O Funk e a decadência brasileira

Uma crônica sobre o estilo musical que tomou conta do país.

A certeza imaginária

Uma reflexão sobre os comportamentos de quem encontrou a pessoa certa.

Magnólia

Três histórias surpreendentes em que todas acontecem no Edifício Magnólia no Rio de Janeiro.

Pais e Filhos

Um retrato de quem passou para a fase adulta sem esquecer dos valores de infância.

Dormindo com o inimigo

A violência contra a mulher é o tema principal deste artigo.

Valeu Galera

É amigos, mais um ano se passou. Chegou e se foi tão rápido que mal conseguimos alcançar. Foi um ano de muitas perdas e muitos ganhos. E é só naqueles balanços que fazemos em todos os finais de ano que percebemos o quanto ganhamos e o quanto deixamos de ganhar. É verdade, não foi um ano muito fácil, mas se tivesse sido, talvez não teria tido tanta graça.
Nesse ano que está nos segundos finais aprendemos muita coisa. Aprendemos que devemos dar sempre valor a quem nos apoiou e não desistiu. Aprendemos a ter consciência social quando as tragédias naturais acontecem e aprendemos também, às vezes a duras penas que o sonho existe e que se corremos atrás, eles acontecem. E que nossos esforços podem não ser reconhecidos, mas que nada irá acontecer se não nos esforçarmos.
Nesta última postagem de 2008 quero agradecer a todos os que visitaram este blog e tiveram a paciência de ler minhas crônicas. Um agradecimento sincero a todos os 2.987 visitantes que deram alguns minutos por dia ou por semana para ler este conteúdo. Foram centenas, milhares de acessos no Brasil em 303 cidades e também na Grécia, Espanha, Inglaterra, Portugal, Japão, Estados Unidos, Islândia, Argentina, Noruega e Austrália*. Obrigado a todos os brazucas que estão lá fora e que acompanham o blog.
Quero agradecer também a algumas pessoas em especial que contribuíram com seu tempo e comentários (muitas vezes pessoais) para que esses números se tornassem realidade: Admir Junior, Lívia Mendonça, Thais Lima, Rafael Dias e Deise Nascimento.
Um agradecimento especial à Cleuza, minha amiga e irmã do peito. À minha amiga Ana Vera que tanto me ouviu e como sempre me agraciou com seus conselhos e sua paciência. A meus filhos Caio e Ariel por me fazerem tão feliz com seus sorrisos, beijos e abraços. E a você Janie, que tanto me ajudou no dia do meu vestibular e desde então não saiu mais da minha vida e do meu coração e que está ao meu lado sempre me mostrando a cada dia que se passa, que a felicidade não é paranóia nem delírio, ela existe de verdade e sempre chega quando já achamos que tudo está perdido.
A todos vocês meu muito obrigado. E que neste novo ano, todas as esperanças se renovem e que todos possam encontrar um verdadeiro sentido para continuar. Assim como eu encontrei. E que o blog que entra no terceiro ano de existência possa trazer risos, sorrisos, lágrimas e momentos de reflexão. Como tem sido até agora. Feliz 2009 a todos nós. Valeu!

* Dados extraídos do Google Analytics

Parceiros da vida - Parte III

Tenho memória fotográfica. Se vejo uma vez, jamais esqueço um rosto. Foi assim que o reconheci. Mas preferiria jamais tê-lo visto.
Estávamos outra vez na Liberdade. Eu estava ansioso para chegar logo na Praça da Sé. Já havia se passado uma semana desde aquela noite insólita quando eu peguei aquele bebê nos braços. No fundo eu estava torcendo para que aquela mãe estivesse de novo por lá. Eu havia comprado um fardo grande com fraldas e havia conseguido alguns sacos de leite em pó, para o caso de encontrar aquela pequena família outra vez.
Olhava atento para todos os lados à procura delas pela praça. E nada. Eu estava exausto. Havia trabalhado a manhã toda e feito uma prova importante à tarde. A princípio eu não estava disposto a aparecer na Missão Redentor, mas eu tinha que encontrar aquela família de novo. Papai Noel estava esperando e elas não tinham a menor idéia.
Quando a fila terminou assim como nossos suprimentos, resolvi andar alguns passos para ver se localizava a jovem mãe por ali. De repente o susto. Uma mão segurou meu pescoço e eu o ouvi dizer: “Parado aí, pode passar o relógio para cá”. Meu coração batia tão forte que eu tremia todo. Tirei o relógio sentindo uma ponta de faca nas minhas costas, e estendi para ele que pegou imediatamente. “Suma daqui”, ele disse e foi exatamente o que eu fiz.
Olhei para trás, não resistindo ao impulso e o reconheci. Era um dos homens a quem havíamos acabado de alimentar. Quase não acreditei. Só depois foi que fui me dar conta que os que moram nas ruas fazem suas próprias leis. Principalmente quando é madrugada e eles se tornam os donos da noite.
Era uma forma de agradecimento que eu não queria receber. Definitivamente não era. Na minha vida aquela não era a primeira vez. Eu havia salvado a vida de minha ex-mulher uma vez e como agradecimento ganhei um divórcio. Quando salvei a vida da minha ex-namorada tirando-a do inferno que vivia, dando a ela uma vida nova, segura e fiel, ganhei como agradecimento a separação. E agora isso. Algumas pessoas não podem ser salvas de si mesmas.

Mas todos estes episódios foram pequenos solavancos no meu caminho e essas balas não iriam me fazer parar. Nem me derrubar. Voltei para a van onde meus amigos me esperavam. Eu estava desesperançado e só pensava na minha prova na manhã seguinte, dali a algumas horas.
No caminho de volta falei pouco. Quando cheguei em casa e me deitei, fiquei pensando em tudo que havia acontecido até ali. Lembrei-me daquela passagem bíblica quando Jesus curou os dez leprosos e eles na euforia por terem sido curados, saíram correndo e nem se lembraram de voltar e dizer um simples obrigado. Exceto um.
Em minha missão, não espero agradecimentos por salvar vidas, apenas um pouco de reconhecimento, de gratidão. Mas isso não me faria desistir. Continuo salvando as vidas necessitadas que aparecerem pela frente. E faço isso de coração aberto. Mas sinto falta do meu relógio. Esta semana compro outro. Só não posso me esquecer de tirá-lo na próxima vez.

Parceiros da Vida – Parte 2

São Paulo. Sete de dezembro de 2008. Meia noite e cinco. Enquanto parte da cidade dorme, e outra se diverte estamos de novo em nossa missão. Mari teve gripe e não pôde vir nesta noite. Mas nosso trabalho tem que continuar. É meu segundo final de semana como voluntário na Missão Redentor.
De tudo que vejo e sinto, só há uma coisa que acho que não consigo suportar: os cheiros. Cheiro de cobertor velho, molhado e seboso. Cheiro de roupa suja, impermeável que há anos não sente o toque de água com sabão. Os cheiros peculiares das ruas.
Saímos outra vez da ponte Condessa de São Joaquim, no bairro da Liberdade rumo à Praça da Sé. Enquanto esperamos o farol abrir olho para o lado, para a minha direita, enquanto um homem come um pão seco com mortadela deitado no último ponto de ônibus da Av. Liberdade. Ele devora o mais rápido que pode como se aquela fosse a última refeição de sua vida.
Quando chegamos à Praça da Sé e abrimos a van, a fila começa. Os que moram nas ruas não resistem a uma fila. Nomes para mim são importantes. Sou professor e sempre tive que memorizar nomes, agora virou um hábito. Sempre que posso pergunto os nomes das pessoas que estendem o braço para pegar o pão com mortadela que eu ofereço. Nem todos respondem. Muitos estão cansados demais, bêbados demais, drogados demais.
De repente meu celular vibra, chegou outra mensagem. Uma amiga perguntando o que um professor está fazendo a essa hora com a ralé das ruas. Digo a ela que sou primeiro um ser humano, só depois sou professor. Envio um SMS para alguém que um dia fez parte da minha vida, alguém que eu não pronuncio mais o nome. Apesar de tudo, gostaria que ela estivesse lá fazendo alguma coisa realmente útil em sua vida sombria. Mas minha cabeça não estava para lembranças tristes. Não sou mais do tipo que se importa com coisas que não posso mudar. Meu caminho está cheio de batalhas que eu posso vencer. Como esta agora.
Uma jovem mulher está sentada encostada num mural com uma criança nos braços. A criança chora, mas ela parece estar em outro mundo. Os olhos injetados, o pensamento longe. Ela está imóvel. Visivelmente drogada. Meus novos amigos estão ocupados servindo a fila que nunca termina. Deixo meu posto e vou até a mulher. Aquele choro já está me irritando. Aproximo-me, e só então a mulher abre os olhos, ao menos tenta abrir. Pergunto se posso ficar com o bebê um pouco, ela não responde, apenas estende os braços e me entrega.
A criança está completamente encharcada. Está com fome. E nós não temos leite hoje. Minha jaqueta agora tem uma mancha de xixi de bebê. Tenho que fazer aquele bebê parar de chorar então penso em uma alternativa. Devolvo a criança para a mãe e peço para que ela me espere ali, “não saia daqui”, eu disse. Marta não gosta de saber que eu vou sair e deixá-los lá. Mas eu digo que é rápido, cinco minutos.
Corro desabalado em direção à Praça João Mendes, sei que há uma farmácia 24 horas lá. Tenho algum dinheiro na carteira e compro um pacote de fraldas, uma mamadeira e uma lata de leite em pó. Corro de volta para a van. A jovem mãe ainda está lá e a criança não parou de chorar. Pego a criança e retiro sua roupinha molhada. É uma menininha. Sou pai de dois meninos, trocar fralda é minha especialidade. Amauri prepara a mamadeira. A fila diminuiu bastante. A menininha finalmente pára de chorar ao tomar seu leite. Em poucos minutos dorme. Não deve ter mais que oito ou nove meses. Enrolo a bebê na minha jaqueta jeans e devolvo pra mãe.
Sou mole para sentimentos, e é inevitável segurar aquela lágrima, primeiro uma, duas, depois vem um monte delas. Numa prece silenciosa agradeço a Deus por não ser um dos meus filhos, que agora devem estar quentinhos na cama. Marta se aproxima e coloca a mão na minha cabeça fazendo um carinho. Marta tem cinqüenta e oito anos e me faz carinho como que de mãe pra filho. Pergunto a ela se um dia meu coração vai parar de se partir todo sábado a noite quando eu vejo tanta desgraça. “Se você se acostumar, é porque está na hora de fazer outra coisa”, ela diz.
Não sei qual será o destino dessas pessoas, dessas mães, desses filhos das ruas e do crack. Sabemos apenas que não podemos salvar o mundo, porque o mundo não pode ser salvo. Mas isso não nos desanima. Continuamos em nossa missão, nos sentindo menos humanos e mais divinos. Felizes por podermos ajudar alguém. Diz nas escrituras: Se um irmão ou uma irmã estiverem em nudez e lhes faltar alimento suficiente para o dia, contudo, alguém de vós lhes disser: “Ide em paz, mantende-vos aquecidos e bem alimentados”, mas não lhes derdes o necessário para os [seus] corpos, de que proveito é? Assim também a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma.
Voltamos para as nossas casas exaustos às duas da manhã outra vez. Começo a comer um pão que sobrou. Raramente sobra alguma coisa. Volto para casa outra vez feliz e triste ao mesmo tempo. Apenas gostaria de saber por onde andará agora aquela mãe com uma criança enrolada na minha jaqueta, carregando uma sacola com fraldas e leite em pó. Acho que jamais encontrarei a resposta.

Parceiros da Vida

Somos cinco. Marta, Francisco, Mari, Amauri e eu. Nos finais de semana às nove da noite, enquanto a cidade se prepara para as baladas intermináveis, nós nos reunimos para uma curta oração. Depois saímos, agradecidos pela proteção divina.
Foi a minha primeira vez, meu primeiro sábado como voluntário. Nossa primeira parada foi na rua Condessa de São Joaquim, no bairro da Liberdade, onde uma fila nos esperava lá fora. Somos uma equipe. Somos os parceiros da vida. Alimentamos os pobres, aquecemos os sem-teto e ajudamos os deprimidos. Fazemos isso porque é o que manda nossos corações. Não é obrigação. É desejo genuíno. Já estivemos do outro lado dessa situação e nossa missão é evitar que o pior aconteça. Ao menos estamos tentando.
Enquanto Mari e eu servimos pão com molho de tomate, salsicha e milho verde com batata palha e suco de maçã, a fila cresce e parece não terminar nunca. Não estou acostumado àquela cena. Mães com crianças de colo, juntas aos seus numerosos filhos, idosos, bêbados e drogados. Em uma cidade como São Paulo onde todos os postos de saúde distribuem gratuitamente preservativos para quem quer que seja, como podem haver tantos filhos das ruas? Não procuramos respostas, estamos ali para ajudar, não repreender. “Feliz aquele que alimenta os pobres”, diz nas Escrituras.
Na parte debaixo da ponte onde nossa van com comida está estacionada, Marta e Francisco distribuem cobertores, doados por pessoas generosas que simpatizam e apóiam a nossa causa. Nosso estoque não é muito mas vamos continuar.
Amauri é psicólogo e conversa agora com aqueles que estão comendo, recostados à grade. Alguns mal falam, ocupados demais com a comida, outros são atenciosos e agradecem, depois contam um pouco de suas vidas. Às vezes o que querem é apenas um ouvido atento. E se os parceiros da vida estão por ali, por que não descarregar tudo em cima de nós?
Terminamos nossa tarefa ali naquela noite. Temos que voltar para a missão Redentor, nosso quartel-general e abastecermos de suprimentos. Temos que agir muito rápido porque há outros com fome. Mas nosso trajeto é interrompido. Na ponte da Liberdade ao lado do shopping SoGo há uma moça sentada na grade olhando lá para baixo, para a avenida Radial Leste. Demora mas conseguimos convencê-la a não saltar e finalmente ela vai embora.
Nosso programa agora é levar mais pão com manteiga e chá quente na Praça da Sé. Outra fila nos aguardando. Há uma briga. Dois homens completamente bêbados. Um tem uma faca. E lá vamos nós de novo. Amauri, Francisco e eu. Não conseguimos convencer o homem com a faca a nos entregar a arma, mas ele se vira e vai embora escondendo a faca nas camadas de cobertores que leva sobre o corpo.
Um homem chora nas escadarias da catedral. Depois que alimentamos todos os que pudemos e nossos suprimentos se acabaram, estamos exaustos. Mas resolvemos nos sentar ao lado do homem que ainda não parou de chorar. Ele conta que acabou de terminar o casamento, e que ela era a vida dele e toda aquela conversa que estamos carecas de ouvir. Ele se anima por ter desabafado com pessoas que não vão criticá-lo porque nós cinco somos iguais a ele. Já passamos por isso também. Vamos embora.
Com os corações apertados outra vez voltamos para casa. Estamos juntos, ajudamos juntos, resgatamos juntos e damos esperança aos que não tem. Sempre juntos. Essa é nossa (e minha mais nova) missão. Juntos somos uma força poderosa. Nós somos os parceiros da vida.

O caso Burke

Tudo começou quando ela foi encontrada numa rodovia, morta. Ou será que foi aí que as coisas começaram a acontecer? O que é pior? Lamentar-se por uma coisa que fez? Ou por uma que deixou de fazer?
Eu jamais havia faldo com alguém de fora do país. Até aquela manhã de segunda-feira. Eram oito e quarenta e quando meu celular indicou aquele número estranho, composto apenas de zeros, eu atendi no mesmo instante. Já havíamos nos falado algumas vezes, mas sempre eram conversas via internet, apenas texto. Nenhuma voz até então.
Meu inglês estava completamente enferrujado, e sua velocidade me deixava sem saber o que entender. Muito menos o que responder. Eu entendia muito pouco, mas dava para perceber sua excitação, sua vontade de vir para o Brasil e reconstruir sua vida aqui. Chegamos a conversar por diversas vezes e me deixava muito feliz o fato de ela sempre dizer que adorava falar comigo porque eu parecia ser o único que realmente a ouvia. Não apenas escutava, ouvia.
Era complicado atender suas ligações, especialmente naqueles momentos que eu estava dentro de um dos infernais ônibus lotados e tinha que encarar os olhares curiosos das pessoas vendo um cara atender e falar a um telefone em inglês. Acho que no fundo, tudo que ela precisava era ser ouvida, e se ela quisesse despejar sua vida seus problemas, seus sonhos e desejos em cima de mim, eu estava completamente disposto a ouvir.
Mas houve uma noite que as coisas começaram a mudar. Eu estava saindo de uma aula importante, quando meu telefone tocou. Na verdade já havia tocado antes, mas eu não pude atender. Era meados de março, quase abril. Sua voz em pânico me deixou assustado. Devo ter dito algo estranho ou feito algum som porque muitos olhos se voltaram para mim no interior daquela lotação.
Seu inglês estava cada vez mais rápido, a voz ofegante, típico das pessoas que estão em apuros. Apesar da velocidade, a mensagem era clara e simples: “a polícia está aqui, e eles vão me matar, preciso sair daqui, tenho que estar aí na sua casa em São Paulo amanhã”. Eu estava perplexo e não sabia muito bem o que dizer. Tudo que eu conseguia falar era: “calma, tente ficar calma, e me explique o que aconteceu”.
Depois de muitos pedidos ela se acalmou e começou a explicar. O “amigo” que havia vindo com ela para o Brasil era procurado pela polícia, tanto brasileira quanto a polícia londrina. Alguém deveria ter comunicado o regresso dele, e agora os tiras tinham uma missão. O velho ditado: “diga-me com quem andas e eu direi quem és”, deve valer internacionalmente. É extremamente complicado provar que você não é um deles quando se está com um deles. Ela agora sabia disso e precisava da minha ajuda. Precisava de uma passagem, ou como ela dizia: “a ticket”.
Quando o dia amanheceu e eu estava outra vez ao trabalho, soube a história dela. Ela mesma me contou. Havia passado por uma instituição correcional, havia ficado lá por um ano, ordens da Scottland Yard. Tinha que usar uma pulseira digital para ser localizada facilmente. Eu sempre fui uma pessoa predisposta a entender os problemas dos outros. Não aceitar, mas entender. Por isso pedi que ela contasse tudo que ela havia feito. Tudo que eu precisava saber. Se era em mim que ela confiava, eu deveria saber toda a verdade para saber como ajudar.
Li com total atenção tudo que ela me contou. Todas as acusações. A lista era interminável. E eu não sabia muito bem o que dizer. Mas como bom advogado de defesa que serei, comecei a ver o lado humano da situação. Nada acontece por acaso. Quando a prostituta estava para ser apedrejada, mesmo tendo confessado e arrependido de seus atos falhos, Jesus disse aos homens com as pedras nas mãos: “Quem não tiver pecado que atire a primeira pedra”. Eu sabia que ela havia pagado por seus delitos. Estava em crédito outra vez.
Perdi a conta de quantas vezes alertei para que tomasse cuidado com as pessoas que ela andava, mas ela parecia não me ouvir. Seu mundo fora de seu país, num lugar estranho se resumia a poucos contatos. Ela queria mudar, aprender uma profissão, ser alguém, queria ser um astro do futebol, queria o que todos querem: viver. Andar sem a preocupação de olhar para trás.
Em nossas conversas diárias eu sempre tentava fazer com que minha amiga enxergasse que o mundo era muito mais do que aquele submundo que ela vivia. Sempre irei me arrepender de não tê-la trazido para cá, onde ela pudesse estar limpa, segura e com uma vida inteira pela frente. Nunca desenvolvi qualquer outro sentimento que não fosse o amor de amigo, de irmão. De certa forma, me sentia útil, responsável pelo destino de alguém. Hoje vejo que deveria ter tentado mais, ter sido mais convincente talvez. As coisas talvez pudessem ser analisadas de outro prisma, de outro ponto de vista. Talvez não.
Era uma terça-feira e não devia ser mais de sete e meia da noite em São Paulo. Eu estava online no meu MSN quando um amigo me chamou. Respondi prontamente. Sua pergunta era simples e rápida: “ela está aí na sua casa?” respondi que não e farejei encrenca. Quis saber os motivos da pergunta. Como resposta recebi apenas um “ela está desaparecida desde domingo, e como sei que você se importa muito com ela, pensei que ela pudesse estar aí”.
Não estava. Jamais esteve. Foi então que li uma das frases mais duras, mais dolorosas da minha vida: “encontraram ela numa mala”. Jamais irei esquecer aquela noite. Minha reação foi automática: “Não!”, digitei mas minhas mãos tremiam tanto que eu não conseguia controlar. A seguir vieram os detalhes, os requintes de crueldade.
Eu não sabia o que fazer. Meu instinto, e foi puramente por instinto, me levou ao jornal da minha cidade. A reportagem estava lá, mas não havia nome algum. Poderia ser um terrível engano. Voltei para casa completamente perdido nos meus pensamentos. Meu rendimento no trabalho na quarta-feira foi péssimo. Então na quinta-feira de manhã, quando entrei no trabalho, a revelação.
Cumprimentei a todos como sempre. E corri para o computador. Abri a página do jornal da minha cidade. A matéria da capa: “Homicídios crescem 33% em Goiás”. Abaixo, a foto da minha amiga. Não consegui ler a reportagem, corri para o banheiro. Ajoelhei diante da privada e vomitei. Joguei água fria no rosto e voltei para a sala.
A polícia de Goiânia encontrou nesta quarta-feira, embrulhado em sacos plásticos, dois braços que podem pertencer a Cara Marie Burke, inglesa, dezessete anos, cujo tronco foi encontrado numa mala numa rodovia...
Minha aula começava em dez minutos. Foi a pior da minha vida. Eu não conseguia me concentrar. Minha voz estava embargada. As palavras se recusavam a sair. Por dentro eu estava gritando. Eu não queria aceitar. Não podia.
Durante horas fiquei ali, sentado, olhando o nada, tentando entender o tamanho da minha culpa. Quando cheguei em casa, já muito tarde da noite, o Jornal da Globo mostrava o que eu não queria ver. A mesma foto que ela havia me mandado semanas atrás. Não resisti, chorei.
Poucas coisas são tão dolorosas quanto perder alguém que se tornou tão importante em nossas vidas. A sensação de perda, de impotência, o gosto amargo que fica na boca dos que permanecem, o buraco em nosso peito quando alguém se vai e lentamente começamos a perceber que não há mais volta. Talvez não exista dor maior.
Ontem, já passados alguns meses depois de tudo isso ter acontecido, quando ia dormir, eu estava mudando de canal aleatoriamente quando resolvi parar e ver o jogo de futebol feminino. Lembrei da minha amiga. Talvez um dia ela estivesse usando aquele uniforme verde e amarelo. Talvez estivesse escrito: Cara, ou Marie ou Burke nas costas. As lágrimas vieram espontaneamente.
Algum dia irei a Londres. E direi a Anne Marie, sua mãe, tudo que aconteceu, meu “point of view”. Espero que minha amiga descanse em paz. A paz que infelizmente não encontrou em vida. Só quero que a culpa por não tê-la tirado de lá enquanto havia tempo, desapareça dos meus ombros. Tudo que posso fazer agora é esperar e tentar parar de querer encontrar respostas para o que não há resposta.
Existem coisas que nem o tempo pode apagar. Feridas tão profundas que levamos para sempre em nossas vidas. Espero um dia poder reparar tudo que deixei de fazer pela minha amiga. Espero mesmo.
Rest in peace, my friend.
Lots of love.

Caminhos de Santo Amaro

Toda quinta-feira a noite a Sra. Elizabeth Coelho se arrumava e saía para gastar parte da sua fortuna herdada de seu marido, o ex-coronel Moacir Ramalho Valente, em um bingo de Santo Amaro. Seu marido a havia deixado, com uma conta gorda a render juros no banco, quase tão gorda quanto ela.
Colocava seu vestido branco com flores em rosa, prendia seus cabelos loiros acinzentados pela idade, e usava sua melhor maquiagem, todas as vezes que ia jogar. "É para dar sorte", costumava dizer quando questionada por que se vestia daquela maneira. Os anos haviam sido gentis com ela, que aos setenta e dois anos, conservava a aparência de uma mulher de cinqüenta anos.
Seus dois filhos, Heitor e Heloisa Valente estavam crescidos e tinham suas próprias famílias, e raramente apareciam na residência da mãe. Mudaram-se para o interior de Santa Catarina depois que se casaram, e apenas no final de ano era possível o reencontro. Apesar de ter muito dinheiro, a Sra. Elizabeth Coelho preferia uma vida simples e continuava a morar naquela mesma casa , cor de pêssego e de grades marrons com setas na ponta.
Depois da maquiagem pesada a Sra. Elizabeth Coelho já estava pronta para mais uma noite de jogatina intensa e animada com seus amigos de vício e conhecidos que se encontravam no Bingo 13, na parte mais movimentada que era Santo Amaro durante o dia.
O frenesi dos camelôs e ambulantes que invadiam as calçadas e acreditava-se serem os maiores causadores pelos transtornos no trânsito que chegava a ser caótico em determinados horários, diminuía drasticamente à noite, quando a tranqüilidade dizia presente. Tranqüilidade esta a atraia a atenção de bandidos e outros elementos pouco desejados por ali, a não ser pelos próprios colegas, talvez nem por eles mesmos.
Foi ali, naquele mesmo beco escuro, onde a Sra. Elizabeth Coelho havia estacionado seu carro horas antes, que ela foi levada por quatro homens encapuzados e com armas nas mãos, logo após ter ganho dois mil reais no jogo. A noite tinha sido ótima ate então, os gritos de Bingo! foram mais intensos do que o habitual.
Não eram raras as vezes que Dona Elizabeth ganhava. Já chegara a ganhar semanas seguidas, mas hoje havia sido diferente, quase todo o dinheiro que havia na sua bolsa havia sido deixado nos cofres do Bingo 13, e ela precisava recuperar as rédeas da noite. Não que ela precisasse daqueles quatrocentos reais que tinha levado, era mais uma questão de vencer, de tentar através da diversão, mostrar a si mesma que ainda estava viva e poderia ainda ter o domínio sobre o seu destino.
Mal ela poderia imaginar que estava completamente errada, pelo menos naquela noite. Os sorrisos amarelos dos jogadores que não ganhavam, se misturavam aos sorrisos autênticos de Dona Elizabeth que acabara de levar para casa dois mil reais. Finalmente havia recuperado o dinheiro que havia gastado e ainda levara o dobro do valor original para casa.
Os quatro homens que a iriam seqüestrar já estavam estrategicamente posicionados na saída do local, esperando apenas que a vitima estivesse longe da proteção dos seguranças e viesse para a escuridão da noite, para que então pudessem colocar seu plano maquiavélico em prática.
Era meia noite quando Dona Elizabeth saiu do Bingo 13 e caminhou como sempre, lentamente, rumo ao seu carro, um Lada Laika vermelho de vidros decorados de adesivos e frases sugestivas. Henrique e Heloisa, seus filhos sempre diziam para que a mãe trocasse de veículo, e comprasse um modelo mais novo, mais confortável, mas Dona Elizabeth sempre afastava a idéia de trocar seu precioso Lada, tinha sido um presente de seu marido.
Pouco antes de entrar no Bingo para jogar, havia estacionado num beco escuro, perto da Avenida Adolfo Pinheiro, no mesmo lugar de sempre. Talvez tenha sido isto também que tivesse despertado a curiosidade dos seqüestradores. Abriu a bolsa e retirou a chave do veículo que era presa por um chaveiro. Mal encostou a mão no carro e sentiu quando uma pancada seca a atingiu pelas costas. Tentou gritar, mas a voz não saía, tinha sido golpeada na altura dos pulmões. Tentou se levantar, apoiando as mãos agora muito trêmulas, uma no meio fio e a outra no asfalto, quando sentiu um violento chute no estomago, que a fez girar e cair novamente, desta vez com as costas no chão. Seu vestido agora rasgado, mostrava o sangue que fluía do queixo. Foi quanto sentiu dois pares de mãos levantá-la, enquanto o terceiro homem abria a porta do veículo, e o último homem do grupo abria sua bolsa.
Dona Elizabeth foi jogada violentamente no banco de trás, batendo a testa no aro da janela . Tudo foi rápido que ela não viu a face dos homens e logo tudo ficou escuro, um capuz fora colocado em sua cabeça, e uma cotovelada no nariz a fez desmaiar.
O veículo começou a se movimentar, e logo foi ganhando mais e mais velocidade. No fundo do carro, Dona Elizabeth e mais dois homens, que agora olhavam com atenção os documentos encontrados, identidade, cartões de crédito. Um deles, contava o dinheiro que serviria para comprar drogas ou bebidas.
Um buraco no asfalto, na altura da avenida Adolfo Pinheiro quase esquina com a rua Américo Brasiliense, fez o carro chacoalhar inteiro, quando as rodas do lado direito bateram, e as molas de suspensão chiaram. Dona Elizabeth enfim acordou, tinha ficado desacordada, desde que batera com a cabeça dentro do carro. Ao mesmo tempo em que tentava ficar calma lembrou do que havia sofrido, e então constatou que se tratava de um seqüestro.
Já tinha lido inúmeras reportagens sobre pessoas seqüestradas, e sabia para seu próprio desespero que alguns seqüestros duravam desde alguns minutos, até semanas inteiras, às vezes meses, e algumas nem mesmo voltavam para casa. Começou a chorar baixinho para não chamar a atenção mas não foi possível.
- Cale-se sua velha miserável", disse um dos homens.
- Fique quieta e talvez volte a jogar bingo com a velharada - disse, dando uma risada sarcástica, sendo acompanhado pelos outros passageiros. Sem saber o que dizer ou fazer, Dona Elizabeth pensou e decidiu que o melhor a se fazer seria ficar em silêncio, já que a qualquer momento poderia levar outra pancada e se machucar mais. "Eles ainda vão pagar por isto", pensou.
Pelo que o carro andava, Dona Elizabeth Coelho suspeitou que estivesse muito longe, talvez nos arredores de São Paulo ou em um bairro distante que não conhecia , mas os bandidos estavam na avenida Vereador Jose Diniz, seguindo em direção à Vila Mariana, local do cativeiro em que Dona Elizabeth ficaria. Se o resgate fosse pago.
O veículo parou e uma das portas foi aberta . Um dos homens saiu do carro. Logo ouviu-se o barulho de um portão abrindo. O carro voltou a andar. Assim que sentiu o veículo parar e os outros homens saírem do carro, Dona Elizabeth também sentiu um calafrio. Seria aquele seu último destino?
O veículo estava com os vidros fechados, mas ainda era possível saber que os homens conversavam lá fora. Falavam algo que ela não conseguia entender. Tentou apurar os ouvidos, mas não conseguia discernir as palavras . Assustou-se quando o homem bateu com a mão espalmada no vidro e ela deu um pequeno salto, fazendo o carro balançar.
Não tinha a menor idéia de onde estava naquele momento, mas de uma coisa tinha certeza, de que seu medo tomava conta de cada célula do seu corpo quando sentiu que os homens entravam novamente no carro e este começou a se movimentar.
Mais uma vez ela estava nas ruas à deriva de bandidos. Perguntou: "Que horas são?", a resposta foi sarcástica: "Por quê? Vai a algum lugar?" disse um dos homens, soltando uma risada alta, o que assustou ainda mais Dona Elizabeth. “Minha medicação tem horários controlados, se eu não a tomar na hora certa, terei um espasmo, e acho que não seria nem um pouco vantajoso para vocês”. Quando terminou de dizer estas palavras, ela conseguiu entender a dimensão do risco que correra dizendo aquilo para os bandidos.
Talvez eles não quisessem mesmo ter trabalho extra com ela, talvez já até tivessem conseguido o que queriam, talvez dois mil e poucos reais já fossem suficientes, e eles agora sacariam suas armas e atirariam nela, e a deixariam em uma rua qualquer jogada ao relento, jazendo ali, inerte ate que alguém visse o corpo e avisasse a policia. Mas isso não aconteceu. Os bandidos se entreolharam e um deles fez um movimento com a cabeça indicando que o remédio deveria ser entregue.
Dona Elizabeth Coelho engoliu os comprimidos a seco. Os remédios que a faziam dormir começaram a fazer efeito dez minutos depois. "Se eu morrer hoje, dessa maneira, que pelo menos seja de uma forma indolor" pensava. Adormeceu. Suas mãos foram amarradas e ela foi levada a um quarto, seu cativeiro.
Quando Dona Elizabeth acordou aquela manhã de sexta-feira, tudo parecia girar ao seu redor. Sua cabeça latejava. Seu vestido branco, estava irreconhecível;. Os cortes sofridos por Dona Elizabeth de seu corpo estavam agora roxos e ela sentia muitas dores . Não tinha idéia das horas e de onde estava.
Tinha certeza de que algo havia saído dos eixos. Uma fresta de luz entrava elas janelas, e esta luz criava uma imagem fantasmagórica no interior do quartinho de dois metros por dois. O local cheirava a naftalina e alguns jornais e trapos estavam espalhados pelo chão frio .
Dona Elizabeth jamais dormira no chão e agora sentia os efeitos nos seus braços, cabeça e joelhos.
Levantou-se com dificuldade, apoiou uma das mãos no chão, fazendo um esforço sobrenatural para erguer tanto peso. Mal tinha ficado de pé e um soco na portinha do quarto a assustou. Pôde então ver a silhueta de um homem alto, com cabelos curtos e espetados, mas não conseguiu ver seu rosto já que a luza matinal quase a cegara.
O homem se abaixou, colocou um prato de metal, e um copo com água. Sentia fome e se dirigiu rapidamente ao local onde o prato e o copo estavam e comeu o pão seco em questão de segundos. Bebeu a água e sentiu alivio, sentou-se, e não conseguiu pensar em mais nada. Adormeceu novamente.
O senhor Arnaldo Costa Lemes ao chegar às sete e quarenta e cinco da manhã na casa de Dona Elizabeth, como fazia todas as manhãs, estranhou o fato do carro não estar na garagem. Tocou a campainha da casa que era a quinta casa da rua da Paz, e tinha o numero 113, ninguém atendeu. Arnaldo Costa Lemes era aposentado, mas sempre encontrava um jardim para cuidar, e assim manter-se ainda ativo na profissão e ao mesmo tempo conseguir aumentar sua renda de aposentado.
Todos os dias pontualmente às sete e quarenta e cinco ia à casa de Dona Elizabeth tomar café recém passado, e trocar algumas palavras com sua amiga de tantos anos. As únicas pessoas que sabiam do seu envolvimento amoroso com a viúva do ex-coronel eram apenas eles dois. O caso dos dois havia começado a muitos anos e a outros tantos já havia terminado, mas tudo aconteceu durante a vida do coronel Moacir.
Era de se estranhar o fato de Dona Elizabeth não estar em casa. Chamou o vizinho mais perto que estava próximo ao portão, mas também não obteve informação alguma. Por coincidência uma viatura policial fazia a ronda por aquela rua. Não pestanejou e parou o veículo. Os policiais desceram e ouviram o senhor Arnaldo. "Alguma coisa tem que ser feita" instava ele com os policiais, que neste momento tocavam a campainha da casa insistentemente. Usando um pé de cabra o policial abriu o cadeado da grade, e entrou no quintal da casa.
Ao entrar na casa, acompanhado pelo senhor Arnaldo, os policiais procuraram por todos os cômodos da casa por algum vestígio, com Lippy, o cachorrinho branco de estimação da dona da casa aos seus calcanhares, latindo e rosnando, mas tudo que conseguiram encontrar foi a agenda telefônica, onde logo localizaram o número de telefone celular de D Elizabeth. Foi aí que as coisas começaram a se encaixar.
A cerca de dois meses atrás, no aniversário de setenta e dois anos de dona Elizabeth Coelho, Heloisa, sua filha, trouxe o presente que sem saber, salvaria a vida da mãe. Era um aparelho telefônico celular que mostrava em tempo real qual era a exata localização da pessoa que o estava usando. Tudo era monitorado por satélite e rastreado por um chip GPS.
Apesar de Dona Elizabeth não gostar das novidades tecnológicas que seu dinheiro podia comprar, mesmo assim, naquela noite de quinta-feira acabou levando seu aparelho, não porque quisesse ser encontrada, e sim porque Georgette Alves, sua amiga de tantos anos acabara de telefonar assim que Dona Elizabeth entrou no seu Lada vermelho em direção ao Bingo 13. Falavam muito e pareciam não ter noticias umas das outras a muitos anos, embora com freqüência as duas se encontravam, ora na casa de Dona Elizabeth ora na casa de Georgette para tomarem o já tradicional chá .
Caso o aparelho estivesse ligado, seria possível identificar onde a vitima poderia estar. O tenente Amauri que dirigia a viatura chamou o posto da policia mais próximo e informou o caso. Outras providências foram tomadas.
O rastreamento começou e logo mostrou que o aparelho estava em poder de uma pessoa em movimento. A pessoa estava próxima ao cruzamento da Rua da Fraternidade com a Avenida Santo Amaro. A viatura do tenente Amauri, junto com outras duas se dirigiram para o local informado atrás do algo. Voavam, chegando ao local com as sirenes desligadas para não chamar a atenção, um dos policiais que estava no banco de trás ligou para o telefone, enquanto observava a reação das pessoas que trafegavam pela Avenida Santo Amaro. O homem que estava com o telefone deu um salto e ficou ali mesmo estagnado com o susto que levou quando atendeu a chamada. Cercaram o suspeito encostaram-no na parede, gritando como fazem as vezes os policiais.
Com as viaturas atravessadas na Avenida Santo Amaro no sentido centro, apenas duas faixas da avenida ficaram disponíveis para o fluxo dos veículos, o que aumentava vertiginosamente a quantidade de veículos engarrafados, procurando passagem a qualquer custo.
Com as mãos algemadas, o rapaz explicou por duas vezes a história de como tinha comprado o telefone de um "amigo". A maneira como narrou a história por duas vezes seguidas sem tropeçar nas palavras fez com que os policiais informassem o caso ao grupo de operações especiais, o GOE. O rapaz suspeito fora detido até que o assunto fosse resolvido.
Dentro da viatura o rapaz informava o local onde havia encontrado o tal amigo que ele mesmo não lembrava o nome e o tipo físico, lembrava que era alto, loiro e com corte de cabelo no estilo militar. O retrato falado do suposto seqüestrador fora feito e divulgado.
Dona Elizabeth estava a quase vinte e quatro horas no seu cativeiro e tinha que encontrar uma maneira de sair dali. Dona Elizabeth se recordava que os seqüestradores ficavam horas sem aparecer no quartinho só aparecia quando iriam levar comida para ela e tentar forçá-la a revelar o telefone dos filhos para que então pudessem exigir o resgate. Mas isso era em vão. Quanto mais Dona Elizabeth apanhava, mais resistente ficava, e relutava em revelar as informações que os seqüestradores queriam. Só não sabia até quando iria agüentar aquela pressão.
Pensava se de repente alguém tivesse visto seu carro sobre a calçada de alguma rua e avisasse a policia, mas não levou muito a sério esta possibilidade. Foi quando teve uma idéia. Tateou pelas paredes indo em direção à luz que entrava pelas frestas das tábuas que cobriam o espaço que antes era uma janela, percebeu que as tábuas que haviam sido colocadas ali tinham sido parafusadas. Imediatamente retirou o anel de seu dedo e começou a afundar a ponta do anel na fissura da cabeça de um parafuso. Foi muito difícil fazer o parafuso girar mas lentamente o parafuso cedeu. E assim aconteceu com todos os outros parafusos. Durante a noite se ela ainda estivesse ali, tentaria a fuga
A escuridão começava a ficar total dentro daquele cubículo, agora deveria ser umas sete horas da noite. Mais uma vez um soco na porta, e o mesmo rapaz a servir um prato, desta vez com uma sopa rala que Dona Elizabeth recusou assim que o rapaz virou as costas. De repente, um barulho de pneus cantando indicava que o carro que estava no quintal daquela casa, logo estaria fora dali. Se era o seu carro ou outro, Dona Elizabeth jamais iria saber. A única coisa que sabia era que iria tentar sua escapada.
Embora não tivesse idéia de onde estava, estava determinada a sair e gritar por socorro, removeu todos parafusos pulou a janela com dificuldade, engatinhou no chão e encaminhou-se para rua. Andando agachada para tentar não ser vista, Dona Elizabeth pôde ver um homem sentado em uma cadeira de praia na varanda dos fundos da casa, de olhos fixos no barraco.
Pensou em quanto tempo ficaria ali. Por uma sorte grande, o homem da cadeira levantou-se e se dirigiu para o interior da casa. Continuou a andar e passou por um corredor que havia do lado direito da casa, com acesso a um portão. “E se o portão estiver trancado?” era o que pensava agora Dona Elizabeth.
Caminhou para a frente da casa, passando pelo corredor, e viu que uma escada de madeira, estava escorada em uma parede próximo ao muro que daria acesso à rua. Subiu a escada imaginando quando terminaria aqueles curtos e intermináveis degraus, que dariam a sua tão esperada liberdade. Finalmente chegou ao final do muro, pulou e quando tocou o chão, torceu o tornozelo . Segurou o grito e andou até o final da quadra. Chegou à esquina. Estava livre.
Um facho de luz azul e vermelha chamou a sua atenção. A luz ficava mais perto a cada instante, e quando a viatura chegou perto, Dona Elizabeth saltou na frente do veículo pedindo socorro. Estava finalmente salva.
Indicou o lugar de onde viera para os policiais, após contar sua triste história. O tenente que estava na viatura, pediu reforços imediatamente. Três outras viaturas chegaram ao local, onde preparavam uma emboscada aos seqüestradores. Dona Elizabeth informou que talvez eles não estivessem ali, pois o cantar de pneus e o sossego do local, dava a entender que talvez só o homem da varanda do fundo da casa estivesse no local.
Não havia mais tempo a perder. A policia chegou ao local, foram até a casa ao lado de onde era o cativeiro e chegando ao muro subiram, a fim de surpreenderem quem estivesse na casa. Um barulho de portão se abrindo chamou a atenção dos policiais que se prepararam para atacar. O carro em que estavam os seqüestradores, entrou e foi estacionado.
Assim que desceram do veículo, os policiais os surpreenderam. Exigiram que soltassem as armas para que ninguém saísse ferido. Mas os seqüestradores sacaram suas pistolas. Foi quando uma chuva de balas crivaram os corpos dos seqüestradores, que caíram inertes no chão. Estava consumado.
Dona Elizabeth despertou. Seu pé fora engessado. O relógio marcava sete e quarenta e cinco da manhã, e um cheiro agradável chegava ao seu nariz. Ouviu passos na cozinha. De repente a figura do senhor Arnaldo entrou pela porta, trazendo consigo uma bandeja com café e biscoitos amanteigados. Dona Elizabeth piscou os olhos demoradamente e pôde então ter certeza de que tudo estava novamente sob controle.
- O que acha de uma viagem para esquecer tudo? - perguntou o senhor Arnaldo, vendo que não iria mais acordá-la já que estava desperta.
- Pensarei no caso, mas não será esta semana - respondeu Dona Elizabeth, pegando a xícara já com café e aproximando da boca.
- Acho que deveria, você precisa descansar – insistiu.
- Não se preocupe comigo. Estou ótima, e vou ficar ainda melhor logo.
- O que pretende fazer? – questionou o senhor Arnaldo.
- Jogar no Bingo 13 – respondeu com um leve sorriso – Acho que estou com sorte.

Lost & Found

Eu estava em casa, terminando de ler “O vencedor está só”, do Paulo Coelho. Sou um apaixonado por livros, principalmente aqueles que contam as minhas histórias. Igor, o personagem principal perde a mulher da sua vida porque estava tão envolvido com trabalho, tão preocupado em vencer e ser alguém na vida (coisa que ele já era) que acaba deixando de viver o que é mais importante na vida: o seu amor.
Quando se dá conta de sua perda irreparável, começa a mandar mensagens para sua amada. Mas tenta uma reconquista da maneira mais macabra possível: matando pessoas num festival. Só quando consegue fazê-la entender que seu amor é verdadeiro é que percebe que aquela mulher não merece nada daquilo, que ele é muito mais do que ela e que perdeu muito tempo de sua vida em algo que não valia a pena, muito menos seu precioso tempo.
No momento que terminei a ultima página, caiu uma ficha na minha cabeça. Eu quase poderia ouvir o som. Muita vezes, quando amamamos (ou achamos que amamos) fazemos coisas absurdas, idiotas, tentando mandar mensagens, recados que nunca são ouvidos quando a outra parte já não se interessa mais.
E continuamos a nos doar, a persistir, pensando que tudo pode ser uma crise, um bloqueio emocional da outra pessoa, mas que um dia vai passar e tudo voltará a ser como era antes. Mas em alguns casos, nos esquecemos que para algumas pessoas, amar é uma palavra estranha, tão estranha como a felicidade.
Acostumamos tanto com decepções, traições, desinteligências, que estranhamos quando o melhor da vida bate à nossa porta e pede para entrar. Batemos a porta em sua cara, conscientes que a oportunidade pode não mais voltar, mas pelo menos estamos seguros lá dentro de nossas clausuras, onde existem os medos que já nos acostumamos e a companhia das pessoas que não temos garantia que estarão ali quando mais precisarmos, lá dentro, onde no escuro da noite iremos chorar nossas dores, mas onde continuaremos a vestir nossas máscaras para que o mundo pense que somos felizes, que somos fortes e que tudo vai bem em nosso mundo.
Mas quando acaba a festa, e a bebida já fez efeito, e estamos de novo sozinhos, com gripe, ou dor de cabeça, querendo que aquela oportunidade bata na porta outra vez, porque agora iremos agarrá-la e não iremos mais soltar, porque agora temos coragem de viver os planos que ainda não passaram de planos, quando o medo foi mais forte, nessa hora, só o silêncio se faz presente e de cada canto extremo dos olhos rola uma lágrima, como que querendo pedir desculpas a nós mesmos por ter que viver outra noite naquele estado. E outra noite. E mais uma.
Nosso tempo nesse planeta é muito pequeno para desperdiçarmos com medos, caprichos, traumas e bloqueios. Às vezes as soluções estão bem aí, ao alcance da nossa mão. Dores aparecem, decepções nascem, mágoas surgem, e vem e vão para todos nós. Mas e daí? Coma os morangos da vida!
Roberto Shinyashiki, o grande psiquiatra, conta que certa vez um homem estava sendo perseguido por um urso e chegou a um precipício, escorregou mas conseguiu se agarrar à raiz de uma árvore. Lá em cima estava o urso, lá em baixo, sete tigres. Estava perdido. Mas ele olhou para o lado e perto da raiz estava um morango vermelhinho brilhando ao sol. Ele comeu o morango e foi o melhor morango da sua vida. Dane-se o urso e os tigres, mas coma o morango.
Às vezes os morangos estão aí e nem percebemos. Ou esperamos o tempo passar e ver se os ursos e tigres vão embora para comermos os morangos em paz, pra somente depois vermos que a frase célebre do imortal Willian Shakespeare era pura verdade: Oportunidades nunca são perdidas, alguém vai aproveitá-las para você.

Onze Minutos - por Paulo Coelho

Era uma vez um pássaro. Adornado com um par de asas perfeitas e plumas reluzentes, coloridas e maravilhosas. Enfim, um animal feito para voar livre e solto no céu, alegrar quem o observasse.
Um dia, uma mulher viu este pássaro e se apaixonou por ele. Ficou olhando o seu vôo com a boca aberta de espanto, o coração batendo mais rápido, os olhos brilhando de emoção. Convidou-o para voar com ela, e os dois viajaram pelo céu em completa harmonia. Ela admirava, venerava, celebrava o pássaro.
Mas então pensou: talvez ele queira conhecer algumas montanhas distantes! E a mulher sentiu medo. Medo de nunca mais sentir aquilo com outro pássaro. E sentiu inveja, inveja da capacidade de voar do pássaro.
E sentiu-se sozinha.
E pensou: "Vou montar uma armadilha. A próxima vez que o pássaro surgir, ele nao mais partirá";
O pássaro, que também estava apaixonado, voltou no dia seguinte, caiu na armadilha, e foi preso na gaiola.
Todos os dias ela olhava o pássaro. Ali estava o objeto de sua paixão, e ela mostrava para suas amigas, que comentavam: "Mas você é uma pessoa que tem tudo". Entretanto, uma estranha transformação começou a processar-se: como tinha o pássaro, e já não precisava conquistá-lo, foi perdendo o interesse. O pássaro, sem poder voar e exprimir o sentido de sua vida, foi definhando, perdendo o brilho, ficou feio - e a mulher já não prestava mais atenção nele, apenas na maneira como o alimentava e como cuidava de sua gaiola.
Um belo dia, o pássaro morreu. Ela ficou profundamente triste, e vivia pensando nele. Mas não se lembrava da gaiola, recordava apenas o dia em que o vira pela primeira vez, voando contente entre as nuvens.
Se ela observasse a si mesma, descobriria que aquilo que a emocionava tanto no pássaro era a sua liberdade, a energia das asas em movimento, não o seu corpo físico.
Sem o pássaro, sua vida também perdeu o sentido, e a morte veio bater em sua porta. "Por que você veio?", perguntou à morte.
"Para que você possa voar de novo com ele nos céus", a morte respondeu. "Se o tivesse deixado partir e voltar sempre, você o amaria e o admiraria ainda mais; entretanto, agora você precisa de mim para pode encontrá-lo de novo".

Os gritos do meu silêncio - Parte II

Comecei a ter meus sonhos de família desde muito cedo. Desde pequeno observava o que para mim sempre me pareceu correto. Amei e invejei o casamento dos meus avós paternos. Dela, o primeiro. Dele, o segundo. Quarenta anos juntos, três filhos e um cuidado extremo um com o outro. E eu dizia: “quero que comigo seja assim”. Os três filhos: meu pai, tia e tio, seguiram na mesma direção. Meus pais, quase trinta anos juntos sem jamais se separarem, aos trancos e barrancos, mas sempre ali, juntos até que a morte os separe. Minha tia também, até que a morte do meu tio os separou. O outro tio segue firme, mais de quinze anos juntos, sempre o mesmo casal. Cresci e fui a exceção da família. Não durei cinco anos. Separei depois que outro entrou em cena. Meu irmão seguiu a tradição: seis anos casado e ficam melhor a cada dia. Me casei pensando que aquela seria a mulher da minha vida. Não era. Conheci outra pessoa, que parecia querer o mesmo que eu, e prometi que tudo seria diferente. Comecei a tratar bem, fiz esforços, sacrifícios que deixaram feridas tão profundas na alma que nem o tempo poderá apagar. Por amor deixei tudo de lado, meus sonhos, minhas vontades para viver algo que pensei teria sido maior. Mas eu não sabia de uma coisa: amor demais assusta. Existem pessoas que passam por traumas que jamais serão curados. E tudo que fiz, todos os planos que me custaram noites em claro, lágrimas de sangue, solidão, abandonos, tudo isso foi jogado fora sem um mínimo de consideração. Eu pensava que era possível reverter coisas passadas. Eu pensava que se eu desse todo amor do mundo, eu poderia desfazer toda uma vida de reclusões, enganos e traições. Mas eu estava enganado. E por várias noites chorei no escuro do meu quarto, chorei um choro fervoroso, doído, que molhava meu travesseiro e lavava os meus pecados. Eu não queria muita coisa, apenas uma vida normal com quem eu amasse e para quem eu devotaria minha lealdade, minha fidelidade e meu amor. E pensei. Lembrei. Recordei. Repassei tudo que havia vivido até aqui. Coisas que foram, coisas que são, e algumas coisas que ainda não aconteceram. E ali, naquele canto escuro no meu quarto, rezei, juntei minhas mãos, me humilhei, pedi e implorei. Poucas coisas são mais dolorosas que querer muito algo, tanto, a ponto de quase perder a própria identidade, a ponto de quase anular-se como indivíduo por uma causa e ser derrotado por um trauma que nem foi você que causou. E ainda por cima continuar com aquela sensação de ter sido simplesmente um objeto. E aquele silêncio que grita tão forte em meus ouvidos que quase me faz saltar de peito aberto e cara pro sol, sem ter asas para voar. Aquele silêncio que não cessa. O silêncio que fica e perturba. O silêncio que só pode ser ouvido. E sentido. E então quando eu menos esperava, a esperança voltou na forma de pessoa. Pessoa que pensa igual, que não mede esforços, que sabe valorizar e que faz de tudo para que as coisas aconteçam e dêem certo. Pessoa que não desiste, que não tem bloqueios, que é capaz de amar intensamente, que cura algumas feridas, que acredita e não tem vergonha de querer ser diferente, que pensa igual e que sabe que muito mais vale uma vida de compromisso de verdade do que um vida sem objetivos onde você sempre acaba voltando para casa sozinho e nada passa de pura ilusão. Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira. Quando o telefone tocou e eu achava que tudo estava perdido, esquecido, queimado, morto e sepultado, eis que no meio das cinzas surge uma folha verde, um broto de esperança. No rádio passava “You touched my life”, na voz de Gwen Guthrie. Aquela música que já foi tem a de algo tão bonito e que agora volta para reconstruir o que havia sido perdido. Parei para ouvir enquanto dois filmes passavam em minha cabeça. Terminei, olhei para a foto no porta-retrato e fiz uma prece silenciosa. “You touched my life, you’re so very special. Oh my love you’re so very special to me…”. Pensei outra vez na tradição da família e talvez eu não seja mais a exceção. Essa tarefa eu simplesmente passo adiante

A árvore de Chiara

Um dia contaram a Chiara que tudo que quisesse se tornaria realidade se ela anotasse tudo em uma lista e colocasse essa mesma lista em um local onde estivesse sempre à vista para estar sempre lembrando. Ela tinha quatorze anos quando começou a planejar. E anotou. Planejou. Imaginou tudo, dia após dia. E nada. Aos dezessete anos apenas dois itens da lista haviam se cumprido. E Chiara então ficou muito triste por tudo que não havia acontecido.
Num dia de muita chuva e sol ao mesmo tempo, Chiara saiu água abaixo e no quintal de sua casa abriu um pequeno buraco no chão, dobrou a lista, e enterrou unto com o resto da maçã verde que estava comendo. Depois de alguns meses percebeu que uma pequena arvore estava nascendo ali mesmo no seu jardim. Era de novo um domingo à tarde com sol e chuva fina quando seus pais a proibiram de fazer uma viagem sozinha. Chiara saiu para o jardim e chorou sobre a pequena arvorezinha enquanto olhava o arco-íris multicor se formar no céu cinzento.
Naquela mesma noite, a árvore, adubada pelas lágrimas de Chiara cresceu e se tornou uma grande macieira. Ninguém soube explicar como uma árvore daquele tamanho havia aparecido no jardim do quintal da noite para o dia. Quando acordou viu a árvore cheia de maçãs e assim que comeu a primeira ouviu seu pai chamar por ela. Ele estava com um bilhete de passagem aérea. O presente de aniversário de Chiara. Outro dia se passou e no cursinho viu que havia passado no vestibular para odontologia. E assim cada um dos desejos se tornou realidade toda vez que comia uma maçã de sua árvore. E Chiara sorriu todos os dias de sua vida por ter conseguido tudo que queria. E sua árvore continuava crescendo forte e sua sombra dava repouso a todos. E alimentou dezenas de pessoas. Incluindo seus filhos, netos e bisnetos. E continuou assim, mesmo depois que Chiara se foi para o lado de lá e viver eternamente como havia desejado no último item de sua lista que havia sido enterrado junto com as raízes de sua árvore.

Crossroads

Foi então que aconteceu que num final de tarde de sábado, não me lembro o mês, mas o ano era dois mil e seis, que estávamos saindo do trabalho, o Gabriel e eu, e estávamos descendo a Rua João Cachoeira no Itaim Bibi, em direção ao Extra, aquele que fica no cruzamento da Leopoldo Magalhães aqui em São Paulo. Caprichosamente o carro não pegou. O Gabriel garantiu que tinha abastecido na noite anterior. Tentamos de tudo. Empurramos o carro, balançamos e nada. Tivemos que ligar para a seguradora. Enviariam um mecânico em no máximo quarenta minutos.
O carro estava parado na ruazinha atrás do Extra e ali estava um rapaz sentado na mureta com uma rosa na mão olhando o longe. Meu amigo entrou no supermercado para comprar algo para comermos, e eu já estava me arrependendo por ter aceitado a carona. Olhei para o rapaz, mas ele não demonstrava impaciência. Mas também parecia estar ali apenas por estar. Ele viu que eu o estava olhando e se apoiou numa protuberância que há no muro, onde passa o relógio de luz.
“Ela virá!”, ele disse. Beijou a rosa e a colocou carinhosamente sobre um monte de galhos secos. Olhei para os lados para dar uma impressão de susto como quem diz: “O quê? Está falando comigo?”. Foi quando ele começou a falar, nunca olhando para mim, mas sabendo que eu o olhava. “Eu amei uma pessoa aqui, neste exato lugar”, ele disse. “Ela vestia calças cor creme, camiseta branca, tênis brancos e usava o cabelo preso num coque. Estava bem ali quando a encontrei”, e com o dedo indicador apontou a esquina em frente ao bar. “Como ela se chamava?”, perguntei, mas ele não respondeu. Apenas continuou: “Ficamos juntos por quase dois anos. Uma noite fizemos amor bem aqui. Lembro-me como se fosse agora, ela numa blusa preta, calça cinza e scarpin. Eu já estava começando a rezar para o mecânico chegar logo, arrumar o carro e irmos embora. Não estava com paciência para histórias dramáticas. “Então todos os dias venho aqui, porque um dia ela voltará para este lugar”, ele disse e tudo que consegui pensar foi: “Meu Deus, que cara burro!”. Olhei pelo retrovisor e nada do Gabriel. Como sou muito impulsivo, não resisti e perguntei: “Mas rapaz, com o mundo inteiro aí para ser explorado e você aí, esperando alguém que provavelmente nem virá, por que não esquece essa mulher e cuida da sua vida?”. Mas ele apenas me disse que o que haviam vivido era tão forte que ele não desistiria de esperar. E ele sabia que ela também o amava, e que ficaria ali todos os dias, esperando ela voltar. Os olhos sempre fixos naquela esquina. Meu amigo Gabriel voltou e junto com ele o mecânico. O carro só tinha um problema: falta de combustível. Saímos de lá vinte minutos depois, mas já estava anoitecendo. Passei por aquela esquina durante dois anos e seis meses e sempre via sentado naquele mesmo lugar, o rapaz. Era sexta à noite e no bar daquela esquina estávamos sentados, eu e o pessoal do trabalho. Olhei pelo vidro molhado pela chuva que caía e lá estava o rapaz. Nunca desistia. Olhei no relógio, eram 11h10min. Alguém se levantou e foi até o Jukebox e mudou a música. Estava tocando Don’t dream it’s over, na versão de Crowded House. Olhei para a rua e vi quando o rapaz se levantou e ofereceu a rosa a uma mulher com cabelo preso em coque, camiseta branca e calça cor creme. Beijaram-se por longos minutos parecendo querer contar uma vida inteira naquele movimento. Eles se olharam nos olhos. Não pareceram dizer nada porque nada havia para ser dito. Respirei profundamente, lentamente, saboreando aquele momento com um sorriso disfarçado nos lábios. Os dois começaram a dançar devagarzinho, molhados, e sob a chuva. “But you’ll never see the end of the road while you’re traveling with me”. Deram as mãos no ar, beijaram-se outra vez e foram embora, rua abaixo, para suas casas eu acho. O lugar de onde nunca deveriam ter saído.

O amor é cego (surdo, mudo e burro)

Do diário de Kevin, meu amigo imaginário, numa vez que esqueceu uma página em minha casa:

Eu já havia ultrapassado meu limite a tanto tempo que nem me lembrava mais de como ele era. Depois de dar o coração, a alma, a família e os filhos eu estava quase disposto a dar a vida também. Quase. Espera aí. Eu disse amor? Sim eu disse. Mas será que o amor além de cego também é burro? Quem em sã consciência troca uma valise com tanto dinheiro vivo por um cheque ao portador com uma assinatura rebuscada e data incorreta? Eu troquei. Deve estar aí a resposta para minha reprovação no teste de sanidade mental. Então eu disse mesmo a palavra amor. Amor. O que é isso? Durante muito tempo eu pensava que amor era perdoar as vezes que fui abandonado, as vezes que sozinho fiquei enquanto meu amor se divertia sem mim, e eu que pensava que amor era doação, altruísmo, colocar-se à disposição, cuidar, querer bem. Eu achava que só amar não bastava, tinha que participar. Eu pensava que amor superasse as besteiras que eu fiz pelo tal amor dementador, que sugava minha felicidade e a pouca alegria que havia me restado. Após os riscos corridos, os sacrifícios feitos, eu achava que finalmente encontraria naquele porto o descanso que eu tanto precisava. Mas eu estava enganado. O porto não estava mais ali, quando o casco do meu navio avariou. E à deriva fiquei, um navio afundando, um astronauta solto no espaço. Sem rumo. Sem eira nem beira. Apenas com um pensamento vivo na mente: “Deus me fará justiça.” Já fazia alguns dias que eu pedia para que meus olhos fossem abertos. E então eles foram. Quando se vive algo tão insano, que é capaz de avançar as raias da loucura você começa a viver na zona branca. E é quando tudo ou nada acontece. Até esse momento eu era infeliz e isso era tudo. O amor não se dissolve, o amor acaba. Como alguém que é atropelado e morre instantaneamente. Acaba assim, o amor. Quem percebe isso ainda tem chance. Quem não percebe vai de graça até o inferno. Eu não percebi. Voltei cada momento: abandonos, falta de credibilidade, desistências. Detesto quem desiste. Não foi azar. Ela não ficou triste. Eu fiquei. Ela não perdeu nada. Eu perdi. Ela apenas mentiu desde o inicio, mesmo sem perceber. Eu aceitei quieto, sem sequer ligar para os sinais. No começo queria apenas gritar. Morreu, afundou, explodiu, acabou o mundo. Queimou tudo. Perdeu tudo. O que você está sentindo agora? Em números, por favor. Em números, dólares, quanto foi? E o telefone foi desligado. Acabaram-se os dias de iogurte, sorvete e tardes horizontais. Deixar um amor dementador é como parar de fumar bruscamente. Você se alucina, passa noites sem dormir e não consegue pensar em mais nada. Mas quando passa a abstinência, é possível ver o tamanho do mal que ele fazia. E começa a viver. No DVD passava “O Conde de Monte Cristo”, Estados Unidos, Inglaterra, Irlanda, 2002. Foi quando meu telefone tocou e a justiça começou a ser feita. Dormi em paz e comecei a cuidar da minha vida.

Destinos

Foi chegando de mansinho
Pouco a pouco tomando conta do meu peito
Com seu olhar cheio de carinho
Assaltando meu coração com seu jeito
Me acolhendo em seu ninho
E diante de tanta ternura e beleza
Não pude resistir
A um sentimento de tamanha nobreza
Era impossível agora fingir
Que eu não iria te amar com tanta certeza
Hoje sou escravo do seu amor
Apaixonado irreversível
Amante, livre, livre de toda dor
Mais feliz é impossível
Pois fui tomado pelo seu calor
E meu coração antes sem dono
Hoje pulsa, vibra e canta
Te esquecer um só momento? Não há como.
Pois minha alma quando deita e se levanta
Pula de alegria ao pensar no teu nome
É impossível agora te esquecer
Tudo que antes era vazio
Passou a florescer
O que antes era frio
Hoje é fogo, chega a arder
Você é parte da minha existência
E do amanhecer ao entardecer
Me faz esquecer de toda ausência
Que antes havia no meu viver
Agora preenchido com a sua essência
Você é meu caminho
Minha estrela perdida, metade esquecida
Uma flor sem espinho
Que transforma minha vida
Toda vez que está aqui comigo bem juntinho

Como se fosse a primeira vez

Eu não estava preparado para o que iria acontecer naqueles próximos dez minutos. Definitivamente não estava. E quando a porta do elevador se abriu e eu vi os olhos mais amendoados desse mundo, senti minha resistência ir a nocaute, chão abaixo. E quando ela entrou e disse “boa noite”, sinos tocaram em algum lugar e aquele cheiro me despertou. Um cheiro doce, cheiro de paixão. Fiquei completamente sem ação e mal consegui responder. Pela ponta do fichário que ela leva, posso ver seu nome. Deve trabalhar num dos andares abaixo do meu. Amanhã irei investigar, não, não preciso. Vou perguntar agora mesmo. Mas o que é isso? Tudo ficou escuro de repente, só senti um solavanco. Acabou a força. E estou aqui preso neste elevador com essa mulher na minha frente. Ela sussurra algum impropério, algo que sugere estar atrasada. São sete da noite e com certeza deve estar indo encontrar seu namorado para algum programa a dois. Muito azar o meu. Só me resta consolar e me controlar. Apesar das paredes de aço do elevador, um celular chama. Não é o meu. Ela atende, ouve e nada diz, apenas bate o flip com tanta força que parece querer trincar. “Noite difícil?” Pergunto apenas vendo a brancura quase oculta da sua blusa, iluminada apenas por uma precária luz de emergência. Ela não responde, apenas suspira. Pesadamente, profundamente, sofregamente. Ouço outro suspiro, agora leve, contido e quase reprimido. Está chorando. “Moça está tudo bem?”, pergunto sem esperar resposta. “Posso te pedir uma coisa?”, ela pergunta como se eu fosse capaz de negar alguma coisa. “Me abraça?”, e se joga em meus braços dizendo que odeia o namorado que acabou de abandoná-la porque... bem, ela não sabe o porquê. Acho que estamos parados em algum ponto entre o décimo primeiro e o décimo andar. 11/10. E naquela mistura de lágrimas e maquiagem que agora mancha minha antes imaculada camisa branca ela desabafa. A força volta e continuamos a descer. Saímos do elevador em direção à porta de entrada do prédio. Após dezesseis minutos e vários pedidos de desculpas pelo pedido ousado e as manchas na minha camisa, chegamos ao Nan Thay, aquele restaurante tailandês que sempre sonhei em ir com alguém especial é claro. Conversamos como nunca antes em nossas vidas corridas, ocupadas e medíocres. Dançamos na grama molhada de um jardim ouvindo Stevie Wonder no som do carro e como se fosse a primeira vez sorrimos sem culpa, simplesmente pelo fato de estarmos ali. Amanheço ao lado dela que dorme profundamente e nem sente os carinhos que faço em seu rosto. E foi assim naquela manhã, e na outra, e na seguinte. E em todas as manhãs nos últimos trinta e nove anos. Muita sorte a minha. Hoje a vejo caminhar com a mesma leveza, a mesma sugestão no olhar e com o mesmo brilho de um amor que superou o próprio tempo. Ainda tremo ao ouvir sua voz e suspiro quando a sinto por perto. Tudo se renova e brilha toda vez que a vejo sorrir. Como se fosse a primeira vez.

Delerium

Já não sei o que mais me perturba, se é quando ela está perto e me faz viver, ou quando está longe e me faz imaginar e sonhar. Já perdi a conta das noites acordado com sua imagem tão gravada no meu pensamento e seu nome sussurrado na dimensão do meu quarto, pairando por cima de uma aura de magia e mistério que insiste em ficar. Desejo contido, incontrolável e reprimido, preso dentro de mim mesmo, gritando em silêncio para sair, como um pássaro em uma gaiola, abrindo suas asas sem poder voar. Desejo. Vontade. Frutos da minha imaginação delirante que não me deixa meia hora sequer em paz sem que eu olhe sua foto e aperte o Play na minha memória para ouvir silenciosamente o som doce e vibrante da sua voz que jamais ouvi. Tampouco esqueci. Saudade inocente, irreal, surreal, que mexe com a imaginação da gente. Saudade que me faz lembrar, imaginar, inventar. Saudade que dói e aperta o peito de uma maneira que talvez nem mesmo ela existindo seria possível terminar. Existir? Não existe? Se não existe por que a vejo onde quer que eu esteja? Por que ouço sua voz e sinto seu cheiro, seu toque, suas mãos onde quer que eu vá? Por que quero tanto que chegue logo o amanhã quando eu talvez poderei vê-la nem que seja somente nos meus sonhos e mais uma e outra vez viajar no tempo e no espaço e encontrá-la nas raias do infinito? Talvez ela já saiba tão bem tudo que tudo que precisa fazer é existir e mais uma vez me seduzir com seus olhos faiscantes, sua boca inebriante seu cabelo esvoaçante e sua voz sibilante. Ela só precisa existir para me completar. E me realizar. Fantasiar. Sorrir. Amar.

Do outro lado

Eu não sabia se deveria abrir os olhos naquele momento, mas sei que ela estava ali. Do meu lado, em pé ao redor da cama a me olhar. Olhando com aqueles olhos verdes faiscando íons energizados, gritando alguma coisa que eu não ouvia. Não a vi, mas tenho certeza que senti seu toque. Toque não. Presença. Arrepio, vento gelado que sobe pelas pernas e alcança a nuca, eriçando cada centímetro do meu corpo. Quero abrir os olhos, mas tenho medo do que talvez veja. Não sei se ela estará como da última vez que a vi, inteira, ou se estará como morreu, em módulos separados. É como se dedos frios roçassem a pele das minhas costas me deixando ainda mais arrepiado. Não tem jeito, se eu continuar ali, ficarei paralisado para sempre e nunca mais irei me levantar, por isso, começo a assobiar baixinho. Ninguém irá se importar. Moro sozinho e ninguém vai acordar. Dois copos com água e volto pra minha cama. Insônia. Não quero ligar a televisão. Desta vez não dou as costas para o centro do quarto. Fecho os olhos e de novo ela vem. Quer me dizer alguma coisa que ainda não consigo escutar. Mas outra vez sinto aquele vento gelado perto do ouvido, como se alguém sussurrasse algo para mim. Abro os olhos, mas nada vejo. Durmo. No sonho ela me conta que está bem, não devo ficar preocupado, me abraça com força, beija a minha testa e se dissolve em milhões de pedacinhos brilhantes. Entende minha preocupação e atende o meu pedido. Pedi para que ela aparecesse num sonho e me dissesse como estava. Dizem que pessoas que se foram dessa mesma forma brutal não descansam quando morrem. O espírito fica inquieto. Rest In Pain. Por isso preciso saber, preciso dormir tranqüilo sabendo que ela agora está bem, longe da agonia que deve ter passado nos últimos momentos aqui. Durmo e acordo animado, feliz, parece que tirei o peso do mundo das minhas costas. No lugar onde estou existem doze computadores, um está desligado, e é nesse reflexo que vejo alguma coisa se mexer. Do meu lado, no outro canto da sala. No cantinho da parede. Dá um passo em minha direção, mas em seguida volta. Parece não conseguir sair daquele ponto cego. Peço para alguém se sentar no mesmo lugar mas ele nada vê. Devo estar ficando louco. Mas tem alguém ali, você não está vendo? Olhe, está mexendo os braços. Está querendo que eu veja alguma coisa. Não tem nitidez, mas é óbvio que aquela mancha esbranquiçada é o reflexo de alguém. Talvez seja ela, ou alguma coisa, que provavelmente eu nunca venha a saber.

Angelicus

Seu primeiro presente foi um nome de anjo: Anyel. Amava o próprio nome tanto quanto a si mesma. Nome de anjo, beleza de anjo, ternura de anjo. Agora lhe faltavam as asas tão somente. Asas aladas para poder voar, para sombrear e para proteger. Para aconchegar, amparar e abraçar. E as asas começaram a aparecer numa tarde quente pouco depois que seus pais se separaram. A desilusão, a frustração e a sensação de impotência ante aquela cena da qual jamais se esqueceria, faria parte da sua vida angélica para sempre. No começo, ela quase não percebeu. Parecia um caroço, um nódulo em suas costas e até pensou em contar para a mãe, mas a mãe continuava numa tristeza só. Preferiu continuar em seu silêncio. E assim, pouco a pouco suas asas de anjo foram surgindo, deixando-a com as feições de uma fada madrinha, e já era difícil esconder aquele volume. As grandes asas se abriram completamente no instante que gerou a filha, sua única. Asas anguladas, brancas e bem arqueadas. Conseguiu outra vez esconder de todos aquele milagre. Por muitos anos. E durante todos esses anos Anyel voou por terras, mares, bosques, planetas e eternidades com suas asas de anjo. Lá de muito baixo as pessoas a viam e se diziam: “que pássaro esquisito!” E continuou voando por lugares onde apenas ela sabia onde ficava. Estava feliz por tudo que tinha ganhado até ali: seu nome, suas asas e uma filha. Apenas faltava um igual. Sentiu falta, chorou sozinha quando não pôde voar, chorou quando tantas vezes foi enganada e chorou quando despencou no abismo negro da dor quando seus medos se tornaram reais, quando seu casamento acabou, e agora com suas asas queimando em fogo vivo ela rodou e caiu, não encontrando mais o chão. Bateu com força na laje fria e cortante da dúvida e da desesperança. E lá de baixo, onde parecia não haver mais fundo, ela começou a se lembrar das asas, agora danificadas. Forçou e forçou, mas o movimento ainda era tão curto, quase imperceptível. Meses se passaram até que as asas voltaram a se movimentar. Alçou vôo e voltou à superfície. Numa noite conheceu alguém por quem se apaixonou. E foi amada, correspondida e adorada. Sentiu-se outra vez feliz, completa e realizada diante de tantas confirmações e afirmações daquele rapaz. Apenas não sabia como contar a ele sobre seu milagre, suas asas, sua benção que muitos achariam uma maldição. Então uma noite ela resolveu contar, sabendo que poderia perdê-lo ali mesmo, para sempre, dependendo da reação do rapaz. Mas ele a amava, disso ela tinha certeza. Ele a abraçou forte quando a viu e percebeu algo estranho em seu olhar, ela parecia triste, querendo dizer algo.“Preciso te contar uma coisa, na verdade preciso mostrar”, ela disse. Ele lhe deu um beijo apaixonado, o mais apaixonado que ela jamais tivera em sua vida angelical. Amanda sentiu-se segura, protegida e amada e num movimento, abriu completamente suas asas brancas. Olhou para ele no fundo daqueles olhos negros, mas ele não se assustou, nem sorriu nem chorou. Ela sorriu para ele e ele sorriu de volta. Em seguida pegou na mão dela e apenas lhe disse: “vem comigo”. Abriu suas asas também e voaram para bem longe dali.

Os gritos do meu silêncio

Quando eu era criança sempre sonhei com uma casa com jardim, um cachorro branco pintado de marrom claro, filhos bonitos e cheios de amor, uma mulher que eu amasse de verdade e um emprego aonde eu chegasse em casa às sete da noite quando depois de uma dança (ou várias), iríamos jantar, jogar conversa fora e depois dormir e sonhar em fazer tudo outra vez amanhã. A infância passou, a adolescência chegou e se foi com a velocidade de um raio e finalmente a fase adulta me alcançou. Mas nem as pressões, as contas a pagar e muita coisa a esperar me fizeram mudar aqueles sonhos gravados tão fortemente no meu subconsciente. Sorri, chorei, andei, parei e esperei. Me rebelei aos vinte anos, virei punk aos vinte e um, deixei o cabelo crescer e fiz vários furos na orelha aos vinte e dois. Saí de casa, mudei de cidade, me regenerei. Me casei aos vinte e três, fui pai aos vinte e quatro, depois outra vez aos vinte e cinto, construí uma casa aos vinte e seis, escrevi um livro aos vinte e sete. Conheci a mulher da minha vida aos vinte e seis, sofri a indignação de uma traição aos vinte e sete, traição seguida de tentativa de morte, depois de uma ingestão mal feita de remédios para dormir, e depois balancei entre e humilhação e o ódio quando atravessei meu primeiro processo. Primeiro o de separação, depois de perda da guarda dos filhos, meus menininhos. Tudo isso armado com apenas a esperança do lado esquerdo, dentro da camisa. Aos vinte e oito oscilei entre o desespero e a raiva, depois que a mulher da minha vida foi embora para voltar meses depois quando eu já estava me recompondo. Esperei ligações que não aconteceram, promessas que foram esquecidas por não terem sido cumpridas, e palavras que foram ditas e muito pouco realizadas. Esperei o mundo mudar para só depois tentar ser feliz, escrevi histórias que nunca publiquei, e em noites solitárias, sentei, chorei e me desesperei. Recusei amores genuínos esperando meu amor tomar coragem e vir para mim. Machuquei corações que não mereciam sofrer, fiz sorrir, fiz doer, fiz sonhar e fiz muitos pesadelos aparecerem. Venci e fui derrotado tantas vezes que hoje não consigo nem me lembrar. Passei noites em claro ouvindo meus filhos chorarem quando bebês e passei noites em claro querendo ouvir seus sons quando eles já não estavam mais aqui. Dei boa noite aos meus filhos todas as noites, esperando que meus sussurros viajassem por vários quilômetros e chegassem até eles em sonhos. Tentei ser um bom pai, tentei ser bom aluno, tentei ser bom amigo e bom professor. Fiz o que podia para ser um bom amante para aquela quer se tornou a segunda mulher mais importante da minha vida. Briguei, insisti, lutei. Gravei sua inicial na minha pele para que se tornasse uma marca indelével no meu corpo, marca que já era cravada, talhada em meu coração. Letra que gravada a ferro e fogo na minha alma, tinha mais luz do que o sol. Quando estava sozinho pensei e desejei. Nas noites frias amei em silêncio. Quando acordado, sonhei. Escrevi, meditei,orei, busquei, ajoelhei e muitas vezes me resignei. Escrevi histórias que fizeram rir e lamuriar. Delirei, assustei, diverti, amei. Esperei muitas vezes, em outras cansei. Me declarei, expus, entreguei, agarrei, consolei e me apaixonei. No fim da noite quando finalmente descansei, o telefone tocou. Sorri, chorei, respirei e suspirei. Escutei, falei, esperancei, afirmei e sonhei. Os gritos do meu silêncio se encerraram por mais esta noite. Terminei, cansei, desliguei, me deitei e relaxei. Minha tatuagem ardeu, meu corpo estremeceu, e outro “eu te amo” ela me deu. Quem sabe agora o sonho se realiza e aquele menino possa viver para sonhar outra vez. Deus é bom.

O que a gente não disse - por Lya Luft

Eu não estava preparada. Nem quando parava para pensar na vida tinha imaginado aquilo. E não era muito de pensar na vida. Apenas cumpri minhas tarefas, e sei que fui uma boa mulher para meu marido.
Quando me virei, esperava vê-lo andando em direção ao carro para mais um dia de rotina. Nem sei por que me virei. Ele era a criatura mais próxima e mais comum na minha vida comum, e eu não esperava nenhuma surpresa. Tínhamos feito isso milhares de vezes, a despedida trivial, cada um seguindo para as suas atividades – também triviais. Mas dessa vez ele continuava parado, ombros caídos, parecendo particularmente cansado. Nos olhos uma expressão que só mais tarde entendi: era o seu último olhar – e ele não me disse nada. Eu, que toda noite dormia a seu lado, nada percebi. Ou vinha notando de um jeito difuso uma tristeza, quem sabe um desejo de falar, ele que era tão contido. E não éramos muito de falar. Quase voltei, quase perguntei o que havia. Mas desisti e fui em frente, com a leveza dos que ignoram. Em vez de indagar, varri minha breve inquietação para debaixo do tapete.
E se eu tivesse perguntado?
E se ele tivesse me dito?
Se eu tivesse merecido saber?
Isso me atormentou por longo tempo. Eu me sentia muito culpada. Hoje, acredito que não saber é o que torna a vida possível.
Escolheu o seu lugar preferido, e fui eu que o encontrei duas horas depois: ele sabia que eu o encontraria, nesse jogo de conhecer e desconhecer de qualquer relacionamento. Despediu-se de mim, foi ao laboratório onde trabalhava, pegou a poção que tinha preparado, a seringa, a agulha, e foi de carro até a árvore que amara tanto, logo fora da cidade. Sentou-se na sombra ampla e maternal que lhe faltara toda a vida, isso ele dizia, eu nunca tive mãe de verdade. Mas falava sem raiva, aparentemente sem sofrimento.
Eu teria de passar por ali, voltando de uma floricultura onde ia apanhar coisas para o nosso jardim, isso ele sabia. Muita gente deve ter passado por lá antes de mim, sem dar importância a um carro no acostamento, ao homem descansando embaixo da árvore. De longe reconheci o carro dele, e antes mesmo de começar a frear vi meu marido, sentado, encostado no tronco, como se olhando o movimento na estrada, tivesse tirado uns minutos para refletir em alguma coisa importante demais para ser pensada na agitação do superficial cotidiano.
Saí do carro e fui andando até ele, com cuidado porque parecia cochilar e eu quis lhe pregar um susto. Mas uma ansiedade louca começou a se revolver em mim, e quando cheguei junto dele quase vomitei. Estava morto.
O rosto um pouco voltado para cima, corpo encaixado numa concavidade do tronco, como um berço preparado só para ele. Por isso não tinha escorregado para o capim.
A seu lado brilhavam, no sol filtrado entre as ramagens, a agulha e a seringa. Não precisei de mais nada para entender.
Então o parceiro de minha vida havia me abandonado por vontade própria, da forma mais definitiva, embora, eu sabia, me amasse também. Mas não o suficiente para querer ficar. Depois me disseram que foi instantâneo. Instantâneo não diminuía minha dor. Nem dizerem durante o velório que ele estava bem, estava bonito, estava tão sereno, sempre fora um homem tranqüilo. Odiei cada um daqueles comentários, eu entrava num longo período de incerteza e culpa. Como eu não tinha percebido, em que eu havia falhado, eu e meus filhos já homens feitos, em que o havíamos abandonado com tamanha crueldade, se o amávamos tanto?
Embora parecesse satisfeito com sua vida simples, dentro dele uma força o consumia. A única estranheza dele, que eu lembre, era aquele sonho que de vem em quando relatava. Estava sendo chupado por um funil, estreito e vertiginoso, que girava e girava, e no fundo via-se um buraquinho minúsculo, a morte. Só com grande esforço, às vezes com um grito, ele conseguia resistir. Nesse momento acordava e me acordava também. E cada vez que a gente falava, tomava café na mesma mesa, comentava notícias da televisão, trocava brincadeiras no computador ou até se abraçava na cama, mesmo que ele não comentasse, aquela sedução continuava. Aquele apelo. Nem o deixou esperar o curso natural das coisas, envelhecer a meu lado, ter alguma doença fatal, sofrer um acidente: ele se entregou voluntariamente, jogou-se no seu abraço escuro e me deixou.
Deve ter sido imediato: a picada, o alivio da morte: oblivion, onde li essa palavra? Esquecimento. Silêncio para sempre.
Palavras podiam ter salvado a sua vida? Teriam poupado a minha dor, recomposto os nossos laços deteriorados e a gente fingia que não? Mas porque a gente se conhecia tanto, nem procuramos por elas. Palavras são máscaras de tragédia ou nariz de palhaço, abrem campos queimados até a raiz da última plantinha, como os que se estendiam entre nós. Eu achava que estava tudo bem, a vida era assim, casamentos eram assim, com sua dose de silêncio e desencanto.
Era o que eu pensava. Para mim, o que tínhamos era tudo. Para ele, não bastava. Como tantos homens bons rompem com sua vida bem enquadrada, e numa paixão iluminante, largam tudo e só querem aquele novo amor, aquela nova vida, arrancando tudo pela raiz, ele seguiu o seu desejo.
Sem que eu soubesse, as coisas não ditas haviam crescido como cogumelos venenosos nas paredes do silêncio, enquanto ele ficava acordado na cama, fitando o teto com o branco dos olhos reluzindo na penumbra. Se eu interrogava, o que você tem, amor? Ele respondia que não era nada, estava pensando no trabalho. A gente sabia que era mentira, ele sabia que eu sabia, mas nem um de nós rompeu aquele acordo sem palavras. Nunca imaginei o mal que o roia. Era impossível qualquer coisa tornar a morte algo melhor do que tudo que tínhamos. Isso era o que eu achava. Ele também falava pouco no passado, a infância numa cidadezinha do interior, o monte de irmãos, os pais morrendo cedo, ele responsável pelos menores. Haveria ali, com uma raiz venenosa, alguma coisa tão triste que o levava a querer morrer?
Antes nunca pensei nisso. A gente não comentava nada que nos perturbasse. Eu era uma pessoa muito prática, para mim importava o presente. Vivia ocupada sendo feliz, tentando fazê-lo feliz, organizando família, parindo filhos, levando as crianças para a escola, indo às reuniões de pais. Estava distraída sendo fútil, sendo alegre, sendo realizada com meu marido amado e meus filhos saudáveis, gastando pouco em roupas minhas, botando termômetro quando um deles estava com febre, fazendo bolo nas tardes de sábado.
Ele pensava em morrer. Preparava-se para isso. Deve ter levado anos premeditando a morte e criando coragem. Qual a substância mais rápida, indolor e eficaz que iria escolher no laboratório. Que agulha, que seringa, que lugar, que hora, que dia. Teria pensado em mim? Teria pensado nos filhos e na perplexidade deles? Teria imaginado meus tormentos, por ter sido tão superficial e limitada enquanto ele se dilacerava?
Morrer devia ser como parir a si mesmo. Eu em cada parto me senti um bicho acuado, mas pensava: vai chegar ao mundo através de mim uma nova pessoa, que coisa maravilhosa. E isso me dava força. Na morte, o que estará nascendo? Quando o velamos, e quando estava enterrado, nossos filhos solteiros, e o filho casado com sua mulher e crianças, ficaram por perto tentando entender e descobrir algo em mim, pedindo uma palavra, uma explicação.
- Mas como, mamãe, como você nunca percebeu nada, nosso pai era tão infeliz que se matou, e a senhora não viu nada?
- Não, meus filhos. Nunca percebi. Para mim ele era meu homem, pai de vocês. Deitava comigo na cama, ia para o trabalho, me dava um beijo de despedida todas as manhãs e um beijo de chegada todas as noites, e pagava as contas. Nunca reclamava de nada em especial. Parecia um homem contente com sua vida. Não era. E eu não percebi.
Com o tempo deixamos de falar no assunto e cada um resolveu essa dor do seu jeito. Mas em mim, essa agonia ainda mexe como um grande verme inquieto. Não sei se teria adiantado a gente saber. Não sei se conversas ou psiquiatra ou médico ou padre teriam ajudado. Sei que ele escolheu o caminho, o fim. Eu ficaria de fora. E se a árvore não estivesse ali, aquela que ele sempre mencionava e admirava, se eu tivesse sido mais atenta, se ele tivesse confiado mais em mim, se a agulha tivesse se quebrado, se eu tivesse chegado uma hora mais cedo, se ele fosse mais feliz? Mas nada disso aconteceu, e assim matou-se quem eu amava.
Apesar de todos os pratos que lavei, das camisas que passei, da casa que limpei, dos lençóis que dobrei, das flores que botei na sala, do muito que economizei, dos filhos que pari, cuidei e encaminhei, do carinho bom que partilhei – não tive grande valor para ele. Valor tinha essa que o aguardava e o acolheu debaixo da árvore que ele apontou milhares de vezes passando por ela de carro, e repetia sem notar que se repetia:
- Olha só, parece uma grande mãe. Como deve ser bom dormir ali em baixo.
Foi o que fez.
Depois da despedida e do olhar que era o último, mas eu não sabia, voltei para a nossa vida, enquanto ele, caminhando até seu carro, o mesmo velho carro de sempre, apalpava no bolso do paletó o frasquinho, a seringa, a agulha, pensando que logo estaria para sempre com a sua poderosa amante, que afinal venceu.
Porque em tantos anos, tantos acomodamentos, tantas pequenas brigas e tantas descobertas em comum, os filhos, as férias, as doenças e as alegrias, e as contas a pagar, a gente nunca falou no mais importante – que eu agora não tenho mais como saber.

Perdendo dentes

Brooklyn. São Paulo. Cinco horas e quarenta e dois minutos. Fim de tarde de uma terça-feira pouco movimentada. Os clientes já foram quase todos atendidos (na verdade apenas um apareceu) e agora só resta mais uma alma para ser curada. O último. O derradeiro. O doutor Murilo o observa com atenção. O paciente está lá, tenso como o quê, refestelado na cadeira de dentista esperando pela temida e tremida anestesia quando o doutor irá lhe curar da dor de dente que a tanto tempo o aflige. Doutor Murilo prepara o composto que irá penetrar pela gengiva maltratada e deixará a região insensível. Vai fazer um canal. Primeiro passa um dose de uma pomada com gosto de laranja usando o próprio dedo indicador direito na gengiva do homem. A seguir o brilho da luz na extensão da agulha faz o homem ter um arrepio. Uma piscada mais forte, uma leve sugestão de dor, uma respiração profunda, e lá se foi a anestesia. Cinco minutos depois o homem mal consegue falar. Perdeu o poder de controle sobre a língua. Junto com a morte repentina do membro falador, vem também o cansaço seguido de um sono que ele não sabe de onde veio. Ainda ouve o doutor Murilo dizer: “relaxe, é um novo tipo de anestesia para deixar a pessoa ainda mais à vontade.” Doutor Murilo é ágil, enquanto o paciente vai se embalando naquele sono de recém nascido, ele já prepara outra injeção com um anestésico diferente. Pega um alicate do tipo binlão e deixa na bandeja próximo à cadeira. A lista de instrumentos está à sua disposição: abaixa-lingua, cureta, fórceps, espátula, brunidor e toda a parafernália típica dos dentistas. Então ele começa. Com a ajuda do fórceps e de uma cureta, doutor Murilo extrai um dente, e outro e mais outro. Logo o paciente já não possui dente algum na parte superior. Todos estão agora dentro de um vidro transparente de densidade média onde serão estocados e quem sabe até vendidos para a faculdade de odontologia a preços módicos. O doutor abre um armário onde agora é possível ver uma horda de frascos idênticos, todos com dentes de pacientes desavisados que caíram em sua lábia. Todos os dentes da arcada superior. O paciente irá acordar algum tempo depois e descobrir que o efeito do remédio foi completamente diferente, porque ele, o paciente possui um tipo de bacilo que faz com que um dos nervos que passa por dentro das gengivas pare de funcionar, deixando os dentes sem proteção na raiz e despencando do céu da boca como frutas maduras a se desprender de uma árvore. A todos os pacientes o doutor Murilo diz a mesma coisa, com algumas leves diferenças na mesma história. Na verdade o doutor Murilo não se chama Murilo, e sim Cezion Firmino de Paula e nunca foi doutor. Abandonou a faculdade de odontologia ainda no primeiro ano depois que foi pego traficando remédios no mercado negro. Agora em seu consultório é assim que as coisas funcionam. O doutor cobra cinqüenta reais por qualquer tipo de trabalho que precisa realizar. Arranca os dentes superiores dos seus pacientes e em seguida vende o tratamento completo de reposição dos mesmos dentes que o paciente acabou de perder por causa da ação do tal bacilo. Doutor Murilo sorri satisfeito. Mais um cliente que saiu depois de deixar três cheques assinados no valor de oitocentos reais cada um. O tratamento de reposição dos dentes será completo e irá começar na semana que vem. Como falta uma semana, doutor Murilo, para não esquecer nem se confundir mais tarde, anota o nome do cliente numa etiqueta e prega no frasco de vidro com os dentes agora polidos, limpos e tratados. Liga para uma companhia aérea e pede uma passagem para Florianópolis. Vai passar o final de semana na casa dos pais onde seu pai que também é dentista, lhe fará uma revisão nos dentes. Sem a misteriosa anestesia.

Caçadores de Emoção - Parte I

Para minha amiga Thais Lopes Lima...
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Já fazia onze anos que o jornal A Voz do Povo esperava por uma novidade. Sempre as mesmas notícias maçantes estavam fazendo o jornal perder leitores e as despesas aumentarem. Durante muito tempo, o jornal foi ameaçado de fechar.
O tempo foi se encarregando de promover a dispersão dos funcionários. Quando o senhor Helio Braga iniciou seus empreendimento jornalístico, em meados de 1973, o jornal contava com dezesseis funcionários. Nada mal para a pequena comunidade da cidade de Campos. Desde então, as novidades não eram mais novidades e com o senhor Hélio agora, só restaram três funcionários.
Mas naquela madrugada do dia dois de outubro enquanto o senhor Helio Braga acompanhava a impressão dos últimos exemplares do jornal, um sorriso brilhou no seu rosto. Aquela era talvez a reportagem que salvaria o seu jornal. E salvou.
Quando o dia amanheceu, a reportagem invadiu as casas dos habitantes de Campos e os deixaram perplexos. A reportagem de capa dizia: “ASSALTO AO BANCO UNIAO – BANDIDOS FOGEM LEVANDO 18 MILHÕES”. Como o senhor Helio previa, seu telefone não parou de tocar aquele dia, e com toda certeza, o prestigio d seu jornal aumentaria. Novos tempos promissores o aguardavam.
A policia da cidade de Campos passou todo o dia empenhada na busca aos assaltantes, mas nada fora descoberto. A cidade tinha pouco mais de oito mil pessoas. Naquele dia as pessoas se perguntavam qual era a razão de dezoito milhões de reais estarem no poder de um bando em uma cidade que parecia estar esquecida pelo resto do mundo.
A tranqüila comunidade estava alerta. Muito dinheiro havia desaparecido e ninguém ainda havia sido apontado como suspeito. Os bandidos entraram no banco depois de cortarem o fornecimento de energia da rua onde ficava o banco. A população dormia a sono alto quando eles entraram, fizeram os vigias de reféns e levaram todo o dinheiro embora. Os bandidos saíram tão rapidamente quanto entraram. Em vinte e três minutos exatos levaram tudo que podiam em sacos grandes e pretos e fugiram em duas caminhonetes.
“Um crime perfeito”, como dizia os moradores locais. Os bandidos, algum tempo depois reconhecidos pela policia como sendo, Augusto e Paulo Silva Borges eram primos em primeiro grau e eram trabalhadores em uma empresa de segurança, na cidade vizinha, Arcos.
Depois de tramarem meticulosamente seus planos, participou junto com eles Luiz Carlos Frota, conhecido por eles apenas como Frota.
O dinheiro seria levado para uma casa velha e abandonada que iria servir como esconderijo. Ali seria distribuído em partes iguais e cada um dos três seguiria em um rumo diferente, prometendo a si mesmos esquecer tudo, mudar um pouco a aparência e aproveitar todas as coisas boas que o dinheiro pode comprar. Mas os planos não ocorreram como eles imaginavam.
Na noite de dois de outubro, o terceiro homem, o Frota havia saído para comprar algumas cervejas em um posto de gasolina a vinte quilômetros dali. Não se preocupou em deixar os outros dois para trás com dinheiro, porque não havia como fugir. As duas caminhonetes usadas no assalto foram afundadas em um rio a vários quilômetros dali. Só havia agora o Ford Blazer que naquele momento estava a poucos quilômetros do posto.
Frota olhava a todo instante pelo retrovisor, certo que estava sozinho naquela estrada que parecia ligar o nada a lugar nenhum, ma todo cuidado era necessário. A noite foi ganhando uma tonalidade amarelada com as nuvens pesadas de chuva. Uma tempestade estava para chegara. Mas ele conseguiu chegar ao posto antes da tormenta. Entrou na loja de conveniências enquanto a chuva lá fora açoitava o lugar.
Comprou toda a bebida que pretendia comprar, pagou em dinheiro, sorriu para a balconista e para o senhor no caixa e foi embora. Tudo normal, mas por dentro ele era um turbilhão de nervos. Entrou no blazer e três quilômetros depois o veículo parou por falta de combustível. Comprara o que queria, mas esqueceu completamente da gasolina. A maldita gasolina.
Ali parado, apenas observando o clarão dos relâmpagos e ouvindo o granizo se arrebentar contra o veículo junto com as grossas gotas de chuva, começou a abrir as garrafas de cerveja e bebeu. Não havia se dado conta de quanto havia bebido, quando sua cabeça girou e ele desmaiou sob os efeitos do álcool.


Augusto e Paulo tentavam contar tanto dinheiro com alguns litros de uísque na cabeça. Já haviam perdido a conta várias vezes. E foi numa nova tentativa frustrada de contar o dinheiro que tudo começou. A sala onde estavam agora tinha uma espessa camada de fumaça próximo à luz que pendia do teto. Numa pequena mesa num canto da sala estava o cinzeiro abarrotado de pontas de cigarros já queimados. A luz fraca só contribuía para o cansaço dos dois. Já estavam acordados por quase quarenta horas, mas naquele momento, dormir não era importante. Contar o dinheiro sim.
Por diversas vezes Augusto questionou a importância de se fazer aquela contagem uma vez que o jornal A Voz do Povo havia divulgado o valor do assalto. Mas Paulo insistia na contagem. Augusto mais uma vez perdendo a concentração nos números em meio a tanto dinheiro, soltou um berro na sala: “Mas que merda!” o impropério foi acompanhado de um forte tapa com a mão espalmada na mesa e fez Paulo se assustar e também perder a contagem daquele maço de notas.
Muitas pessoas quando estão sob o efeito estuporante do álcool fazem coisas inesperadas que se arrependem depois. Paulo agora sabia disso. Após longos minutos de discussão entre ele e Augusto a briga passou para a agressão física.
Um forte soco acertou Augusto e o fez girar e cair. Caiu, levando imediatamente as mãos à cintura. Sacou o revólver e disparou três vezes.
Paulo não teve tempo de pegar a sua arma e então fortes dores dilaceraram o seu corpo. O primeiro tiro acertou seu ombro esquerdo, o segundo no estomago e o terceiro a poucos centímetros do segundo. Ele ficou ali, deitado, o sangue se espalhando pelo chão, os olhos esbugalhados olhando para o vazio.
Augusto, se desesperando com o assassinato que acabara de cometer, apanhou duas sacolas de náilon pretas, onde estava escondendo o dinheiro, colocou nas costas e caminhou em direção à porta, pronto para fugir, ignorando a tempestade que devastava tudo lá fora.
Olhou pela ultima vez para o céu lá fora, sentindo as rajadas de vento salpicarem seu rosto com gotas de água e então um forte relâmpago cortou o céu. Um trovão quase o ensurdeceu. Lembrou então da capa de chuva, e antes que pudesse se virar, o primeiro tirou o acertou nas costas. Ainda teve tempo de se virar e ver Paulo com a arma na mão, antes que a arma fosse descarregada no seu corpo.
Paulo não resistiu. Ao ver o corpo de Augusto ali no chão, fechou os olhos e deu seu último suspiro. Os dois estavam mortos. A porta aberta deixava a fraca claridade da luz vazar para a imensidão da noite. A estrada ficava a algumas centenas de metros da casa, mas mesmo de longe, aquele ponto claro indicava que havia uma casa ali.


A princípio eles não notaram, mas quando a chuva foi se dissipando, algumas horas depois, eles conseguiram ver a velha casa. Era ali que eles iriam pedir ajuda.
Eles estavam a caminho de mais uma aventura. Charles e Sonia já haviam feito quase de tudo em matéria de aventura. Já haviam desafiado a maiores ondas nos mares mais bravio do planeta, já haviam saltado inúmeras vezes de pára-quedas e “bungee jump”, já haviam escalado um dos picos mais altos do mundo e verta vez passaram treze dias cruzando fronteiras a bordo de um balão.
Tinham planos de atravessar os oceanos em um pequeno barco, mas agora estavam sem destino, passando por diversas cidades e lugares em seu Pathfinder. Foi a sensação de liberdade e aventura que fez com que os dois se aproximassem e fossem viver juntos.
O Pathfinder tinha tração nas quatro rodas, mas a estrada de terra tinha grandes surpresas. Um enorme buraco fez as duas rodas da frente ficarem presas, e por mais ré que fosse dada, o veículo não saía do lugar.
Charles já havia parado de reclamar e estava com as duas mãos no alto do volante, a cabeça apoiada nas mãos quando Sonia avistou a luz. Animaram-se novamente ao perceber que existia um sinal de vida por ali (ou seria de morte?).
A idéia inicial era que Charles fosse até a casa e trouxesse ajuda enquanto soia aguardava dentro do veículo. Mas aquela era uma região muito isolada e nenhum dos dois aparelhos celulares recebia sinal. Como já haviam passado por tantos perigos e aventuras juntos, resolveram encarar mais aquela.
- Que fim de mundo! – dizia Sonia a todo instante.
- Essa chuva acaba com qualquer um – Charles disse tentando fazer da mão uma proteção para os olhos – e essa luz vinda dessa casa faz a gente imaginar que estamos um filme de terror.
- Parece a casa da Bruxa de Blair – disse Sonia, enxugando em vão o rosto com a camisa que usava por cima da camiseta branca.
A pequena casa estava a poucos metros agora. Charles bateu palmas. Sonia iluminava o redor com uma lanterna.
“Olá, tem alguém em casa?”, Charles gritou. “Ola”.
Nenhuma resposta. Como a chuva não dava trégua foram se aproximando da porta. Sonia abafou um grito com as mãos, deixando a lanterna cair quando viu os pés de Augusto estirado no chão.
“Oh meu Deus”, dizia Sonia sem para enquanto Charles a amparava.
“Temos que avisar a polícia”, ele disse, mas se lembrou no mesmo instante que não podia retirar o veículo dali e os telefones celulares não funcionavam.
“Vamos sair daqui Charles, estou com uma péssima impressão deste lugar”, Sonia disse, “confie em mim, vamos embora”.
“Querida espere. Não há mais ninguém aqui”, Charles disse quase sussurrando, “vamos ver o que temos aqui dentro”.

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