Longe demais dos finais - por Handerson Pessoa

Chegou o último dia, e com ele, os últimos momentos. Sou um homem velho, sozinho e odiado, doente, sofrido e cansado de viver. Estou pronto para o depois, seja lá o que for. Deve, sem dúvida, ser melhor do que isso.
Sou o dono do apartamento neste bairro luxuoso na qual sacada estou sentado agora. Tenho quatro filhos, um com cada uma das esposas que tive. E agora não sei quem eram os piores. Os filhos ou as ex-esposas? Provavelmente eu.
Houve um tempo em que eu tive todos os meus desejos realizados: os carros, os eletrônicos, as casas e apartamentos que eu sempre quis. Comprei todos os carros que nunca dirigi, as roupas que nunca usei e freqüentei os mais caros restaurantes que eu nunca provei a comida. Mas estou velho demais para isso agora. O dinheiro é a fonte da minha infelicidade.
Não dou bem com nenhuma das minhas quatro ex-mulheres nem com meus filhos. Hoje eles vão se lembrar de mim, porque estou morrendo e será a hora de dividir o dinheiro. Planejei este dia por muito tempo. Esqueci de todos os lugares que fui sem querer ir e rasguei todas as catas e livros que escrevi e nunca publiquei. Não quero que outros se apossem das minhas idéias.
Eu já desliguei o telefone e joguei o celular no vaso sanitário, porque não quero falar com ninguém hoje. Hoje é apenas outro dia aqui sozinho. Houve tempos em que eu passava dias inteiros sem ouvir o som da minha própria voz por não ter com quem conversar. E houve dias em que eu dormi fraco demais por não ter o que comer. Mas isso já faz muito tempo. Não sei porque estou me lembrando disso agora. Talvez esteja louco como todos pensam. Deixe que pensem. Não faz diferença para mim.
Fico sentado olhado a cidade à minha frente. A campainha jamais toca. Houve tempos quando o dinheiro ainda não havia aparecido, mas a solidão já era a minha quinta esposa, que eu me animava quando meu cão Billy latia e eu corria até a porta para ver ninguém.
Preparei jantares para convidados que não vieram e telefonei para tantas pessoas que não me atenderam que hoje já não consigo mais contar. Chorei lágrimas de sangue sem que ninguém se importasse com isso.
Apanho meu sanduíche natural e tomo um gole do meu suco de maçã. Não como carne há muitos anos porque me lembra os diversos churrascos que eu freqüentava quando eu era jovem. Mordo meu sanduíche e jogo o resto na mesinha ao lado. Minha última refeição.
Lembro-me dos finais de semana em branco e todas as vezes que olhei para minha caixa de correio vazia e meu celular sem nenhuma ligação ou mensagem recebida.
Empurro a cadeira para trás e fico de pé. Minhas mãos e pernas tremem. Meu coração bate forte. Certamente já estarei morto antes de chegar ao solo. Seguro na amurada. Sento-me nela. A chuva que cai está fria, quase congelante. Olho para trás enquanto minhas lágrimas salgadas se misturam com as gotas de chuva formando um sabor agridoce.
Sem olhar para baixo, faço um movimento e atiro-me lá do alto sem saber voar.

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