lavou-se com álcool e uma flanelinha. Não tinha outro jeito. Dois dias se passaram assim.
Foi aí então que a Dóris, a namorada do Tulio, resolveu chamar todo mundo para um happy hour na casa dela. Depois que todo mundo tinha bebido todas, ela levou o Tulio lá para o andar de cima. Parece que o Tulio só tinha problema mesmo era com água para banho, porque bebia normalmente a água que passarinho não bebe.
Resolveu fazer uma surpresa. Aproveitou o Tulio já meio tonto, vendou seus olhos e lascou-lhe um beijo na boca. A coisa foi ficando quente, quente, mais quente, e de repente, quando ele caiu em si estava mesmo caindo, dentro da banheira cheia d'água do banheiro dela. A dor quase o levou ao delírio, mas só durou um segundo. Ele se projetou para fora da banheira assustado. Não sentia mais nada. A cabeça não doía mais. Estranho. A Dóris só olhava para ele. Agora quem não estava entendendo nada era ela. Fim de clima.
O Tulio precisava ver se ainda tinha seu super poder. Foi até o quarto dela onde sempre tinha roupas dele e se concentrou. "Guarda-roupas, abre a porta!", ele quase disse depois de muita concentração. O guarda-roupas nem se mexeu. Tentou de novo. Nada. Mais uma vez. Menos ainda. Ficou chateado, mas talvez fosse melhor assim.
Voltou para o banheiro onde a Dóris ainda estava se trocando. Abriu a porta. "Não chegue perto de mim!" ela gritou. Por sorte os convidados não ouviram. "O que foi Dóris? O que aconteceu?" ele perguntou. "Tem alguma coisa errada comigo" foi tudo o que ela disse, e estalou dois dedos. A lâmpada desligou no mesmo instante. Estalou de novo. Ligou. Ela começou a chorar.
O Tulio explicou para ela tudo o que havia acontecido desde que ele pisara na poça d'água que tinha a ponta do fio, e tudo o que acontecera até ali. Daí a idéia. E se entrassem ao mesmo tempo na banheira, um de cada lado, será que o super poder, ignoraria-os e os deixaria em paz? O jeito era tentar. E assim foi. Contagem regressiva. "Três, dois, um, já!".
O choque passou pelos dois num segundo que pareceu ser uma hora e depois se foi. Levantaram-se. As coisas pareciam ter voltado ao normal. Ela estalou os dedos e nada aconteceu. Ele se concentrou mas nada se abriu ao seu redor. Ufa. Finalmente tinha acabado. Nada de choques, nada de eletricidade, nada de mover as coisas com a força do pensamento. Eram normais de novo. Pelo menos aparentemente, pois agora seus corpos desmaterializados podiam atravessar qualquer porta e parede. O susto? Bem, já não se assustaram tanto assim, no que mais poderia dar tudo aquilo? Apenas olharam um para o outro, aquele olhar cúmplice e ao mesmo tempo disseram: "Banheira!".


Spanish Guitar - por Handerson Pessoa

Depois que todos os convidados se foram, e agora só há a sujeira dos restos de bolo, papéis e pedaços de salgadinhos da festa de trinta anos do Hugo, foi que a Lídia resolveu entregar o presente. Um envelope branco. Dentro há duas passagens para Auckland na Nova Zelândia. Ela sabe que o Hugo tem o desejo ainda não realizado de saltar de Bungee Jump de uma famosa ponte lá. O agradecimento? Um sorriso enorme, um beijo e uma abraço ao som de Tony Braxton cantando Spanish Guitar.
Cinco de dezembro. Dez da manhã, horário local. Lídia vê lá de baixo com um binóculo, o Hugo colocar os equipamentos. Primeiro os mosquetões, depois a solteira, depois o capacete. Ele chega em frente ao precipício, grita "Te amo Lídia" e salta. Cai durante alguns segundos. Ela sorri, Realizou o desejo do namorado.
Dez e cinco. Os olhos arregalados de Lídia vêem o pior. A ponte tem cento e três metros de altura. A corda tem cento e dez metros. Lá em baixo, só há um corpo estirado, murcho como um balão de água furado. A seguir o desmaio.Vinte e quatro de dezembro. Noite de ação de graças. Véspera de natal. A ceia está servida mas Lídia está sozinha. A comida esfriou. Só um copo cheio de Chivas Reagal em uma das mãos. Na outra, um Lucky Strike aceso. Lá fora um casal aos amassos ouvindo também Spanish Guitar. O som sobe os sete andares e teima em entrar no apartamento da Lídia.
Meia noite. Natal. Lídia olha para a foto do Hugo na parede. Vai até a sacada e chora. Vê os fogos colorirem os céus. Dorme ali mesmo na sacada, ao relento.
Vinte e cinco de dezembro. Natal. Lídia liga seu MP3 e sai em direção à praia. Senta-se na areia, olha o infinito e se levanta. Caminha em direção à água. Os pés somem, a água agora já chega aos joelhos, cintura, seios, rosto. Ela não pára. O MP3 parou de tocar Tony Braxton porque já entrou água. O céu está cinza. Cinza escuro. Preto. Vazio. Nada. Lídia desaparece sob a água. Nunca mais foi encontrada.
Na praia, horas depois um menino mostra à mãe um MP3 que a maré trouxe para a praia e comemora o achado. No apartamento de Lídia um telefone toca desespeardo. Ninguém atende.

Porta Giratória - por Handerson Pessoa


Só faltavam cinco minutos para as quatro da tarde. E ainda faltavam dois quarteirões para chegar ao banco. Eu corria feito louco. Era véspera de final de semana e eu não podia deixar tudo para depois. Mais dois minutos, mais alguns poucos passos. Pronto. Agora é só passar pela porta giratória e: “Plim”. A maldita porta apitou. Dois seguranças policiais olharam para mim. Um negro enorme, corpulento com a mão direita no coldre. Do outro lado da porta, uma mulher. Era talvez a mulher mais bonita que eu já havia visto em toda a minha vida. Olhou para mim com aqueles olhos penetrantes e pediu que eu voltasse e tentasse mais uma vez.
“Plim”. Trinta segundos faltando para as quatro. Será que vai dar tempo? Passo a mão pelo cabelo numa tentativa desesperada que a segurança me deixe passar. Olho para o nome gravado no seu uniforme: Marília. Ela pede para que eu abra a minha bolsa. Não há nada suspeito ali e antes que eu consiga fechar o zíper da bolsa, a porta é liberada, para a minha alegria e a dos outros sete que estavam me esperando, com a mesma impaciência. Mal passo pela porta, e o cara que estava depois de mim, quer apressar tudo e gira a porta que bate nas minhas costas e me desequilibra. Minha bolsa cai, e de lá jorra um sem número de papéis bem em cima dos pés da Marilia. Ela olha para mim e se abaixa para me ajudar.
Aqueles cabelos louros embora preso pelo fecho do boné caem por sobre seus ombros e eu não posso simplesmente deixar de olhar. Papéis entram desordenadamente dentro da bolsa e para a minha surpresa quando ela pega uma das últimas levas de papel ela descobre a revista. Aquela revista masculina sugestiva que o Paulão me emprestou. “Essa modelo é muito bonita”, ela me diz. Meu coração foi a mil, ela percebeu. “É mesmo, mas você ganha disparado” eu falei, e nem acreditei que falei. Mas ela não diz nada, apenas olha para mim e dá uma piscadela com o olho direito. Meus pêlos eriçam. Não isso não pode estar acontecendo. A fila está pequena, só há agora mais dois na minha frente. Sinto um toque nas minhas costas, é a Marilia, que me diz: “Ainda tinha este papel que caiu da sua bolsa”, eu agradeço e olho o papel. Um nome e um número de telefone. Marília.
Sexta-feira. Nove da noite. Eu deveria estar em qualquer outro lugar, mas sinto que devo pegar o telefone e ligar. Ligo. Ela parece que já sabia que seria eu. Marcamos na minha casa às dez horas. Não diz nada, porque não há nada a ser dito, apenas nos beijamos com aquele desejo que parecia ter se acumulado há anos. Trocamos talvez meia dúzia de palavras e já estávamos no quarto. Exaustos pedimos comida japonesa num desses restaurantes delivery.
Ela, linda, dorme nos meus braços mas acordo sozinho. Procuro por Marília pela casa toda. Nenhum sinal. É sábado e o telefone dela só chama. Mal posso esperar pela segunda-feira para correr ao banco e vê-la só mais uma vez. Depois de muito se arrastar, o insano final de semana chega ao fim e na segunda de manhã corro para o banco. Ela não está lá. Foi demitida. Saio e paro num café, estilo francês. Uma mão venda os meus olhos e reconheço pelo cheiro. Marília. Ela me beija e diz que vai morar na minha rua. Na casa da frente. Falo para ela morar comigo. Ela declina, mas garante que vai me dar um monte de truques espertos para passar pelas portas dos bancos sem apitar. E assim um fetiche: uma policial, acabou virando realidade, graças a uma porta giratória, que nunca mais apitou.

Paparazzi - por Handerson Pessoa

Jornal A Voz do Povo. Três e meia da tarde. Silvia Linhares acaba de entrar na redação com sua teleobjetiva presa por uma fita ao pescoço. Seu traje é tradicional. Jeans azul já bem puído, camiseta básica e o colete cáqui, que já está mais para marrom. Nos bolsos do colete os filmes com as fotos que levará para casa, trabalho extra, cerão. Mas que vai render a primeira página na edição de domingo.
Coloca os pés sobre a mesa e relaxa tomando água gelada de uma garrafinha de plástico. Ela preferiria uma cerveja, mas sabe que não pode beber em horário de trabalho. "Mas eu já terminei meu trabalho", ela pensa. Mas não importa. Regras são regras.
Jornal A Voz do Povo. Sete da noite. Renato Cunha está a poucos minutos de fechar sua reportagem. Sua matéria vai lhe render a primeira página na edição de domingo. É um especial sobre o sequestro do filho daquele importante executivo, Marcos Schautz. Silvia lhe disse que conseguiu as fotos do local do cativeiro. Renato já preparou a matéria. Só espera o dia agora clarear para que a polícia lhe dê novas informações, mas ele já saba como tudo irá terminar. Ele acha.
O telefone ao lado so seu computador bonitinho (um iMac azul) toca. É Silvia:
- "Re, quando você vem para ver as fotos?" - ela pergunta com aquele tom de voz que ele sabe o que ela quer e onde irão terminar a noite.
- "Estou terminando a matéria, vou em poucos minutos" - ele responde, afrouxando o nó da gravata amarela e abrindo o colarinho da sua imaculada camisa branca.

Minutos depois o interfone do apartamento de Silvia chama. Renato entra. Sobe os quatorze andares e chega. Não precisa bater, a porta só está encostada. Dois drinques mais tarde e Silvia confessa o que quer: deixar a câmera no automático fotografando os dois quando estiverem... bem... ahnn... num momento mais íntimo. Ele nega veementemente. Não pode se expor dessa maneira. Ninguém no jornal sabe disso e, bem, vai que por um descuido uma dessas fotos acabar vazando e todo mundo fica sabendo. Não. Não e não.
Quatro drinques depois e Renato está ele mesmo preparando a câmera. Já derramou sua bebida na camisa e já não tem mais controle algum. Então a câmera trabalha. Um árduo trabalho de voyeur, registrando todos os movimentos lascivos daqueles dois.
Apartamento da Silvia. Cinco horas da manhã. Ela não consegue dormir. Ele... bem, ele já dormiu a muito tempo. Ronca alto e baba no travesseiro. Nas mãos de Silvia, as fotos. Ela ri e se diverte
relembrando os momentos de loucura a algumas horas atrás, antes da insônia e dos roncos dele arrombarem o silêncio da noite. Quer fazer uma surpresa, coloca todas as fotos em um envelope pardo. Na frente do envelope está escrito: "Fotos", como ela sempre faz.
Abre a pasta do seu namorado, amante, ficante, nem ela mesmo sabe o que é, e coloca lá dentro o envelope.
São seis horas e ela consegue dormir. Uma dor de cabeça excruciante toma conta dela quando ela ouve o barulho do despertador. Já é hora de acordar. Mas ela não vai. Hoje não. Precisa descansar.
- "Re, pega um envelope que está na mesa de centro da sala e entrega pro Tenório por favor?" -ela pede com aquela voz manhosa que sabe que só vai receber um sim de volta - "São as fotos para a sua matéria".
Ela não escuta mais nada, pega o travesseiro, coloca sobre a cabeça e dorme aquele sono de pedra. Renato pega o envelope e coloca dentro de um bolso lateral da sua pasta. Não percebe o outro. Ambos os envelopes estão colados. Renato está feliz e acha que este será um grande dia.
Jornal A Voz do Povo. Sete da manhã. Renato já deixou o envelope na mesa do editor chefe que todos chamam de Tenório mas que poucos sabem o nome real dele. Renato não sabe. São dez da manhã e o telefone ao lado do computador bonitinho toca:
- "Re, tudo bem? - ela pergunta - "gostou das fotos? Era uma surpresinha pra você"
- "Surpresa para mim? Do que voce está falando" - ele questiona, já começando a suar frio.
- "As fotos que tiramos ontem" - ela diz inocentemente - "revelei e coloquei na sua pasta, você já viu?"
- "Oh meu Deus!" - é tudo o que ele consegue falar - "te ligo mais tarde, tchau."
As fotos foram para a aprovação. Pelo vidro ele vê o editor-executivo olhar para as fotos e passar a mão espalmada no rosto. A mão direita de Tenório agora esfrega a testa e aperta os olhos. O editor-executivo parece surpreso. É nessa hora que Renato pega a pasta, as mãos trêmulas. Seu emprego e o de Silvia estão em cheque. Ele apanha o envelope, mas não pode abrir ali, na frente de todo mundo. Tenório pega o telefone. Aperta um botão. Renato se assusta. É o número do ramal do chefe. Seu corpo todo treme.
- "Renato, por favor, venha até a minha sala agora mesmo" - a voz fria e cortante de Tenório parece ribombar nos seus ouvidos.
Renato, Renato, Renato o que você aprontou dessa vez? Ele guarda o envelope pardo e pensa em um milhão de coisas para dizer, formas de se desculpar, de se lamentar e de prometer que jamais aquilo irá acontecer outra vez. Abre a porta.
- "Por favor, sente-se" - diz Tenório. - "Sabe Renato, você me surpreende a cada dia. Pensava que já te conhecia, mas depois disso, vi que não conheço nada".
- "Bem senhor Tenório, veja bem, há uma explicação para isso" - é tudo o que Renato consegue dizer. As mãos continuam tremendo.
- "Explicação? - Tenório diz, colocando a mão espalmada sobre a mesa, as fotos ainda na mão - "Isso fala por sí só, não precisa de nenhuma explicação".
- "Tudo bem senhor Tenório - ele diz, já se sentindo derrotado - "a culpa é toda minha. Fui eu. A idéia, as fotos, tudo. Sei que o senhor tem motivos de sobra para me demitir mas só quero que saiba que eu fiz tudo sozinho, não foi nada forçado o senhor sabe, mas a idéia foi minha e ela acabou concordando, então..."
- Demitir? - Tenório diz arregalando os olhos e tirando da boca o enorme charuto Magnun. - "Você está louco? Foi a melhor reportagem sobre sequestro que eu já li em toda a minha vida. E estas fotos? Que perfeição! Vai me dizer que você mesmo as tirou? Que não tem o dedinho da Silvia nesse meio?
Renato não consegue entender nada. Quem sabe ele tenha entregado o envelope certo, e tudo não passou de um grande susto.
- "Sabe Renato, a vaga de editor-chefe está disponível. Gostaria que você assumisse esse papel.
Precisamos de uma pessoa dinâmica, inteligente e acho que você se enquadra perfeitamente nesse perfil."
Renato sai da sala uns dez quilos mais leve. Já está quase na hora do almoço. Coloca a pasta no carro e vai para o seu estúdio preferido.
Apartamento da Silvia, meio dia. Ele sobe os quatorze andares. A porta está trancada. Ele bate. Ela abre só de roupão, aquele branco de cetim que ele adora. Renato gostou da idéia das fotos.
- "Tem filme na sua câmera?" - ele pergunta depois de um beijo
- "Claro" - Silvia diz.
Daqui a uma hora e meia ele estará no jornal de novo. Mas está pronto para uma nova seção de fotos e de... bem... melhor deixar para lá. Dessa vez não tem drinque, só suco de abacaxi com côco, mas por via das dúvidas, dessa vez ele deixa a camisa bem longe dali.

Mas que espírito é esse?

Doutor Carlos há tempos quer desvendar este mistério: de uns meses para cá, sua carteira vem sendo subtraída, mas ele ainda não conseguiu saber quem está por trás disso. Já discutiu o assunto com a mulher e a filha, e delas também ouviu a hipótese mais provável: a empregada!
A empregada está com eles a três anos e sempre esteve acima de qualquer suspeita. Dolores é o seu nome. Ela não mora com a família Silveira, mas todos os dias está na residência às seis horas da manhã. Sempre com uma Bíblia em uma das mãos e um terço na outra.
Mas o doutor não desiste. Vai a uma loja e compra uma pequena câmera. Foi dormir tarde naquela noite lendo o manual de instruções e preparando sua armadilha. Coloca a pequena câmera escondida em um local da sua estante de livros em seu quarto, liga o aparelho que focaliza sua carteira e sai para a copa para tomar o seu café da manhã enquanto a empregada se prepara para arrumar o quarto do patrão.
A câmera filma tudo, mas ele não quer dizer nada agora, quer deixar a surpresa para a hora do almoço quando ele, sua esposa e filha não estiverem tão apressados para sair.
Quando a hora do almoço chega e todos estão de volta ao lar, o doutor Carlos se senta no sofá junto com a sua família. Chama a empregada:

- Dolores!
- Sim patrão - ela responde.
- Dolores quero conversar com a senhora. - ele diz - Quero lhe dizer que não mais iremos precisar dos serviços da senhora.
- O senhor está me demitindo doutor Carlos? - ela pergunta já com os olhos vermelhos querendo chorara com a notícia repentina.
- Sim dona Dolores - ele responde - a senhora anda fazendo muita coisa feia, e a senhora sabe do que estou falando.
- Não sei não doutor Carlos, o que eu estou fazendo de errado? - ela questiona na defensiva.
- A senhora anda pegando dinheiro na minha carteira - ele diz serenamente, completamente calmo.
- É mentira! - ela responde alto, agonizando ante os olhos incriminadores da patroa e sua filha - isso só pode ser coisa da Gabriela, essa menina não gosta de mim.
Neste momento, doutor Carlos apanha o controle remoto da televisão e depois de apertar outro botão uma imagem aparece. Na imagem dona Dolores vasculha a carteira do doutor e tira trinta reais.
Ela não tem mais forças para ficar de pé. Deixa seu corpo cair sentado em uma das poltronas. Não acredita que foi descoberta. Sua boca está seca e as mãos trêmulas.
- Doutor Carlos, eu estava possuída naquele momento. Eu não queria fazer aquilo, mas o marvado estava me possuindo e controlando o meu corpo. - enquanto ela fala, as lágrimas afloram.
- Dona Dolores, como esta não é a primeira vez que isso acontece acho que não tenho mais nada a lhe pagar, a senhora já recebeu o seu pagamento adiantado. Agora se preferir, podemos resolver tudo na delegacia.
Dez minutos depois, dona Dolores cruza a sala em direção à porta que dá acesso à rua. Não diz nada, não se despede de ninguém. Leva embora apenas a pequena Bíblia com os trinta reais entre as páginas e o resto da sua auto-estima que ainda sobrou e vai embora.
O doutor Carlos não consegue deixar escapar uma risada. Acabou de ficar trinta reais mais pobre, mas comenta com a mulher e a filha:
- Possuída! Era só o que faltava!
- Mas que diabo de espírito é esse? - pergunta a esposa sem conter um sorriso.
E a filha responde:
- Só se for de porco mãe!

Vinho Amargo - Parte II - por Handerson Pessoa

Eu já estava completamente dominado pelo sono e nem vi quando dormi na cadeira na frente do computador às duas e quinze da madrugada esperando aquele download interminável acabar. Meus amigos no Second Life já tinham desistido de esperar minhas respostas e já tinham voltado para o mundo real e o virtual teria que esperar.
Bati meu braço no porta-lápis e então acordei. O download havia acabado. Quanta demora! O relógio do computador indicava três horas. Eu teria mais duas horas de sono precário, mas ia gastar mais alguns minutos ali porque havia o símbolo de um envelope na tela. Um email a essa hora? Abri. Era o Beto, aquele meu amigo fictício. Seis meses já haviam se passado e essa era a primeira notícia dele em tanto tempo. Dizia:

"Meu caro amigo Pessoa:
Ontem a coisa mais espetacular do mundo aconteceu: eu tinha acabado de chegar de Keflavik, uma cidade aqui perto da capital, porque havia uma noite cultural lá e eu não podia perder.
Cheguei e quando entrei, meu som estava ligado. Tocava Marina Elali cantando One Last Cry.
Pensei: será que ligou sozinho? Mas havia um cheiro conhecido no ar. Reconheceria aquele cheiro em qualquer lugar do mundo. Geórgia. O perfume preferido da Flavinha. A luz do quarto, acesa.
E lá estava ela com aquela lingerie branca que eu adoro e no criado mudo um balde com gelo e uma garrafa de Don Perignon. Eu não podia acreditar. Ela estava ali. Sei que você vai querer os detalhes e eu preciso dizer? Só te digo uma coisa. Prepare seu Black-Tie pois vai precisar dele no dia dez de outubro. A Flavinha e eu iremos nos casar. Ainda não acredito mas é verdade. Abraços meu amigo."

Meu sorriso foi de orelha a orelha. Danado. Ele conseguiu. Três semanas depois meu telefone estava tocando. Era o Beto dizendo que estaria aqui no Leblon de novo no dia dezessete de julho. Ia passar primeiro dois dias em Porto Alegre, voaria para São Paulo e pegaria a ponte aérea para chegar na cidade maravilhosa a tempo de se despedir da gente antes de voltar para Reikjavik.
Liguei para todo mundo contando e preparamos uma festa surpresa para o mais novo, mais harmonioso e mais bonito casal. Definitivamente haviam nascido um para o outro.
Era uma terça-feira, dia dezessete e eu estava me preparando para ir para a festa na casa do Beto quando um colega da redação do jornal que trabalho me chamou:
- "Ei cara, venha ver isso".
Na televisão, todos os jornais mostravam as chamas tomarem conta dos destroços do avião que o Beto e a Flavinha estavam. Ninguém no avião sobreviveu. eu liguei para o celular do meu amigo. Desligado. O da Flavinha. Desligado. Corri para o banheiro e vomitei. Não conseguia acreditar. No site da companhia aérea, a relação dos passageiros. Número trinta e seis: Flávia Marjorie de Alcântara. Número trinta e sete: Roberto Pompeu Lima. Chorei.
Deixei flores no túmulo do Beto e da Flavinha. Um ao lado do outro para todas as eternidades. Fui para casa. O vinho estava amargo, um gosto de saudade. Adormeci no sofá
olhando a foto dos dois que ele tinha mandado no email. No andar de cima, meu vizinho fazia um jantar romântico e a música atravessava as paredes e chegava até o meu sofá. One Last Cry.

Contra o tempo - por Handerson Pessoa

Quanto vale o tempo? Helga Kristjánsdóttir pensava nessa questão enquanto andava pela tranquila rua de Grandavegur em Reykjavik. Tinha acabado de brigar com o namorado. E enquanto pensava, uma moeda de 10¢ caiu do bolso da sua mochila e saiu rolando asfalto abaixo.
Foi quando começou a pensar sobre o tempo. Quanto tempo essa moeda vai rolar antes de parar? Vai parar? Quanto tempo ela ia demorar para chegar a pé em sua casa? Quanto tempo iria se passar para que o namorado ligasse desesperado pedindo que ela reconsiderasse a decisão? Por que ela tinha pedido um tempo para pensar se tudo o que ela mais queria era ficar com ele o tempo todo? Por que as pessoas pedem tempo? Para ver se com o tempo as pessoas mudam? E se a pessoa não mudar e o tempo passar? E se a pessoa mudar e o tempo não quiser voltar? Vale a pena o tempo perdido esperando o tempo passar e as coisas se acalmar?
A moeda continuou descendo a rua. Até que caiu num bueiro. Daí ela olhou para trás e viu quanto tempo tinha perdido correndo atrás de poucos centavos. A moeda era irrecuperável. Pegou o telefone celular mas não telefonou. Mandou uma mensagem. "Boa noite... eu ainda te amo muito. Beijos."
Quanto tempo ela iria esperar? Quanto tempo ele iria aguentar? E ela que a tanto tempo estava planejando aquela semana. Depois de amanhã seria o primeiro aniversário de namoro dos dois. Depois de tanto tempo finalmente estava feliz. O tempo finalmente estava jogando para o time dela. Um dia por causa de uma discussão, após encontros e desencontros e muitos xingamentos, o tempo foi pedido por ela. Ele bufou, falou um monte mas no fim se resignou. Concederia o tempo que ela quisesse. Ela precisava de um tempo para se reorganizar.
Mas e o tempo que tinha passado? O que fazer com ele? Guardar numa gaveta? Ela esperou um tempo, enquanto o tempo se arrastava sem fim, pegou uma caneta e um bloco de papel e gastou seu precioso tempo, escrevendo suas memórias, suas histórias já vividas, em vez de criar novas. E ali sentada em sua cama, pensando no tempo que estava perdendo esperando o tempo passar ela chorou no mesmo momento que começou a tocar sua música favorita: After All. Ela e o namorado eram fãs de Delerium.
Pegou suas folhas já escritas, enrolou e guardou na mochila. No dia seguinte colocou as folhas enroladas numa garrafa e seguiu pela rua de sua casa, o oceano estava perto. Lacrou a garrafa e atirou com toda força no mar. E pensou em quanto tempo aquela garrafa levaria para ser encontrada. Quanto tempo alguém gastaria lendo aquilo? Olhou para o relógio e viu que estava atrasada para a escola. Não podia perder tempo. Na aula desconcentrou-se pensando: quanto tempo é preciso para vermos que pedir tempo só nos fará na verdade perder tempo? Pediu licença à professora, e no caminho do vestiário, ligou pro namorado:"Ian, a quanto tempo! Que saudades de você! Vamos recuperar o tempo perdido?"
Tic...Tac...Tic...Tac...

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