O Troco - por Handerson Pessoa


Todo dia de finados chove. Pode reparar. Desde os oito anos de idade eu percebi isso e nos dezenove anos seguintes tem sido assim. É só amanhecer o dia dois de novembro que já começa. Se não for pela manhã é no final da tarde que o pranto sagrado resolve dar o ar da graça.
E foi durante uma daquelas intermináveis chuvinhas que minha campainha tocou. Era o Júnior. Pálido, tremento de medo e de frio, com os olhos esbugalhados. Preparei um chá quente enquanto meu amigo tomava um banho e vestia uma das minhas roupas.
Então passado o susto ele resolveu contar. Acabara de ficar sob a mira de uma arma. Tudo isso por causa de um troco errado. O Júnior acordou cedo e foi para a casa da irmã. Entrou na lotação e sentou-se num daqules lugares reservados para idosos e deficientes. Era o ponto final e enquanto meu amigo se maravilhava com a calça extremamente justa da cobradora e que mostrava a calcinha vermelha para quem quisesse ver, ele respirou fundo e falou:
- Cobradora, só tenho uma nota de cinquenta, você pode trocar?
- O troco máximo é de dez reais - ela disse sem olhar para ele.
- Mas eu só tenho essa nota - meu amigo falou.
- Vou ver o que posso fazer - ela disse e pegou o dinheiro.
Enquanto meu amigo contava, eu ia servindo mais chá. Ele então continuou. A lotação foi enchendo, enchendo e uma mulher grávida e com um outro bebê os braços entrou com sua mãe já idosa. Meu amigo cedeu o lugar. Cedeu porque além de ser cavalheiro, é lei municipal ceder aqueles lugares.
Tudo lotado e meu amigo ali em pé. A cobradora abriu uma pochete onde haviam diversos maços de notas amarrados com um elástico amarelo. Um solavanco, uma freada e vários maços caíram. Meu amigo ajudou a pegar. A cobradora agradeceu e deu o troco para o Júnior. Era o ponto dele descer e como não dava para ir pela porta de trás, desceu pela frente mesmo. Colocou o dinheiro, o troco no bolso de trás da calça jeans e se foi.
Chegou na casa da irmã. Ela não estava. Resolveu esperar um pouco, foi a uma lanchonete, pediu refrigerante e um beirute. A chuva não parava de cair. Quando foi pagar, o susto. Noventa e sete reais e setenta centavos. Na pressa, a cobradora gostosinha enfiou a nota de cinquenta no meio das outras sem perceber.
O Júnior voltou para casa depois de esperar pela irmã que nao voltava. Na frente da sua casa, um carro branco o esperava. Assim que ele abriu o portão, dois caras saíram com uma arma cada um.
- Tá querendo sacanear a gente malandro? - um deles perguntou.
- Do que você está falando? - o Júnior perguntou - Quem são vocês?
- O dinheiro do ônibus, cadê? Eu quero o dinheiro - o outro vociferou.
Com a barulhada da chuva ninguém escutou nada, nenhum vizinho sequer apareceu na janela.
- Desculpe, não foi culpa minha, eu ia devolver - o Júnior disse gaguejando ao sentir o cano do revólver encostar na sua barriga.
- É claro que ia - um dos homens disse.
Meu amigo pegou o bolo de diheiro e ia retirar a nota de cinquenta reais quando num movimento brusco, o homem arrancou todo o dinheiro do Júnior, enquanto o outro dizia: "Ande logo com isso". O homem guardou o dinheiro num dos bolsos da calça e mandou o meu amigo virar de costas. É claro que o Júnior não ia desobedecer a dois caras armados, foi quando sentiu o soco nas costelas e ficou ali deitado no chão enquanto os caras iam embora.
Na minha lavanderia as roupas do Júnior secavam ao vento frio. ele não sabia como tudo aquilo poderia acontecer. Quase ser morto por causa de cinquenta reais? Daí eu me lembrei do caso do cara que morreu baleado por causa de um mísero pedaço de pizza.
Meu amigo, mais calmo, resolveu ir embora. Pegou a jaqueta ainda molhada e levou outro susto. No bolso largo de dentro havia três maços de dinheiro. Como havia aparecido ali? Daí se lembrou da freada da lotação e o dinheiro voando em maços da pochete da cobradora. Total: oito mil, duzentos e setenta e sete reais.
Definitivamente ele não ia devolver aquele dinheiro depois de tudo que tinha passado. Levei meu amigo para casa depois de ser presenteado com mil e quinhentos reais. Claro que fiquei satisfeito. O Júnior, lógico, ficou pensando em quanto tempo os caras voltariam. Não voltaram. Mas por via das dúvidas, comprou uma moto e se mudou de bairro. E nunca mais andou de ônibus e nem de lotação.

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